O ÚLTIMO PESADELO

O ÚLTIMO PESADELO

Sentado sob a única jaqueira de seu sitio, o caboclo sonolento pensava e sorria. De barriga cheia, o palito de "fósfo" a dançar-lhe entre os raros dentes, seu olhar passava pelas frondosas mangueiras, que êle sempre achara que Deus cuspia dos céus, tal a quantidade e os locais incríveis de onde elas brotavam.

Ao fundo, na casinha de paredes de tábua macheada nova --- toda doada pelo calhorda do vizinho lá da cidade grande (azar o dele, não lhe pedira nada!) -- seus 3 pequenos e a mulher descansavam o almoço em redes na sala escura, sob a refrescante sombra do teto de palha de anajá.

"Mané-Chêra" estava feliz! Ganhara a "questã" da divisão das terras no último instante e aqueles 10 metros vezes 3 km e tanto íam aumentar em muito a herança dos seus. A verdade é que os pés de café cortados na raiz, que êle deixara aqui e ali na picada demarcatória feita pelos brancos da cidade influíram demais na decisão da Juíza.

Mas é certo também que aqueles anos todos doando frutas e farinha ao único oficial de Justiça do lugar foram o trunfo maior em seu favor, pois não ignorava que este é quem vinha confirmar "in loco" os dados constantes dos processos de invasão de terra lá do Forum.

Os "barão da capitar" não precisavam das terras e só vinham passar uns fins de semana lá,,, 'inda íam querer demarcar as terras deles conforme aqueles papéis caducos que a filha do velho Ananias lhes cedera, junto com a venda do sítio ao lado?

E justo do falecido, que permitira à Ernestina juntar os trapos com um estranho, gente de fora, um "sulista" qualquer, cheio de idéias marotas e que trouxe com êle uma "tar de talavisão" que foi uma disgraceira pro lugar?

O mulherio passava o dia inteiro na casa do fulaninho, era uma falação danada e o troço estava estragando "inté" os pequenos. Foi graças a êle que os machos do lugar se reuniram e botaram os dois prá correr... afinal, o terreno do vizinho tinha muitas frutas e êle costumava fazer umas caçadas noturnas (de arma e tudo!) muito rendosas.

Deu um arrôto, sentiu a cabeça um tanto pesada e concluiu com seus botões que o vinho de cupuaçu que tomava no taberneiro lá da vila, antes de seguir viagem para o sítio, ultimamente não vinha lhe fazendo bem.

É, aquele refresco gelado de frutas lhe lavava a alma mas, além de atingir-lhe o fígado, quase o matava de sono. 'Tá certo que o sol do meio-dia do norte do Pará é de assar passarinho voando mas êle nascera ali e, com um chapéu de palha na cabeça, quase não dava para sentir o calor.

Agora, que esse sono estranho ao voltar na "montaria" -- pequena canoa de tronco de árvore escavado a fogo -- dava prá desconfiar, isso dava.

E caiu no sono, recostada à mãe das únicas jacas da redondeza, a cabeça pousada no ombro esquerdo e trazendo na bôca escancarada o palito milagrosamente preso à grossa saliva. Como derradeira lembrança, a imagem do taberneiro sacripanta em animada conversa com o rico grnafino, seu confinante, e as estridentes gargalhadas deste. E "Mané-Chêra" dormiu. Dormiu e sonhou.

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Uma sinuosa estradinha de areia dourada serpenteava floresta a dentro, desaparecendo entre as cinquentenárias mangueiras atrás do seu casebre,

De lá vinham sons, os milhares de ruídos de todas as horas e que transformam a expressão "o silêncio da noite na floresta", muito usada pelos citadinos, numa piada de mau gôsto. Mas não era um barulho qualquer que aquele misto de chinês com kaiapó ouvia... não, a coisa era compassada, tinha ritmo, parecia a "Mané-Chêra" semelhante ao som que êle ouvira naquela caixinha do Diabo, na casa do seu confinante, quando umas crioulas de bunda de fora e rebolado indecente sapateavam feito criança com formiga-fogo no pé.

Aguçou os ouvidos, afinou a vista o quanto pôde e não quiz acreditar no que via: sapos e grilos aos montes, pássaros às toneladas, bípedes e quadrúpedes sem conta vinham evoluindo mata afora, numa compacta e perfeita formação, qual magistral Escola de Samba.

Os sapos eram cuícas, os grilos imitavam reco-recos e tamborins e a passarada cuidava de quase todo o resto, com os cabritos, bois, cavalos e até veados fazendo a marcação, do tarol ao surdão.

Os galináceos todos, do galo ao peru, entraram também na dança, sob a direção dos papagaios, os maiores imitadores sonoros que a Natureza criou.

E passaram pelo nariz do incrédulo "Mané-Chêra", boquiaberto de espanto, dando todos sonoras gargalhadas, numa zoada mais parecendo o crepitar do fogo em madeira sêca. Logo atrás, confundindo-se com o som da bicharada, um inacreditável exército de cupins gigantes zunia em direção a êle (e a sua casa) com olhares famintos.

Uma nuvem negra de asas ruidosas cobriu-lhe a visão, sentiu o corpo ferver de calor pelas picadas mas estava pesado demais para levantar-se. Viu de relance sua bela casinha esboroar-se no chão, esfarelada pelos insetos e um sinal de alerta vibrou em seu cérebro, pois seus filhinhos e a cara-metade estavam sob os escombros dela.

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Acordou sobressaltado e o suor congelou-se no rosto crispado com o que viu. Sua casa e tudo o que nela continha ardia já quase só nas cinzas, os esteios negros de fumo apontando os céus, o estalar das labaredas nos restos de palha sêca do que fôra o teto.

O cheiro de carne queimada fê-lo adivinhar a derradeira desgraça, o último pesadelo... e "Mané-Chêra" desmaiou ante o impacto daquela estúpida realidade, diante da extensão do seu infortúnio.

Dizem que acordou louco, ouvindo a floresta inteira gargalhar pelo resto de seus dias. Só que êle sabia bem de quem eram aquelas risadas !

"NATO" AZEVEDO

(Publicado na coluna "Espaço Aberto" do jornal DIÁRIO DO PARÁ, de Belém, em 14 de maio de 1988, graças ao incentivo do jornalista e ator Cleodon Gondim, a quem agradeço demais o apoio recebido.)