O encanto perdido
Por Tibério Lobo
(baseado em um argumento de Felipe Félix de Oliveira)
Conto ou roteiro, como quiserem.
Let’s go to the trip.
....................
O septuagenário caminha devagar pela rua de uma pequena cidade.
Capote. Mãos nos bolsos. Vento nos cabelos. Envolvem-no(s) sons de (sub)cultura humana “funcionando”. Talvez uma canção de amor, seja lá o que signifique isso numa hora dessas...
A esquina do prédio de pintura descascada ainda está no mesmo lugar. O aroma do café que sai dali é familiar como qualquer pequeno gozo ou cínica tortura do cotidiano (a mão sai do bolso do capote e enfia-se no da calça, remexe ali por uns instantes). Em algum lugar moedinhas tilintam (em algum lugar).
Edifício amarelo diante da praça-de-jogar-buraco intacto e caricaturalmente imponente. Ele continua ali. Nenhum avião caiu sobre ele antes do noticiário do meio-dia. Ninguém dormia para que isto acontecesse... e o que acontece, de qualquer maneira?
A mesma praça.
“Para quê se alarmar? É só a mesma praça de sempre”.
O mesmo sol de sempre.
“Palavras do Pregador, Eclesiastes. Um velho, antigo sentimento.”
O banco da praça é branco, como dois mais dois são quatro. São brancos em todas as partes do mundo. Em todas as partes do mundo os aposentados os freqüentam - não adianta querer ser holístico num momento destes. É inútil, inútil em todos os mundos.
Feche os olhos. Tente encontrar a si mesmo na escuridão.
“Não, não é escuro o suficiente...”
Visualize a si mesmo no sorriso da criança que passeia segurando o algodão doce. Olhe bem. Ela se demora a comê-lo, justamente para poder admirar aquela cor forte... as variações do rosa justaposto ao sol...
“A ingenuidade envelhece. Meu pai já dizia. Por que duvidar? Eu me lembro bem. Não obtive benefício algum. Há sempre alguém nos enganando enquanto nos deixamos absorver pela distração. Regras de sobrevivência em um mundo capitalista; te fazem duro e garantem o pão nosso.”
Na parte menos iluminada não há um rosa mais intenso, mas um rosa misturado ao preto. Pintado suavemente, bem como havia ensinado a professora na aula de desenho da primeira série.
“Realidade. Concentre-se na realidade. Ao menos pense em algo que faça FUGIR o passado - algo REAL.”
O aroma do café alcança o banco branco. Doces torturas, doces e cínicas. Pequenas como uma gota de cicuta. Ou uma gota de ausência. O que dá no mesmo - como sempre.
“O mundo não sabe que você existe. O que posso oferecer ao mundo? Ele deve ter suas razões - não é uma força produtiva que agora jaz sobre um banco de praça. Recebo invariavelmente o que dou: nada. E as árvores da praça zombam de mim, porque resistem, sob o sol e sob a chuva. Mas...”
Os passarinhos cantam.
“...os pássaros piam e... hoje seria um dia ideal para se nascer. Eu gostaria de nascer hoje. Contanto que algo diferente aconteça; um outro mundo, um outro tempo... Algo novo e que me surpreenda, que me conceda a chance de ser alguém...”
– Você leu o jornal hoje?
O homem voltou-se na direção da voz suave que o interpelou. Um passarinho, empoleirado no encosto do banco, à esquerda, olhava para ele.
– Não, não cheguei a abrir.
– E por quê?
– Porque eu o abro todos os dias e já sei exatamente o que vou ver. Minha vida não mudará em nada por causa disso... e, de qualquer forma, se tiver algo realmente surpreendente, vai passar na TV.
O passarinho dá uma meia risada.
– Ah, eu sei. É; realmente, é bem difícil que a TV mostre algo muito diferente do jornal. Mas eu lhe perguntei porque aconteceu uma coisa muito importante hoje de manhã, e uma coisa importante a nível mundial.
– Hmmm, começou a ficar interessante... E que coisa é essa que pode mudar o mundo?
– Fidel Castro pousou às dez da manhã no aeroporto de Havana.
– Bem, seria extraordinário se desembarcasse no Vaticano... O que tem isso de surpreendente?
– Ele voou. E pousou. E passa bem. O avião não caiu, não enfrentou turbulências no caminho de volta do Brasil. Você sabia que, diariamente, milhares de aviões decolam no mundo todo ao redor do mundo e, de cada 100 destes, 100 pousam sem maiores problemas, em total segurança?
– Para você deve ser fácil falar.
– Diante disso, prefiro imaginar a existência de um grande Espírito Celeste permitindo a alguns voarem sem possuir asas. É, realmente, algo espantoso e digno de nota.
– Eu não precisaria ler o jornal para saber que alguns aviões não caem. É por isso que estou aqui: para encontrar algo que jornais não mostrem.
– Concordo quanto ao jornal, mas os fatos estão acima dos meios.
– Fatos... É, devo admitir que você tem razão. Mas não possui a chave da ciência dos fatos. Ninguém a possui; nem eu, nem você.
– Parece haver algo que lhe preocupa nos fatos.
