Quem? Onde?

Quem? Onde?

No primeiro final de semana do novo ano, o Sr. Manuel andava com problemas de insônia. Ligou para os amigos; o ignoraram respeitosamente, afirmando diversos compromissos estranhamente inadiáveis, coisas do novo milênio, sabe? Novos trabalhos, rotinas. Entenda, caro companheiro, nada pessoal, é que o mundo anda tão rápido que não posso parar. Tentou então a antiga namorada; número errado meu senhor, nunca existiu nenhuma Ana por aqui. Ora, faça-me o favor de ligar mais cedo, seu safado, ocupado, ocupado, ocupado. Pensou um pouco mais e notou que poderia passar a noite muito bem, sem sair, sem ver ninguém, tendo como companhia as reprises dos grandes clássicos futebolísticos de tempos remotos, com canelada, cacetada, marmelada e gol de barriga. Arte sempre, que se dane o Picasso. Antes mesmo dos acréscimos do segundo tempo, onde comentariam a voadora do torcedor no jogador errado, quem liga de onde ele veio?, ora, mas é lógico que foi um atentado!, mais três minutos de porrada?, o Sr. Manuel caiu no sono.

Acordou lembrando dos amigos trabalhadores, da namorada fantasma, da canelada e da voadora que não viu, mas não recordou do sonho que teve. Aborrecido, olhou o relógio, cutucou o controle remoto da televisão, tantos botões, meu deus, pra que diabos serve esse traço verde aqui do lado, ah, alteração de cor, e desligou o aparelho. Tomou banho, preparou o velho café da manhã com ovos, pão, ovos e café e desistiu de comer. Nunca comia antes de ler o jornal. Caixa de correios. Nenhum jornal. Algo estranho. Um envelope branco. Uma foto. O Sr. Manuel se viu sentado no sofá, assistindo o jogo. Era a mesma roupa de ontem, a mesma cara de tédio insone, devia ser ainda o primeiro tempo, e a posição... Como teriam tirado uma foto daquelas? O fotografo teria de ter ficado entre Manuel e a televisão, mas não havia ninguém. Hora nenhuma.

Retornou para a cozinha, olhou tudo, testou as janelas, esqueceu definitivamente do café. Andou mais um pouco, investigou a sala, os dois quartos, o banheiro e voltou para o sofá, onde sentou e encarou a televisão. Mais precisamente, o ponto médio entre ele e o aparelho. Definitivamente, não havia ninguém. Nada entraria por canto algum da casa. Nenhum arrombamento, muito menos barulho. E as chaves? No mesmo canto. Foto bem feita. Esses programas novos de computador... Bonita a foto. Bonita e estranha. Melhor deixar pra lá.

O tempo passou devagar e, como sempre, o Sr. Manuel não arranjou companhia. Decidiu sair só, aproveitar o ultimo dia de liberdade antes de voltar para a escravidão, e acabou indo num bar qualquer, onde não bebeu muito e comeu petiscos leves. A foto ainda o incomodava. Parecia coisa do Le Carré. Alguém saindo do frio, vai saber? Não tinha lógica nenhuma. Melhor ir para casa. Dormir cedo. Tomou banho e saiu de toalha, os pijamas inexplicavelmente nunca ficavam no canto certo. Estavam agora lá na mesinha do quarto, bem longe do armário. Manuel pegou a calça e vestiu-se. Passou um tempo admirando a camisa e decidiu dormir de torso nu. Noite quente. Nada de frio. Adeus, Le Carré.

Levantou mais cedo do que de costume, sem ressaca, mas lembrando dos amigos, da mulher e do jornal que deveria ler. Caixa de correio. Jornal. Envelope estranho. Frio na espinha. O periódico caiu no chão graciosamente assim que o Sr. Manuel, tremendo, viu uma foto onde ele mesmo era o assunto principal. Dormia de torso nu.

A situação era mais estranha do que deveria. Tornou ao quarto, afastou a cama, o tapete, o armário pesado, muito pesado, a mesinha, abriu gavetas, procurou portas escondidas, um espelho falso (Acabou quebrando o simples espelho comum), câmeras quase invisíveis, despedaçou madeiras, com ajuda do martelinho emprestado pelo irmão, e achou apenas um relógio que julgava estar perdido e que marcava a exata hora em que o Sr. Manuel encontrava-se duas horas atrasado para o trabalho. Saiu tremendo, depois de ter certificado a validade das portas e cadeados de todo o recinto, e entrou no carro.

Durante o caminho pensou no Horla, no fotografo Horla, no Maupassant louco, em contos góticos, no Jack Palance dizendo calmamente “acredite se quiser”, na tremedeira que não passava, na sensação de estar sendo seguido sabe-se lá por quem, um assassino, um voyeur, o Horla assassino voyeur, não havia porto, então não havia Horla, na possibilidade de estar também ficando louco, sem nunca ter escrito nada, morrer doido, gritando “acredite se quiser” e quase, por muito pouco mesmo, não bateu o carro. Ignorou os gritos, dirigiu mais um pouco e logo chegou ao trabalho. Olhava para os lados, esperando o flash, a lente, o grito de “sorria”, mas a única coisa que ouviu foi o parecer de alguns colegas de trabalho, não pelo atraso, mas pela expressão cadavérica que carregava. Estava pálido, estranho, trêmulo, olhos fundos, melhor tomar um remédio, não? Sente-se, já volto.

