A Testemunha
                                                               Autora: Flávia Melo
 
O fogo frio do luar incendiava o sertão de Canudos. Ao norte do arraial, na Várzea da Ema, os devotos resistiam em fronteiras de pedras, ao tiroteio cerrado dos batalhões de São Paulo e do Amazonas. Completara-se o cerco dos domínios de Antônio Conselheiro. O canhão que do alto da favela arrasara a igreja e a praça calava-se, aquela noite, e o seu silêncio era uma sinistra mensagem de fim próximo.
Vultos rastejantes esgueiravam-se por entre a sombra dos casebres arruinados, emergindo, de vez em quando, na claridade pomposa da lua. Eram pequenos grupos de três, de quatro mulheres vestidas de pardo e arrastando sempre um defunto dentro da rede.
Atrás do santuário já sem torres e junto a uma parede que desafiara o bombardeio, mantendo-se ereta, José Félix, acompanhado pelo Beatinho e mais dois velhos, cavava buracos fundos, bem largos, onde as mulheres desgrenhadas vinham atirar os fardos meio dilacerados pelo arrastão no solo áspero.
-   Ontem foi o João da Mota. Hoje foi o Chiquinho. A várzea ficou sem comando, - dizia José Félix, amargamente, entre duas pazadas de terra.
-   Nosso Senhor Bom Jesus que os receba em sua santa Glória. Foram irmãos em tudo. Na vida e na morte. Na bondade e na machidão. Não mataram menos de cem...
-   A Várzea está sem comando. E era a única brecha por onde o mestre conselheiro poderia escapar.
Um dos velhos gemeu, na outra extremidade do buraco:
- Estou com uma dor na caixa dos peitos!
- Espicha, couro velho! Mais pior é quem está nas pedras comendo bala.
-   Quando o Macambira soube que Chiquinho tinha arreado, foi tomar conte de seu bacamarte.
-   Qual! Macambira não é homem de frente a frente! Só faz bom na tocaia.
-   Beatinho, eu lhe digo: esta hora é de tudo ou nada.
Ouviram um rumor de vozes e de passos na areia seca. O buraco já estava bem fundo. Atiraram as pás para cima e guindaram-se pelas beiras de terra frouxa. O luar recebeu-os de volta, envolvendo-os no seu véu de irrealidade. O Beatinho, arquejante, suado, suado, com a terra fria nas profundidades colando-se-lhe à barba e entrando-lhe pelo decote do burel, sentou-se no chão, encostou-se à parede. A desolação da praça estendida por diante era uma coisa que ofendia a vista. Principalmente sob aquela lua careca e indiscreta. Fechou os olhos. Buscou na memória um consolo para o desalento. Ah! Aquela mesma praça, outrora, quando nela se reunia um povo desamparado e semivivo, alimentando-se das palavras quentes com que Antônio Conselheiro anunciava a esperança. Aqui, nesta terra virgem, as pedras se tornariam blocos de prata e das montanhas desceriam torrentes de leite e mel. A semente poderia ser semeada com gosto, pois germinaria em ouro puro.
Às seis horas, acendiam-se as fogueiras e os famintos da esperança vinham para rezar, absorvidos pelas próprias consciências de todos os pecados a que o mundo os obrigava.
Antônio, alumiado pela fogueira, erguia o rosto para o céu e anunciava a esperança. O céu na terra, pela fé, pela penitência de um povo martirizado por todos os flagelos.
O sino cantava tão claro na noite recém-aberta e o devoto mais brabo, mais desumanizado, largava no chão os instrumentos de morte. A infância renascia na prece. Talvez ainda fosse tempo de esperar...
Esperar justiça, esperar a recompensa por um longo sofrimento de sol a sol, esperar a restituição de uma humanidade roubada...
Tão reluzente era a esperança nas falas de Antônio Conselheiro!...
Ah, bons tempos de penitência, de muita reza e muito jejum! O punhado de farinha e a caneca d’água - um banquete. E as mulheres todas eram uma só, pois usavam – e a ordem era severa! – camisolas pardas atadas à cintura pelo simbólico cordel azul. A lei era a da penitência e não havia flores para os cabelos...
Quando setembro, os lírios da Várzea, vermelhos e geminados no mesmo pendão, revestiam o altar-mor do Senhor Bom Jesus da igreja nova.
Tocava o sino e já não importava ao devoto quantos inimigos havia derrubado na estrada, já não importava à mulher tão magra, de que acaso lhe nascera o filho.
A igreja estava acesa, o altar, coberto de lírios vermelhos, e a pureza da infância ressuscitavam na prece, na entonação dos benditos.
