Pais e Filhos
1
Eu olho para ela logo após gosar.
Ela diz: "eu te amo", por força do hábito, creio eu.
Mas depois de alguns preciosos segundos tudo acaba. Como um
pedaço de um bom chocolate. Uma estrela cadente, que passa mais rápido
do que você consegue seguir com seus olhos. Mas ainda assim a sensação
é ótima, por mais rapida que seja.
Eu sou realmente fã de sexo. Mas de uma forma ou de outra, eu sempre
me sinto vazio e confuso depois, principalmente depois de fazer com uma
estranha. Mas ainda mais quando essa estranha diz que me ama, e quer
receber a mesma frase de volta. A frase barata do século. O dinheiro do sexo.
Eu te amo compra transas. Lealdade. Coisas importantes. Tem tanto poder
quando notas de dinheiro. Mas acho que o "eu te amo" ainda é mais forte que
essas outras coisas.
Se eu disser a ela que a amo, irei me sentir melhor, ela irá se sentir
melhor. Existe uma carência afetiva tão grande, que sinto que o "eu te amo
está mais bem cotado que o dinheiro, ultimamente.
Mas eu me limito a dizer "eu também". Parece mais justo, sejá lá o que
ela esteja querendo dizer com eu te amo, eu também.
Estamos numa cama duplex de um motel que tem mesas vitorianas e está
decorado com estatuas georgianas do século passado. As cortinas são de cetim
bege, o que faz a luz do lustre ficar esmaecida e refletir no cristaleiro acima do
balcão.
Ela se levanta nua, pega nossas taças jogadas pela cama enorme, e do
frigobar retira outra garrafa de champagne. E eu olho nos olhos dela, e penso:
aí está mais uma estranha que não irei conhecer. Mesmo ela tendo me contado
muito sobre a sua infância e seus sonhos para o resto de sua vida, e ter transado
com ela, nunca a conhecerei.
Os homens na verdade não estão nenhum pouco interessados no que vai
acontecer. Acho que isso os distingue das mulheres. Mulheres planejam, homens
agem. Porém quando elas agem tende a funcionar pois foi bem pensado. Já os
homens agem no momento e o que eles tem são consequências. As mulheres
tendem a obter mais resultados.
O que irá acontecer nos próximos dias em nossas vidas ninguém saberá
dizer. Mas eu sei o que não irá acontecer. Não iremos nos envolver. Ninguém irá
anotar os telefones um do outro - ou talvez até anotemos, mas nunca ligaremos
de volta. Essa cópula casual não irá se tornar numa amizade posterior. Lembraças
não serão criadas para esse dia, da mesma forma que não guardamos informações
sobre nosso trabalho e na outra semana nos esquecemos tudo sobre o mesmo.
Nem mesmo os orgasmos serão lembrados num futuro não longínquo. Em menos
de uma semana o semblante do rosto do estranho se tornará obtuso. Os nomes
que dizemos uma ou outra vez durante aquela conversa entediante pré-coito serão
confundidos por nomes similares, até que por fim serão enevoados e logo sumirão
de vista por uma grossa neblina, como uma placa num dia úmido. Nem ao menos
o contorno ou o tamanho dos seios serão recordados.
Mas nesse momento meu rídiculo "eu também" soa a essa guria estranha
algo que recompensa toda a noite clichê. Jantar, conversa, vinho, sexo, conversa.
Não é o conjunto mais requintado. Não é a melhor noite da vida dela, mas nesse dia
é o suficiente para ela e para mim. Somos dois estranhos entre seis bilhões de
estranhos afetuosamente carentes. E isso basta.
Não é o sexo em si. Não é a noite ou a companhia. É o sentimento temporal
da outra pessoa que preenche aquele meu vazio existencial por cerca de um dia,
talvez dois, após essa noite.
Na chuva fina que cai na noite, trocamos um beijo no rosto de cada um, e cada
um toma um taxi diferente. Esse momento já diz muita coisa sobre o fim. Rumos
diferentes são tomados de imediato após o encontro, o que amplifica a visão da
distância que será tomada após vários dias.