Não conseguiu explicar nada para ninguém. Os comentários mais sussurrantes afirmavam ser um caso antigo, amor de fato, que por alguma razão deu terrivelmente errado. Outros, menos discretos, logo perguntavam se era familiar doente, morto ou prestes a morrer. Não, não e não. Melhor trabalhar para esquecer. Amanhã já fica tudo bem. Executou as tarefas do turno da tarde automaticamente, escrevendo e copiando, xerocando e assinando, sem esquecer da mão invisível e do obturador silencioso. Fotos bem tiradas, alguém treinado.

Voltou para casa de carona no próprio carro, outro companheiro não o deixou voltar só. Conversaram quase animadamente sobre nada e, já às portas da residência, resolveu comentar o assunto com a alma caridosa que o trouxera. Entraram os dois e logo foram para a cozinha. O Sr. Manuel deixou o colega, Zé Maria, lá das finanças, escolher qualquer comida e foi para a sala pegar as fotos. Zé Maria as viu com desconfiança, interesse mediano, e comentou apenas que as imagens tinham sido muito bem capturadas. Quem era o autor? Ninguém. Como assim ninguém? Ninguém. Assim não dá. Não tem câmera nova, nunca teve câmera velha, tiraram essas fotos. Quem? Não sei, não vi. Nunca tem ninguém. Conversaram sobre o tema e o que a principio parecia brincadeira de mau-gosto, acabou se tornando, para um homem tão acostumado com contas e lógica numérica, uma péssima piada de mau-gosto. Não adiantou argumentar. Logo mudou de assunto e foi embora. Até amanhã. Até.

O Sr. Manuel não dormiu. Ligou todas as luzes, a televisão, o som, claro, tudo num volume cômodo, e foi ler um livro. Leu, tomou café, voltou para a história, coisa alegre, contos para crianças, nada de ler manuscritos antigos, releu, escreveu aqui e acolá, tomou mais café e se recusou a fechar os olhos por períodos demasiadamente perigosos. Reviu uma fita velha sobre gols perdidos, assistiu a um filme francês ruim, lembrou do Maupassant, tomou mais café, tentou esquecer o louco, o “quem sabe?”, o “Acredite!” tão repetido na volta do trabalho e viu a manhã nascer debilmente. Não tomou banho. Esperou a hora do jornal, investigou a caixa de correios, nada dentro, e, quando o pobre homem da bicicleta apareceu, o indagou sobre fotos e envelopes estranhos. Nenhum. Recebeu o que tinha de receber do jornaleiro, inspecionou novamente a caixa, nada, e foi tomar banho mais tranqüilo. Talvez tenha acabado de vez.

Ao sair do banho, praticamente preparado para ir ao trabalho, entrou no quarto e notou um volume estranho junto ao travesseiro não usado. A vista ficou turva, ouviu uma voz estranha, a voz de um escritor de contos bizarros, a voz do Jack Palance, e apanhou o objeto. Era o envelope branco. Lá estava o Sr. Manuel trancado a porta que segundos antes acabara de abrir para Zé Maria. Era um plano bonito, bem estruturado, com a luz do terraço batendo em uma das faces do anfitrião. O fotografo deveria estar ao lado, à sua direita, à mesma direita para a qual ele olhou assim que Zé Maria foi embora. Nunca houve ninguém lá. Nunca.

Acabou com a sala. Acabou com o sofá. Rasgou almofadas. Quebrou o piso e a parede mais próxima da posição do fotografo invisível. Abriu a televisão. Suou. Ligou para a policia, desligou sem dizer nada porque sentia que um choro invadia o pedido de ajuda, deixou o telefone no lugar de sempre, andou para cá e para lá, circulou, chutou detritos do que antes era um quadro bonito do Magritte, ligou de novo. Não, não sabia quem era. Não, não viu ninguém. Não tem nada arrombado. Tem coisa quebrada por causa de uma reforma. Não, as fotos são bonitas. Não tem como saber, acredite. É estranho. Não podiam fazer nada.

O Sr. Manuel não queria sair de casa, mas também não podia ficar lá. Bizarro demais. Tinha que haver alguém, um motivo, uma explicação. Agarrou as três fotos como quem segura olhos humanos recém encontrados por ai, fitou-as com asco, com medo – o único indicio de uma presença invisível, muda, quase morta, mas que planificava tão bem, focava tão bem, com uma naturalidade de mestre, ele até estava bonito em uma delas. Olhou melhor, não havia sinal de nada, de nenhuma aparelhagem comum, mão invadindo o plano, tremedeira, falta de exposição. Era aquilo e nada mais. O sinal crasso de uma presença disposta a fazer contato do modo mais horripilante possível, dando provas de que existia sem nunca se mostrar. Analisava. Focava. Talvez estivesse fazendo isso agora. Fotos e mais fotos do desespero, da normalidade do desespero, sem simular, sem atuar, a cara da falta de explicação, da não-presença de um cartaz anguloso afirmando ser uma daquelas brincadeiras de programas de auditório, tão cheios de bugigangas e falta de amor-próprio; flashes sendo disparados por outra forma de percepção, várias câmeras, vários deles, rindo, quase pedindo uma pose. Viu rostos de porco em corpos humanóides, levando o visor ao olho, vendo o reflexo no espelho, um ralhar estranho naquelas coisas, algo indefinido, delimitado talvez por um braço invasor, cuja mão tem um dedo que dispara e dispara e dispara. Decidiu queimar tudo.

Ligou o fogão, quase desmaiando por achar estar sendo seguido por vários olhos, a teoria da retina que tudo vê, absoluta, olhos de aranha, do deus-aranha, do ser estranho que só focava e disparava, pegou todas as imagens de si mesmo e jogou-as no fogo alto.

Antes de cair no chão sem sentidos, ouviu um grito doloroso, desesperador, que vinha de todos os cantos da casa. Um baque surdo. Seria o seu corpo?