Dona Curiosidade

A curiosidade matou o gato. Ele foi o primeiro e o mais conhecido em decorrência da frase, creio eu. Eu vou ser o próximo, mas não creio que serei tão conhecido como o gato, apenas um colega de destino semelhante.

Eu às vezes acredito que essa velha gorda fica ali apenas esperando pelos idiotas curiosos; a Dona Curiosidade e seu sorriso bonachão. Ela se parece com a avó bondosa de um amigo de infância cujo nome nos esquecemos no decorrer dos anos.

Acreditem, o sorriso bondoso dessa senhora pode se tornar de uma hora para outra uma fileira de dentes afiados e desordenados roçando a sua nuca e enroscando-se em suas madeixas. Um tubarão intangível que nada nos recônditos de nossas mentes.

Eu senti os puxões insistentes dos dentes encarquilhados em alguns fios meus, mas mesmo assim permiti que a velha sussurrasse em meus ouvidos e me guiasse, como seu cordeirinho, pelas portas adentro.

Quando cruzei as portas daquele restaurante, eu sabia que não veria boa coisa, mas mesmo assim entrei. Acreditava que o fato da rua ser movimentada e o local ser público poderia me safar no caso de algo muito errado acontecer. Ledo engano!

O restaurante não passava de um entre dezenas de outros no bairro da Liberdade, coração nipônico encravado na capital paulista. Eu jantava invariavelmente em um boteco que fazia frente a ele, mas nunca havia sentido o toque da Dona Curiosidade me chamar para conhecer aquele lugar. Não até ver o furgão negro.

Relembrando a cena, eu vejo que daria um bom jornalista, ou mesmo um novelista, se eu conseguisse me manter vivo por mais tempo. Eram quase nove horas e eu batia os dentes de frio enquanto tomava o meu caldo-verde para aquecer. Olhos perdidos na calçada oposta, vendo o nada que seguia com a multidão, com um olhar literalmente perdido. Então apareceu o furgão. Era lindo em seu brilho negro-azulado, principalmente estacionado embaixo da luz amarelada que vertia do poste sob o qual havia estacionado. Creio que apenas através do vidro dianteiro seria possível ver algo lá dentro, mas de onde eu estava não posso precisar. Ele parou, algumas pessoas desceram e entraram no restaurante japonês, mas eu não posso também dizer quantas, pois elas ficaram encobertas pelo furgão.

Quando o furgão partiu, senti os dedos aveludados em meu ombro. Não foi um toque realmente, mas eu sentia o calor dos dedos inconsúteis da Dona Curiosidade nele. Sentia também que a outra mão da distinta tinha um dedinho gorducho estendido e vi quando ele apontou para a janela do restaurante em frente; acompanhei com os olhos e vi a mulher olhando para mim. Cruzar com aqueles olhos do lado oposto da rua – e tenho certeza que ela me olhava – me causou uma miríade de sensações. Senti um arrepio na coluna, juntamente com uma dormência nos dedos e os respingos do caldo-verde em meu peito quando a colher caiu de minhas mãos dentro do prato. Tudo passou rapidamente. Na fração de tempo que eu levei para afastar a cadeira e olhar para minha camisa o encanto se rompeu. A mulher sumiu da minha vista e a Dona Curiosidade deu uma gargalhada ao ver o meu olhar percorrendo ansioso cada parte visível do restaurante japonês.

Eu passei sete vezes pela experiência de ver o furgão naquele local – sempre que podia eu ia por aquele lado da calçada nutrindo essa esperança antes de atravessar e vir para o meu lugar estratégico e jantar. Até que um dia cruzei com ele de saída na porta do restaurante; dobrei a esquina e vi o furgão se preparando para partir, e por fim vi de perto a mulher. Não era oriental como eu imaginava ao vislumbra-la de longe. Apesar dos cabelos negros e escorridos e da forma esguia e diminuta, ela não possuía os olhos amendoados. Seus quatro acompanhantes, no entanto o eram. Reparei bem em seus olhos quando retiraram os óculos escuros e me deram uma boa olhada de cima até embaixo antes de entrarem no restaurante.