O santo era um homem silencioso e humilde, só erguia a voz para cantar o seu Deus ou para falar em nome de Deus. De hábito pardo e cajado tosco, governava o arraial pela força do exemplo. Jamais erguia os olhos para mulher alguma e, certa vez, quando ele, Beatinho, lhe contara que a cabocla Ponciana andava exibindo os ombros bonitos pelo decote rasgado da camisola, o santo mandara marcá-la a fogo com a letra P, que significava penitência...
Na verdade, mais valia tinham as cabras, para o santo, do que as mulheres. Ensinava, pelo exemplo, que as mulheres eram coisa quase terra, feitas para o arado e para a semeadura. Ensinava, pelo exemplo, que o amor a Deus jamais devia ser repartido com as mulheres. Mesmo às beatas, dentro da igreja, só lhes falava voltando as costas.
 - Não é hora de dormir, irmão. Há dois finados para encomendar o corpo.
 O Beatinho reabriu os olhos. José Félix afastou-se e viu o aglomerado de vultos pardos à beira do buraco. A zoada distante do tiroteio e a presença dos mortos envoltos em suas redes impunham silêncio. Ninguém chorava, ninguém lastimava. A hora era de confiar em Deus, sem perguntas, sem vontades.
-   Quantos são?
-   Dois. Mas dizem que ainda há mais de dez para trazer.
-   Então deixa trazerem tudo. O buraco é grande e cabem uns quinze defuntos, bem arrumados. Depois, rezo uma encomendação só para todos.
José Felix arredou-se, mal podendo consigo, confabulou com as mulheres que, apressadamente, atiraram os fardos para dentro da cova; em seguida caminharam juntas para o lado das casas.
O Beatinho levantou-se de seu canto e apanhou um varapau caído à toa. Precisava arrimar-se, as pernas estavam frouxas. Teria que dar ao santo a notícia de que o combate estava pegado na Várzea da Ema, ao norte. Protelava o mais que podia as notícias ruins. Contornou o montículo de metralha que mandara ajuntar, depois que o bombardeio destruíra as duas torres da igreja nova. O sino coroava os destroços, silenciado para sempre – o sino de Canudos.
Subiu os degraus muito altos da escadaria maciça, fornidos em pedra lavrada em fogo. O frontispício ainda estava de pé, mas, dali para cima, tudo voara, tudo explodira, tudo se estilhaçara. Com o auxílio do varapau conseguiu chegar ao topo da escadaria. Encostou-se a um pilar para tomar mais força. Olhou para a praça enorme. Outrora, dez mil devotos se reuniam para os terços, as cabras ao largo, havia papoulas e risos-do-prado. Não. Era melhor não olhar. Reuniam as forças que lhe restavam e atravessou a arcada. Desde que começaram a guerra, o santo não saíra mais do santuário. Mesmo durante o bombardeio, ali permanecera, enquanto as imagens tombavam-lhe aos pés. Só por milagre permanecera vivo na manhã em que uma granada explodira na base no altar-mor, derrubando o Bom Jesus da base de cristal azul.
O luar jorrava pelas aberturas do teto, revelando criminosamente aquilo que devia ficar sepultado em trevas. A república era mesmo o fim do mundo, como pregara tantas vezes Antônio Conselheiro. Até os santos assassinava. Os belos santos de cara macha – Santo Antônio, São José, São Jorge. Todos derrubados de seus nichos transformados em caliça. Santas, não havia. “Um dia edificaremos uma capelinha branca para a virgem Maria” – prometera o mestre.
A claridade inundava o lado direito, justamente para onde tombara o Senhor Bom Jesus, partido em três pedaços. A cabeça lá estava ao pé de um pilar, com seus olhos desamparadamente azuis. Fragmentos de cristal de rocha reluziam esparsamente de mistura com pedaços de bancos e paredes.
Auscultou algum sinal de vida, naquela desolação. Antônio Conselheiro devia estar refugiado na banda da sombra.
-   Mestre, onde está vossa mercê?
Um gemido foi a resposta. Orientado pelo som arrastou-se por entre as coisas quebradas até o lugar onde fora o batistério. Sentiu um cheiro ácido de urina e fezes. Quando acostumou a vista. Lobrigou o vulto comprido estirado de bruços no lajedo.
Tateou-o. Era um montinho de ossos arquejante, a respiração ia e vinha em ritmo apertado. Era difícil adaptar-se ao fedor.
-   Mestre, está escuro. Precisa lavar-se e trocar de roupa.
-   Deixe...Vou me arranjar como puder.
A voz já não era mais a mesma, enfraquecera, parecia uma voz esgarçada. O coração esfriou. Aquilo ainda era mais terrível do que os cacos dos santos. O santuário desfeito abrigando Antônio Conselheiro esborrachado em fezes.