2
Eu chego em casa e vejo a luz do quarto de Clarice acesa. Quando ela ouve passos
na rua ela apaga, e finge estar domingo. Minha pequena Clarice, sozinha nas mãos de
um babaca como eu. Ela tinha um futuro tão promissor antes de sua mãe morrer. Minha
esposa. Queria mesmo poder incluir nessa frase a palavra amada. Minha amada esposa.
Mas infelizmente, eu estaria mentindo para mim mesmo. Eu até que gostava da Claudia, ela me
fazia rir. Mas não, eu não amava. Mas amo Clarice, nossa pequena semente que agora
está com dezesseis anos e crescendo mais rapido que eu posso perceber.
Claudia morreu de leucemia há dois anos atrás. Eu não culpo ela, não foi ela quem
deixou minha vida um lixo como está agora. Fui eu mesmo. Minhas próprias decisões.
Mas ela sabia agir feito uma cadela às vezes. Ela morreu com a órbita dos olhos fundas,
cheia de rugas, e magra. Quase sem cabelos, e com a pele daquele tom cinzento,
doentio. Fui ver ela muitas poucas vezes, e se quer saber, eu nem liguei muito, porque
ela só havia me feito sofrer. Mas hoje, eu me arrependo. Não em memória a Claudia,
mas porque Clarice acha que eu odiava a mãe dela - minha mulher -, e isso não é
muito bom vindo de sua filha, quando o assunto é a mãe dela.
O fato é que de três a quatro anos para cá eu me tornei um idiota. E para piorar
as coisas para minha pequena Clarice, me tornei um babaca ausente. Depois do meu
dia tosco, minha rotina tosca, da minha vida tosca, eu ia tomar todas que eu pudesse
pagar, ou que pagassem para mim. Eu estava pouco me importando com todo o resto.
Eu achava que tinha pouco a perder. Quando na verdade eu realmente estava perdendo
o pouco que tinha. Mas beber era bom. Eu chegava em casa depois de alguns tragos
e a reclamação de Claudia parecia distante. Eu podia rir, tomar banho gelado e ir
dormir depois e só acordar no outro dia, e só um pouco dolorido.
Às vezes Clarice me olhava com um olhar que não saberia informar se era de ódio,
desgosto, raiva, angústia, nojo, repulsa, mas eu arriscaria em dizer que era um misto
de cada um.
Eu nunca estava lá quando nenhuma das unicas pessoas que realmente se preocupavam
comigo precisavam da minha presença. Por exemplo, quando minha filha se formou no
ensino fundamental, eu estava desmaiado, bebado em algum canto. Quando minha mulher
morreu eu estava tomando umas com colegas que hoje nem me lembro o nome. Mas nada
disso é uma lição. Nada disso me mudou. E se eu pudesse continuaria vivendo minha vida.
Ou teria me matado, se a Claudia não resolvesse ter morrido antes de mim. Que egoísmo
daquela mulher, nem morrer ela pode me deixar primeiro?
Agora, Clarice é minha responsabilidade. E eu não quero que ninguém rele as mãos
na minha semente, aqueles idiotas do Conselho. Ninguém vai tirar minha filha de mim.
Porque eu quero que ela seja educada de verdade. Porque eu não quero que ela seja discriminada
por ser lésbica. Mas também não queria que ela vivesse com um babaca como eu.
Sabe o que é pior de tudo isso? É saber que ela gosta de mim. Há uns tempos a trás
ela disse, "te amo, pai", e eu, idiota, não consegui dizer nada. Ah, claro, eu consegui dizer:
"eu também". Uau, como eu sou um grande frasista! Se eu soubesse antes o que essas palavras,
essas míseras três palavras teriam facilitado na vida de Clarice, eu as teria dito todos os dias.
Palavra a palavra.
Quando eu acordo no outro dia, Clarice está preparando pães com mortadela e suco.
Que horas são?
- Quinze para as onze - diz ela, com aquela voz gentil, que me faz me perguntar se essa
guria realmente se desenvolveu a partir de um gene meu. Parece tão improvável.