– Bem simples: eles nunca tiveram o costume de obedecer ao meu comando.
– Talvez você necessite algum pré-requisito básico.
– Que seria... (aguarda complemento)
– Não, você não entenderia em palavras. Mesmo porque a resposta já está diante de você, esperando apenas por ser decifrada.
O homem aguça o pensamento, não sabendo ao certo se o fixa nos fatos, ou em algum deles, ou na relação entre eles, ou entre alguns deles. Há uma pausa mais ou menos demorada (se o homem demonstrasse maior interesse na conversa, ou uma abertura para o diálogo, seu amigo voador falaria muito mais). E o cenário não muda significativamente, bem como esperado.
– A única lição que pude tirar desta vida é que nada tem valor algum. Tudo é tão vão, tudo tão frágil e falso, como cenários de papelão... As coisas mais contraditórias, o bem e o mal, o prazer e a dor, tudo isso demonstra ter a mesma magnitude. Há quem veja beleza nesta identificação, mas eu nem mesmo sei identificar a beleza. Eu gostaria de estar enganado quanto a isso, mas... não há o que eu possa fazer.
– O que você gostaria de fazer agora?
– Em termos de possível?
– Ahn... sim.
O homem respira profundamente e esboça um sorriso.
– Agora mesmo eu gostaria muito de poder tomar um café... logo ali (aponta o prédio descascado).
– E por que você não vai, então?
O homem expira, em desânimo.
– Me falta dinheiro para isso.
– Bem... no mundo em que eu vivo, o café sempre é de graça.
O homem paralisa, boca e olhos abertos.
"Esquizofrenia. Eu sabia que iria acontecer um dia. Já me espreitava desde a adolescência. O santo de Assis e o Dr. Doolittle... Não, ninguém me acreditaria. Eles têm mesmo razão. Não existem santos no mundo dos bancos brancos, das praças-de-jogar-buraco e dos prédios mal-rebocados ou mal-pintados.”
– Você ainda quer café?
Nada de resposta. O homem continua estático.
– Sim, você quer café.
O desejo é tudo.
Sim, você certamente sabe o que é café, o que é um ótimo sinal. Você sabe porque já o provou tantas vezes até reter em si a própria Idéia de café. É por isso que o café está em você, e nada poderá tirá-lo de lá. Você e o café são um só.
“A esquizofrenia tem recursos inesperados, de fato surpreendentes.”
Seu desejo é tudo. O único café existente agora é o seu desejo. A este deu você o nome de CAFÉ. E não há outro. Você está sentindo o café em cada partícula de sua alma. Está totalmente dominado. O café tomou conta de tudo que você é e está. E sempre será assim, enquanto você quiser que seja.
Você já provou o café inúmeras vezes e certamente voltará a provar. A certeza e o desejo são desta forma um só. Você paira sobre um abismo entre o café já tomado e o a se tomar. Este abismo tem gosto e aroma. Tem também a forma de um prédio meio descascado, de grandes janelas panorâmicas, convidativas para transeuntes. Tem som de agradáveis e breves conversas junto a um balcão, sobre o qual se inclina aquela mulher atenciosa, mas cheia de segredos, que costuma chorar de solidão na noite de seu pequeno apartamento suburbano, envolta pelo seu complexo psicológico de transferência derivado do amor electriano, à espera de um homem compreensivo e maduro que se lhe mostre como uma revigorante surpresa há muito esperada.
– Amigo páss...
Sim, sou sua esquizofrenia, se assim preferir me chamar. Mas não importa. Sei que os fins justificam os meios, assim como os fatos são sempre por ambos soterrados. Deveria você dar tamanho valor ao que jaz sob a terra?
A certeza e o desejo são tudo, já o disse. Assim sendo, para justificar este tudo denominado café, dirija-se ao seu destino fenomênico: ingira o Coffea arabica e cative o individuo de sexo oposto do Homo sapiens sapiens.
Com as moedinhas, OK?
(Numa terça-feira, às 3 horas e 15 minutos da tarde, sobre um banco de praça, um garoto acaba de nascer.)
O ENCANTO PERDIDO - Versão resumo / adaptação para roteiro
(para propaganda de curso de Filosofia)
Um homem idoso, de semblante solitário, caminha devagar pela ruas de uma pequena cidade. Evita ter de olhar os transeuntes – só o faz brevemente com relação a um menino que passa segurando um algodão-doce.
PENSAMENTO EM OFF: “A ingenuidade envelhece. Meu pai já dizia. Por que duvidar? Eu me lembro bem. Não obtive benefício algum. Há sempre alguém nos enganando enquanto nos deixamos absorver pela distração. Regras de sobrevivência em um mundo capitalista; te fazem duro e garantem o pão nosso.”
Anda mais devagar ao passar diante do café-bar, olha lá para dentro por um pouco de tempo. Vê homens conversando junto ao balcão. Atrás deste, uma mulher simples porém gentil serve-lhes café.
O homem vasculha os bolsos, mas logo se desanima ao constatar não haver ali dinheiro algum. Olha para os lados e resolve atravessar a rua. Ruma para a praça localizada logo em frente. Senta-se no banco, e fica lá pensando.