Seu estômago revirava-se. Havia ainda o incenso.
Tentou desvirá-lo em vão. Antônio Conselheiro choramingava...
O Beatinho sentia essa urgência de fazer qualquer coisa inútil que se sente, quando vem a certeza de que nada mais há de se fazer.
-   Vou procurar uma vela. Deve haver uma vela por aí.
Ergueu-se de junto do agonizante e se foi, tropeçando, para o que havia restado do altar de São Jorge.
No dia em que a igreja fora bombardeada, lembrou-se, o altar estava iluminado por meia centena de velas. Começou a mergulhar a mão nos escombros dilacerando os dedos, murmurando exorcismos. De certa feita, tateou a superfície macia, descera e puxou... Um ex-voto: um pé toscamente esculpido e sarapintado de chagas.
-Valha-me, Senhor Bom Jesus!
Mas o Senhor Bom Jesus estava quebrado em três pedaços, a cabeça repousando junto ao pilar. O clarão da lua – da lua forte dos doidos – envolvia-a numa sugestão sobrenatural.
Continuou a cavar desadoradamente até que encontrou um resto de vela meio esmagado, sob os joelhos de São Jorge. Acendeu-o tremulamente, enquanto voltava para perto de Antônio Conselheiro. Ele continuava de borco, convulsionando-se, desmanchando-se em fezes. A luz mostrou em detalhes mais profundos a veste imunda repuxada sobre o corpo esquelético. Os cabelos brancos e compridos estavam emplastrados de sujeira. O Beatinho conteve um engulho e, equilibrando o toco da vela numa pedra, começou a rezar atabalhoadamente a prece pelos moribundos: “Senhor Bom Jesus, salvai sua alma nesta hora. Abri-lhe as portas da vida eterna e fazei com que ele goze com vossos santos a glória do céu. Santos, anjos e arcanjos, Santo Abel, coro dos justos, Santo Abraão, São João Batista...”
Seria preciso desvira-lo para meter-lhe a vela nas mãos. Agarrou com força e arrastou-o do charco de imundície. O pé resvalou em alguma coisa solta, rolaram ambos para a zona banhada pelo luar. O acólito viu os olhos desvairados de Antônio Conselheiro, olhos hipnotizados pelos demônios que a memória guarda.
-   “Protegei, Senhor, este vosso servo! Apartai dele todas as moléstias da alma...” – foi pegar a vela sobre a pedra. O vento soprou mais forte, naquele instante, e trouxe a zoada do tiroteio pegado firme na Várzea da Ema. Tentou meter a vela entre os dedos do santo. Mas as juntas não se dobravam, inteiriçadas as mãos escapavam.
A respiração transformava-se-lhe num ronco de entranhas desfeitas. Havia naqueles olhos um desejo, ainda. Uma ânsia fixa.
-   Fale, meu santo. Deixe um recado para os devotos que estão lutando lá, nas pedras...
E naquele ronco, em desatinado esforço, surgiram palavras estranhas:
-   Tire...velaaa...! Quero...inferno...!
As palavras pareciam duendes saltando de ronco áspero.
O Beatinho desconfiou daquele olhar desvairado que não compunha bem a morte de um justo... De um santo que vivera em penitência... Benzeu-se e pegou o crucifixo do rosário que trazia há cinta. Antônio Conselheiro recusara a vela e pedira o inferno. Agora, arrancava-se para um lado e para o outro, como se a posição o incomodasse. Seria a derradeira convulsão? ... O Betinho recuou assustado, deixou que o medonho moribundo gritasse sozinho o último grito de sua angústia.
Ele conseguiu virar-se de bruços, outra vez o rosto colado direto no chão. No estertor, algumas palavras desesperadas procuravam o som, insistentemente, urgentemente. A vida estava no fim e a consciência do louco queria gritar pela última vez. Por fim, a frase soou como se já não fora pronunciada por um vivo:
-   O diabo não tem mãeee...
Sacudido por um arrepio de horror, o Beatinho começou a fugir, tropeçando, percebendo que, de repente, aquela penumbra alucinada pelo luar se enchia de presenças até então disfarçadas a seus olhos crédulos. Caiu sobre um banco. Era como se Antônio Conselheiro o perseguisse, murmurando as últimas e hediondas frases.
-   Tire a vela! Quero ir para o inferno. O diabo não tem mãe!
Quando conseguiu chegar ao topo da escadaria, Beatinho viu o fogo frio do luar incendiando as ruínas do Arraial de Canudos.
Os céus assombravam a noite com seus fantasmas possíveis.
          
Flávia Melo
Enviado por Flávia Melo em 21/04/2009
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