Retorno
Foi no dia seguinte ao seu enterro que ele voltou; estava sentado no mesmo canto da sala em que costumava se sentar todas as manhãs para escrever, e me recebeu com as mesmas palavras, expressas no mesmo tom, enquanto mantinha a mesma pose usual, de modo que todo o acontecimento pareceu, a princípio, bastante corriqueiro. Meu filho mais velho ainda não tinha um mês, e eu cruzei a sala imerso em uma pesada tristeza pela morte de meu pai, enquanto o cumprimentava da mesma maneira distante que fazia todos os dias.
Já tinha dado alguns passos corredor adentro, quando voltei radiante e apressado para reencontrar meu pai ressuscitado, mas quando retornei à sala, a cadeira em que ele sentara já estava vazia, e essa foi a última vez que o encontrei, excetuando as que ocorreram durante os sonhos. A tristeza que me esmagava após a morte de meu pai estava fortemente acentuada pela convicção ferrenha de que o dia de sua morte tinha sido, de algum modo, equivocadamente apressado, impossibilitando que eu falasse com eles várias coisas que eu há muito vinha adiando. Era imperativo que vários daqueles assuntos tivessem sido tratados entre nós, e a pendência resultante de sua morte revelou-se francamente absurda, mais ainda pelo fato de que um único dia de vida teria sido suficiente para resolver aquela enorme e injustificada lacuna, que nos afastava radicalmente como um abismo o faria, embora pudéssemos estar tão próximos; era essa constatação do absurdo da data daquela morte que me espicaçava mais do que qualquer outra coisa, e mais até do que a própria morte; a convicção presumida de que mais um único dia teria sido a solução para o impasse tão imenso quanto absurdo. Sua presença tão natural no mesmo canto da sala em que costumava ficar, me fez ver que tudo teria transcorrido como de costume, na mesma ordem absurda em que sempre transcorriam todos os fatos. Talvez tenha sido como de hábito que mais essa manifestação do absurdo tivesse sido para mim tão reconfortante, revelando o fato de que a presença de meu pai por mais um dia implicaria nos mesmos silêncios dos tantos dias que haviam passado, e que todos os assuntos tão urgentes teriam sido mais uma vez adiados como sempre o foram. Foi a clareza de tal constatação me tranqüilizou imensamente.
Os que viriam para o seu aniversário tinham chegado para o enterro, mas, já haviam partido, o que permitiu que a tristeza ficasse mais leve, ainda que constante, mas há coisas que só o tempo pode amainar.
Nas vezes seguintes ele só reapareceu em sonhos, dos quais eu já nem me lembro, e cuja recordação se resume agora quase que exclusivamente à constatação de sua presença; mais que isso só recordo que passou suas últimas instruções, que já não lembro quais eram, e que nem ao menos consigo lembrar se chegaram a ser explicitadas conscientemente, quero dizer, já não sei se esses foram daqueles sonhos tão vagos dos quais só nos lembramos que aconteceram, mas cujos detalhes escapam assim que acordamos, embora seja possível que tenham sido daqueles sonhos conscientes em que temos uma completa clareza de tudo o que fazemos e dizemos, conseguindo argumentar com precisão, defendendo com os mesmos argumentos os mesmos pontos que seriam defendidos racional e conscientemente. Também não sei mais quantas foram as vezes em que ele apareceu, embora lembre que suas vindas tivessem rareado até quase o desaparecimento que talvez já tenha sido total depois de tantos anos, embora as elucubrações nesse campo devam necessariamente permanecer um pouco inconclusivas, dada a natureza misteriosa do tema. De qualquer forma tenho uma espécie de suspeita muito convicta, que é um sentimento fortemente paradoxal e quase inexplicável, de que algumas de suas instruções diziam respeito aos textos que ele havia escrito, e que eu deveria guardar até um momento adequado que me seria revelado, embora eu não saiba direito o que esteja escrevendo. Também tenho uma lembrança ainda mais vaga da conversa sobre o meu filho, então, recém nascido, e embora lembre do fato, não me restou absolutamente nenhuma indicação sobre os detalhes do diálogo, de qualquer forma, agora que, após tantos anos, entrego a ele alguns dos manuscritos, sinto, com isso, uma satisfação intensa que seria quase inexplicável, não fosse o sentimento, talvez irracional, de que ao lhe confiar esses papéis estou completando uma tarefa solenemente prometida, o que me deixa imerso em uma espécie de leveza jovial que há muito eu não sentia. Não entrego, junto com os manuscritos, nenhuma instrução, na esperança de que meu filho saiba, melhor que eu, o que fazer com os textos de meu pai. Também espero que a ausência de instruções não lhe crie nenhum peso; a transmutação artificial dos manuscritos em um fardo, tantos anos depois de sua criação constituiria um absurdo gigantesco; que eles se tornem, pois, um presente curiosamente agradável, umas migalhas oriundas de outros tempos, mas com o tempero ainda ativo.
À memória de meu pai.