PENSAMENTO EM OFF: “A mesma praça. O mesmo banco. Em todos os lugares eles são brancos, em todos os pontos do mundo”
É focalizado um edifício.
PENSAMENTO EM OFF: “O edifício continua no mesmo lugar... Nenhum avião caiu sobre ele antes do noticiário do meio-dia.
A rua e os passantes.
PENSAMENTO EM OFF: “O mundo não sabe que você existe. Deve ter lá suas razões... (...)
Um sol intenso entre o arvoredo da praça.
PENSAMENTO EM OFF: “Hoje seria um dia ideal para se nascer. Eu gostaria de nascer hoje. Contanto que algo diferente aconteça; um outro mundo, um outro tempo... Algo novo e que me surpreenda, que me conceda a chance de ser alguém...”
O PÁSSARO (voz masculina): – Você leu o jornal hoje?
O homem volta-se na direção da voz que o interpela e vê o passarinho empoleirado no encosto do banco, à esquerda.
O HOMEM: – Não, não cheguei a abrir.
O PÁSSARO: – E por quê?
O HOMEM: – Porque eu o abro todos os dias e já sei exatamente o que vou ver. Minha vida não mudará em nada por causa disso... e, de qualquer forma, se tiver algo realmente surpreendente, vai passar na TV.
O PÁSSARO: – É; de fato, é bem difícil que a TV mostre algo muito diferente do jornal. Mas hoje pode ter acontecido algo realmente importante, a nível mundial.
O HOMEM: – Algo importante, hmm... E o que poderia ser?
O PÁSSARO: – Nada além do que já está diante de você, a cada minuto.
O homem silencia e admira a rua à sua frente.
O PÁSSARO: – Foi só uma opinião, entenda como quiser...
O HOMEM: – Eu estou aqui precisamente para encontrar algo que os jornais não mostrem. E o que eles mostram é o mesmo que eu vejo todos os dias, nada mais; nada que me faça... (pausa)
O PÁSSARO: – O que você está vendo agora?
O HOMEM: – Uma vida sem valor... Vidas sem valor... A única lição que pude tirar desta vida é que nada tem valor algum. Tudo é tão vão, tudo tão frágil e falso, como cenários de papelão... As coisas mais contraditórias, o bem e o mal, o prazer e a dor, tudo isso demonstra ter a mesma magnitude. Há quem veja beleza nesta identificação, mas eu nem mesmo sei identificar a beleza. Eu gostaria de estar enganado quanto a isso, mas... não há o que eu possa fazer.
O PÁSSARO: – O que você gostaria de fazer agora?
O HOMEM: – Em termos de possível?
O PÁSSARO: – Ahn... sim.
O homem respira profundamente e esboça um sorriso.
O HOMEM: – Agora mesmo eu gostaria muito de poder tomar um café... logo ali (aponta o prédio descascado).
O PÁSSARO: – E por que você não vai, então?
O homem expressa desânimo.
O HOMEM: – Me falta dinheiro para isso.
O PÁSSARO: – Bem... no mundo em que eu vivo, o café sempre é de graça.
O homem paralisa, olhos e boca abertos.
PENSAMENTO DO HOMEM EM OFF: “Esquizofrenia. Eu sabia que iria acontecer um dia.”
O PÁSSARO: – Você ainda quer café?
Nada de resposta. O homem continua estático.
O PÁSSARO: – Sim, você quer café.
Enquanto ouvimos a voz do pássaro em off (próximo parágrafo), segue-se uma cena: o homem entrando no “café-in”, bem confiante e alegre; em seguida cumprimenta algumas pessoas nas mesas e conversa algo com elas, brevemente; dirige-se ao balcão e lá é atendido por uma simpática mulher de meia-idade (olham-se fixamente nos olhos por um rápido instante). Então vemos esta mesma mulher entrando em seu quarto, sozinha, e logo se admira no espelho do roupeiro. Expressão triste.
Voz do pássaro EM OFF: “Mas o café está em você, e nada poderá tirá-lo de lá. Você e o café são um só. Há de fato um grande desejo, e este desejo é tudo. A este desejo deu você o nome de café. E não há outro. Você já provou o café inúmeras vezes e certamente voltará a provar. Você paira sobre um abismo entre o café já tomado e o a se tomar. Este abismo tem gosto e aroma. E tem grandes janelas panorâmicas, convidativas para os transeuntes. Tem som de agradáveis e breves conversas junto a um balcão, sobre o qual se inclina aquela mulher tão atenciosa, mas cheia de segredos, que costuma chorar de solidão na noite de seu pequeno apartamento suburbano, envolta pelo seu complexo psicológico de transferência derivado do amor electriano, à espera de um homem compreensivo e maduro que se lhe mostre como uma revigorante surpresa há muito esperada.”
O HOMEM (AGORA SORRINDO): – As idéias...
O PÁSSARO (ANTES DE VOAR): – Mas não se esqueça das moedinhas, OK?
O pássaro sai voando e o homem o acompanha com o olhar, meio confuso e muito pensativo. Seu rosto encerra a cena.