Interlúdio
Com um cigarro pendendo do canto de minha boca, meu corpo está lento, e fica ainda mais anestesiado conforme a nicotina é absorvida e começa a fluir por minha corrente sanguínea. Cada pequena porcentagem que se concentra numa tragada e é involuntariamente espalhada por todo meu sistema circulatório, rapido, fugaz e delicioso. Sinto a química viva fluir por cada pequeno centímetro do meu corpo, e me desligo de tudo. Da corrupção dos politicos aos atos negligentes e embecis da religião. Neste momento você poderia me mostrar o comprido caminho de luz pré-mortis que eu o seguiria. Talvez não o fizesse sóbrio, mas em meu atual estado ébrio me é deleite ficar sentado, expirando a fumaça débil e lenta do meu cigarro sem filtro por ambas narinas. Ellen não gosta, por isso eu me sento na varanda. Ou às vezes me debruço no peitoril do prédio, no ultimo andar, onde vejo o brilho de estrelas mortas, tão frias quanto eu mesmo com a brisa da noite, piscarem e reluzirem um brilho que eu ainda consigo achar belo em meio a tamanha feiura que eu vislumbro a cada dia. Você pode me achar fraco, idiota, ou o adjetivo que quiser, mas nenhuma opinião fará eu me distâncias de meus amigos químicos. Ninguém vai me tirar meu orgasmo ilusório, transitório e fantasioso que um bom cigarro com whiskey me trás ao olhar para os astros mudos. E mesmo eles não respondo aos meus questionamentos que eu geralmente trago a tona para eles, eles continuam sendo minha trindade.
Enquanto Ellen está plugada no seu computador eu continuo minha conduta Erga Lex, e nenhuma autoridade irá me dizer o que é correto e o que é errado.
Eu já vivi lá dentro da rede. Conheci ela, Ellen, por meio dela. Pode parecer que estou cuspindo no prato onde me deleitei um dia. Mas não quero mais nada que seja virtual. Quero sentir a dor, a alegria, as lágrimas e os orgamos que não sejam constituidos por bites, que não podem ser quantificados nem explicados matematicamente. Quero viver a loucura, porque ao menos com ela posso conviver e conversar, e confabular por noites inteiras longe de qualquer máquina. E no fim sei que acaberei sozinho, desconectado do mundo real, que se tornou o virtual, que se tornou o real.
E estarei envolto por nada mais que uma névoa taciturna, uma bruma tristonha. Ou mesmo que o calor dos astros não sejam suficientemente quentes para chegar ao encontro de meu corpo, eu ainda prefiro a beleza de palavras metafisicas que me fazem rir e chorar, do que palavras que no fundo são conjuntos de zeros e uns em uma sequência mais fria que luz negra.
Lá dentro do pequeno apartamento amontoado de fios e luzes que piscam intermitentemente eu ouço a risada de Ellen, e imagino o sorriso estampado em seu rosto.
Sei que cada um tem um ideal diferente de felicidade, mas certas vezes um abismo divide o que deixa uma pessoa feliz do que deixa outrem. O problema é que a minha felicidade me distancia de Ellen porque a felicidade de Ellen me distancia dela. Eu quero me desplugar, e ela quer ficar plugada e eu logo imagino que tudo que conheço tenderá a ruinas daqui a diante. Será possível amar a distância estando a vinte metros de longura?
E por mais perto que meu coração palpite do coração dela, já não ouço mais as palpitações do coração dela, assim como ela já não ouve mais as minhas. E ainda assim estamos presos por uma corrente invisível que me prende a o meu mundo, e ela a uma que a prende ao universo dela, e entrando e saindo desses dois extremos tal corrente prende a ambos. Estamos ligados perpétuamente, realmente próximos separados por um abismo.
Acendo outro cigarro. É o ultimo da carteira, olho a foto de um pulmão negro e jogo ela fora.
- Vou comprar cigarros - eu digo ao passar por ela e me dirigir à porta.
Ela não me olha, apenas acena com a cabeça, e assim que me viro ouço novamento o som das teclas sendo pressionadas, gerando palavras mudas.
Pela rua, vejo transeuntes de todos os lados, indo e vindo como formigas, se trombando, passando pequenos sinais, e continuando seu rumo. Já é tarde e todos os bares estão fechando ou já terminaram seu expediente à pouco. O cigarro sempre acaba depois do turno dos bares.
A estranha alegoria de zumbis tropegos começa assim que as portas se fecham. Pessoas que tem para onde ir, mas já não sabem mais o caminho - ou como imagino, querem esquecer o caminho, enfadonha rotina que os trará, cortando o efeito de seus escapes logo pelo alvorecer, cortando o efeito químico. Despertando para a vida.
Acho que muitos de nós nos adormecemos no curto percurso que percorremos por aqui. Decepçãoes após decepções.
Derrotas atrás de derrotas. Depois de um tempo uns tragos, sejam de cerveja ou de cigarro acabam sendo a unica explicação lógica para o fim do dia. E essas idéias sempre vêem a noite - ou melhor, sinto que todas as idéias vem a noite, porque durante o dia a rotina irrompe tão vivamente quebrando o encanto do sono desperto que qualquer substância pode proporcionar. E nos tornamos a geração dos mortos-vivos. Cambaleantes da casa para o emprego, do emprego para o bar, para a casa para o emprego para o bar para a casa... A sórdida rotina nos assalta de mãos livres, e mesmo assim nós nos rendemos e deixamos ela levar tudo que temos nos bolsos, na mente, no coração.
Vivo dizendo que o Estado é a prostituta virtual, que finge dormir com a gente, leva nosso dinheiro, e no fim que prazer nos ofereceu? Virtualmente nos deu justiça e condições basicas de vida. Mas onde? Eu não vejo isso em lugar algum. Na verdade ela cobra por essa cópula e o unico filho que nos traz são impostos.
Ali, logo a frente há um bar ainda aberto. Mas nada de cigarros. Esses bares chiques me irritam, não tem área para fumantes e muito menos cigarros. E numa noite de sábado como essa onde somente um cigarro pode acalmar e quebrar falsamente minha rotina, não encontro nada aberto.
Poderia estar em algum lugar, dançando ao som de uma musica antiga com Ellen aos meus braços. Queria estar.
Mas ela não consegue se displugar, não consegue viver longe da tensão intensa da espera de um novo e-mail. Um recado do site de relacionamentos. É interessante como procuramos esses lugares, procuramos um relacionamento e nos esquecemos de nos relacionar com os seres ao nosso redor. Doce sonho que por fim acaba amargo. A neuromancia de um século novo. Jack in nos cérebros e voì lá: Distração por todo o tempo em que você puder pagar.
Lá dentro, plugado não há ninguém passando fome, não há violencia aos olhos nus. Aqui eu vejo pedintes nas esquinas com andrajos e a cara de desistência, vejo o sono do mendigo coberto pelos papelões que as multinacionais deixaram jogados, o sangue que escorre da ferida que a arma do bandido causou. Aqui eu vejo o mundo. Displugado.