Disfarcei lendo a tabela de preços estampada na entrada. Não que isso fosse convincente como disfarce, mas foi o que me veio a mente no momento. Exorbitante. Com o preço de um prato de arroz com frango, eu poderia comer durante uma semana no meu local habitual, incluindo bebida e sobremesa. Sabia que aqueles preços eram intencionais para afastar os pretensos clientes. Mas na semana seguinte eu enfrentei os olhares irritadiços do garçom, dos cozinheiros e do gerente do lugar. A Dona Curiosidade me aconselhou a escolher uma mesa ao fundo, coisa que eu me recusei a fazer, preferindo a mais próxima da porta de saída que me foi possível. Como eu disse, não esperava boa coisa e preferia desta forma ficar perto da saída.

Um punhado de arroz, outro de macarrão e pedaços de frango com legumes. Eu estava quase terminando de comer o mísero prato quando ela entrou. Eu pude sentir a Dona Curiosidade dando pulinhos alegremente a meu lado e reparei em seu olhar ansioso. Segui a direção de seu olhar e reparei que ele não se dirigia para a mulher, como o meu próprio; dirigia-se para os quatro homens que vinham em minha direção.

Não protestei quando eles me cercaram e me seguraram pelos braços. Deixei que me erguessem da mesa sem uma palavra, pois de alguma forma eu sabia que não conseguiria fugir daquele lugar, por mais próxima que a porta se encontrasse. Limitei-me a olhar para a mulher que seguiu na minha frente com passos calmos e elegantes. Ela seguia praticamente com os ombros colados com os da Dona Curiosidade que por sua vez continuava saltitante. Eu seguia atrás, com um mafioso de cada lado e dois na rabeira.

A cozinha do lugar não era tão suja. Nem mesmo o porão para onde fui levado e amarrado ostentava pó ou algo semelhante. A coisa mais estranha que eu vi encontrava-se dentro de um enorme freezer desativado. Um rapaz mais ou menos da minha idade, muito abatido e com a pele pálida, como se estivesse doente. Ele foi retirado lá de dentro e trazido para perto da mulher e conseqüentemente ficou mais perto de mim. Eu vi em seus olhos embaçados um sinal de reconhecimento quando ele olhou para mim e achei que ele havia me confundido com alguém, entretanto após uma observação mais atenta, reparei que ele não olhava para mim, mas por cima de meu ombro, diretamente para a Dona Curiosidade. Ele a conhecia tão bem quanto eu. A mulher aproximou-se dele e segurando-o pelo braço, aproximou sua boca do pulso dele e o mordeu. Eu já esperava por algo semelhante, mas confesso que fiquei chocado com a delicadeza. Já havia visto os sinais nela. Pele pálida, olhar gelado e alguns detalhes encantadores de sua natureza predadora. Apenas não achei que ela seria tão delicada ao se alimentar, mas me enganei em relação a isso.

O rapaz deu um gemido e eu reparei que ela sugava o sangue dele pelo orifício aberto e que o mesmo estava praticamente no fim. Compreendi duas coisas vendo o corpo dele sendo amparado por dois dos seguranças e principalmente quando vi os olhos dele se fechando e o peito parando de arfar: uma era que eu seria o próximo a passar uma temporada naquele freezer desativado; a outra é nós dois estaríamos mortos muito em breve. Não me refiro ao rapaz, pois este acabara de morrer; me refiro a mim e a velha rechonchuda as minhas costas.

Ironicamente a Curiosidade me matou apenas porque eu não resisti e a matei.

Fim.

Richard Diegues é escritor, autor do livro "Magia - Tomo I", colaborador do "Círculo de Crônicas" (www.circulodecronicas.com) e co-editor do NecroZine (www.necrozine.blogspot.com). Faça uma visita de cortesia e aprecie muitos outros trabalhos em ambas as páginas.

Richard Diegues
Enviado por Richard Diegues em 06/05/2005
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