Notas de um corsário

Duas gotas  de sangue no chão me encaram enquanto algumas outras caem tingindo minhas botas de um vermelho púrpura.

O horizonte, só devo encarar agora o horizonte e nada vai me abater, nem mesmo o sangue que há em minhas mãos, sangue de muitos homens e mulheres que agora já não lembro se eram bons ou ruins. Na verdade não quero lembrar mais nada, porque agora, estou voltando pra casa.

Sem querer desvio o olhar para o chão outra vez, vejo que as gotas de sangue das botas uniram-se com as gotas de sangue do chão, formando uma pequena poça de um púrpura agora viscoso. A vaga lembrança de seu abraço, de seus olhos claros e de seu sorriso me faz fixar o horizonte.

Horizonte. Só devo encarar o horizonte, porque agora estou voltando pra casa, e nada, nada vai me abater.

Um vento úmido toca meu rosto deixando meus olhos marejados, eu me

desperto, movimento meus pés frios e adormecidos, o sangue no chão já não tem mais a minha atenção.

O vento torna-se impetuoso com ares de tempestade.

- Içar velas! - Resoa minha voz por entre mastros, botes e cabines vazias.

Ondas curiosas erguem-se ao meu redor e inclinam-se sobre mim,

querendo saber quem é o tripulante condenado e solitário que corre

pelo convés içando velas nos pés de uma tormenta.

Ergo as velas enquanto ainda sinto minhas mãos que já estão tão frias e pálidas quanto meus pés. Parece suicídio?

Não é. Eu só penso no seu afago. É desespero.

Por que eu miro o horizonte e só vejo trevas.

Por que eu estou voltando pra casa e nada pode me abater.

Eu sinto a fúria do vento, apontando-me seu dedo, como se soubesse dos meus erros. Mantenho-me firme, eu também me tenho fúria. Na noite passada, a tripulação caiu tomada de assalto, todos dizimados, eu vi a morte caminhando no convés, por entre gritos e lamentos. Ela sorriu pra mim, um sorriso de até logo.

Eu olho para cima e posso ver além da tempestade pequenos raios de sol fazendo pequenos ferimentos nas negras nuvens, nasce um sorriso no meu rosto, esse é o mesmo sol que doura as margens de praias brancas, de águas claras e calmas, que queima teu pé quando pisas descalça que esquenta teu cabelo todas as manhãs quando abres a janela do teu quarto.

Estou gargalhando agora, enquanto ouço passos atrás de mim em meio à tempestade que perde sua força. Eu sinto a vida se esvaindo como um punhado de areia em minhas mãos, como uma vela acessa lutando contra o vento. Sinto alguém do meu lado, eu vejo aquele sorriso de até logo, sinto uma mão em meu ombro. Olho mais uma vez para cima e vejo as turvas nuvens se distanciando dos raios de sol, meu corpo desfalece, mas ainda estou sorrindo, porque sinto que finalmente estou chegando em casa.

Um navio avariado e solitário desliza por um mar de águas calmas sob um sol forte, com sonhos e anseios tatuados em suas velas rasgadas, com gaivotas disputando um banquete dependurado no timão. Agarro-me com unhas e dentes na nossa despedida, desejando que nossas vidas não se acabem como nas notas de um corsário.

Fábio Monteiro
Enviado por Fábio Monteiro em 03/04/2009
Reeditado em 28/06/2009
Código do texto: T1521081
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