CONTO NOTURNO
Ouço o som musical do computador sendo desligado! Sinto a respiração do hóspede do outro lado do quarto, e os seus dedos comprimindo as suas teclas. O silêncio foi corrompido! Mas, logo tudo se aquieta.
Longe o ruído de uma sirene corre pelas ruas. Presumo o barulho ser de uma ambulância levando um enfartado, ou uma vítima de acidente de trânsito, ou de uma bala perdida. A cidade nestes últimos anos respira violência!
Raul tinha se mudado na pensão do casarão da esquina. A dona uma viúva de meia-idade vivia depressiva. O seu psiquiatra lhe sugeriu um trabalho!
Mandou o seu currículo para várias empresas. Esperou com expectativa. As semanas passaram e como ninguém a contatava resolveu agir. Montou uma pensão!
A mulher sempre se olhava no espelho. Juntava as mãos em frente ao rosto e olhava pela cavidade formada neste contato. O nariz pequeno dava um que de refinamento ao rosto. Não explorava mais nada nesse momento e assim estática olhava o nariz! Ela neste momento se tornou um nariz!
Um pensionista roncava no quarto ao lado, estudou até de manhã, agora descansava.
A mesa da refeição se encontrava farta. Arroz, feijão, brajolas, legumes cozidos, salada de almeirão, tomate..., enfim, a dona da pensão sabia cozinhar, como ninguém.
Lindinaura, a ajudante limpava e retirava as louças para lavar, secar e guardar. Logo tudo estaria arrumado e impecável.
E a mulher?
Em frente ao espelho, explorando a sua boca. Imóvel! Reconhecia na sua boca as mentiras e as verdades escondidas atrás dos dentes perfeitos e da língua da cor do rubi.
Sua boca carnuda, sempre tão disputada pelos meninos da escola. Depois de casada encontrou com o seu primeiro namorado na igreja. Voltou ao passado! Resistiu o quanto pode, mas, de fato pode comprovar a sua fragilidade, sua imoralidade, e sua carência por carinho, após alguns encontros; entregou-se ao seu primeiro amor.
Fingia não saber da corrupção do seu amante na câmera legislativa, e da sua omissão as promessas da campanha. Tinha em seu amante um homem carinhoso, afoito e apaixonado, o oposto do seu marido, que a tratava com frieza.
Sabia que os encontros furtivos um dia poderiam ser descobertos ou acabar! Mas, enquanto isso não acontecia se deixava explorar pelas mãos do amante apaixonado!
Os varais repletos de roupas secam ao sol do verão. O calor a sufoca! O suor escorre pelos seios arredondados, de bicos róseos. Medo do câncer? Sim, as mulheres da sua família tinham propensão à doença. Sempre que podia fazia o toque nas mamas para detectar possíveis caroços.
Espelho! Na lavanderia, enquanto dobrava as roupas visualizou a sua figura. Parou! Seus olhos coloriam seu rosto, com um verde cristalino. Brilham enigmáticos. No fundo das pupilas, o reflexo mostrou uma mulher enfraquecida pelo tempo. Longe de ter o viço da juventude em que podia conquistar as pessoas com um simples abrir e fechar dos olhos.
Raul percebeu a tristeza nos olhos da dona da pensão. Ele sempre que podia a espionava. Sentia por ela, algo mais do que uma doença, como lhe quis mostrar o seu psiquiatra. Era como olhando para ela uma energia forte e inexplicável o sugasse para dentro dela. Sentia as suas dores, as suas alegrias, enfim, ele era ela e ela era ele!
Algo não estava bem no seu corpo? Ou seria no corpo dela? Raul precisava que ela fosse ao médico. Mas, como fazer isso sem assustá-la?
Foi à floricultura e comprou uma orquídea e colocou o nome da Vitória e não escreveu mais nada. Deixou o pacote no tajer da sala de visitas.
Passou pela sala duas vezes e a flor ainda estava lá. Ficou receoso! E se o marido a encontrasse antes dela. Por sorte isto não aconteceu.
Não dormiu passou a noite pensando nela.
O café da manhã sempre foi bom, mas para ele estava especial. Um bilhete deixava seu rastro embaixo do pires. Foi ao seu encontro na Capela do Campo Santo.
Ajoelhada com as mãos póstumas parecia o retrato de uma deusa. Conversaram por um longo tempo.
No dia seguinte ela marcou consulta em um oncologista.
Um mês depois o diagnóstico: câncer de mama.
O tratamento durou muito tempo. O seu marido não suportou a pressão e a abandonou.
Ele como a salvou estava sempre por perto dedicado e ainda mais apaixonado.