O pacote do Januário
Januário foi vítima de um ataque terrorista encabeçado por um dos gatos de minha vizinha. Alto, moreno, cabelo bem cortado à moda escovinha, Januário ficou conhecido na vizinhança como o namorado oculto; aquele que nunca apareceu, aquele que não existia, aquele que não tinha nome – agora tem – aquele que todos os moradores da rua consideravam um devaneio de nossa vizinha maratonista. Um fantasma presente no dia-a-dia daqueles que desconfiavam de alguma coisa.
Depois de dias desaparecido, quem sabe se refazendo do motim felino, surgiu no lusco fusco do fim da tarde carregando um embrulho. Vestia uma camisa branca, uma jaqueta de couro marrom, uma calça jeans e sapatos pretos impecáveis. Tirou as chaves do bolso com certa dificuldade e não entrou sem antes espantar alguns gatos que rondavam por ali. Atravessou o quintal quase correndo e muito nervoso, demorou algum tempo para acertar a chave no buraco da fechadura. Com muito custo entrou na casa, atrapalhado, transtornado e com uma das mãos ocupadas com aquele embrulho misterioso.
O pacote tinha o tamanho de uma caixa de sapatos embrulhado com um papel pardo, já bastante amassado. Uma cordinha amarrava as extremidades, terminando num grande laço por cima do pacote. O homem segurava-o com tanta força que poderia quebrá-lo a qualquer momento.
Entrou na casa depois de espantar um dos gatos que estava de guarda, e sumiu. Anoiteceu assim que ele fechou a porta e eu saí do meu esconderijo.
Algum tempo depois ouvi barulhos ensurdecedores que fizeram eu e meus vizinhos sairmos porta afora. Pareciam fogos de artifício estourados dentro de uma lata e quando vimos de onde provinha o som, entramos novamente dentro de nossas casas como se tivéssemos nos comunicado telepaticamente: “Ah! É da casa da nossa vizinha.” Tão banal quanto o pensamento de que aquele embrulho misterioso era o protagonista daquela barulheira infernal.
Tudo se encaixava perfeitamente: O motim felino ocorrido há 15 dias, o embrulho, e agora aqueles estampidos altíssimos capazes de deixar um surdo a beira da loucura. Imaginei que o objetivo fosse uma vingança, e com o barulho espantar aquele gato insano e orelhudo e de quebra assustar todos os outros. Deixar a casa vazia só para o casal de namorados.
Seria romântico se não fosse o gato insano e orelhudo.
Lá estava ele, em cima do telhado da garagem com vista para tudo o que acontecia dentro da casa. Calmo, ponderado e felino, não desviou o olhar sequer um milímetro para o lado quando os outros gatos aproximaram-se dele e sou capaz de jurar que eles confabularam alguma coisa num dialeto absurdo.
Quando o barulho começou a ficar mais baixo, cada gato saiu por um caminho como se fossem se preparar para alguma tocaia. Sem miados, sem barulhos, todos desceram do telhado da garagem e embrenharam-se no escuro, pude ver ao longe metade de um rabo branco entrando pela janela da sala e rapidamente o quintal estava tão vazio quanto antes. Desapareceram.
Pensei: “Será que agora acontece o desaparecimento dos gatos velhos e o surgimento dos gatos novos? Será que tudo isso é parte de um ritual para a troca de gatos?”
Nem uma coisa nem outra. Januário – agora sabemos o nome dele - irrompeu pela porta, esbaforido e todo suado. Com uma expressão de horror estampada no rosto, começou a correr desvairadamente sem olhar para trás. Caiu duas ou três vezes e numa delas perdeu o sapato. Não podia equilibrar-se porque segurava nos braços o embrulho de papel pardo ainda amarrado.
O gato insano e orelhudo estava parado à porta, atrás dele todos os outros olhando.
E aquele silêncio repentino.