- Caramba - eu digo. - Parece que eu dormi numa cama de pregos.
- Na verdade, dormir numa cama de pregos não é dolorido - ela me diz com um sorriso
que me amolece. Só essa menina consegue me fazer ver algum sentido nessa merda toda.
- Onde você viu isso?
- Eu li numa revista. De curiosidades, sabe?
Eu aceno a cabeça. Digo que ela não precisava ter feito o café, que poderiamos ir comer
alguma coisa na rua.
Ela me olha com ar reprovativo.
- Sei que isso não é a coisa mais nutritiva do mundo. Mas comer fritura e guaraná na rua
também não é, pai.
Essa guria veio mesmo de mim?
Que tal um McDonalds hoje a noite? Eu pago um milk-shake, que tal? Só você e eu, pai e
filha? - eu digo, querendo de uma forma mais que tola recompensar todas as burrices do meu
passado. Como se tivesse acordado hoje, pensado em todo o sofrimento que causei e tivesse
tido uma epifania e agora estava querendo espalhar as fagulhas de minha nova espiritualidade.
- Pai, eu tenho teste amanhã. Não vou a lugar nenhum, nem que deus me peça de joelhos.
Minha filha atéia. Que orgulho.
Lésbica, atéia, e estudiosa.
Essa guria veio mesmo de mim?
- Nem que eu amanhecesse duro? Mortinho da silva no chão da sala? - eu digo, tentando
tirar um sorriso, mas ela me responde com um sarcasmo, embora brincalhão, um tanto dolorido.
- Pai, não iria perder um exame por você se matar de cirrose. Aí a culpa seria sua.
- Ah. - digo e como o pão que ela preparou, e um suco artifical de laranja que está
particularmente bom.
Artificial. Gosto dessa palavra. É a definição etmológica de todos meus relacionamentos,
salvo o que desenvolvi com minha filha nos ultimos dois anos. Parecem bonitos, como flores
de plástico, mas quando você os aperta contra sua mão, nem mesmo um pouco de pólem
é expelido, mostrando o quão patético e falso é. Mas são as atitudes que eu acho mais engraçadas.
Os orgasmos artificiais. Os rostos artificiais feitos em clinicas. Até roupas sintéticas. Couro
sintético. Pérolas falsas. Diamentes de vidro. Meu mundo é artificial.
- E que tal no fim de semana, gata? - arrisco eu.
Ela me olha e diz:
- Eu posso até fazer miau às vezes, mas não sou uma gata. Frances é uma gata!
Eu olho para ela, aqueles olhos verdes e cabelos encaracolados.
- Hey, qual é. Você é uma filhota, e logo se tornará uma gatona, vai pegar qualquer guria
que quiser. Mas, quem é Frances?
Ela me olha. De uns tempos pra cá ela se tornou confidente comigo. Depois que eu mostrei
a ela Bukowski, Palahniuk e Kerouac essa guria confia em mim mais que ninguém.
- É uma aluna nova. Linda, pense na guria mais linda que você já viu? - diz ela. - Já imaginou?
- Sim. - digo eu.
Ela sorri:
- Então, não chega perto da Frances!
E você está com uma queda por ela?
- Bom, ela faz que eu fique animada. Exasperada. Feliz. Só de ver ela.
Um momento importante de minha vida. A primeira paixão de minha filha. É aqui que o velho
Alex deve usar todo o conhecimento barato que aprendeu nos livros e em sua vida vadia e tentar
mostrar o caminho mais fácil para sua filha. Há apenas um problema: não existe um caminho fácil.
- Você já se aproximou dela? Tipo, trocou uns olhares, algo assim?
Mas de subito, Clarice fica tristonha, e não quer falar.
Eu me aproximo dela e bagunço seu cabelo.
- Pai! - diz ela; odeia que mexam no cabelo dela.
- Que foi, porque ficou calada?
- A Frances... ela... ela tem namorado.
Ai! Eu conheço bem essa sensação. Juliana. 8ª série. Meu primeiro amor. Que durou aproximadamente
quinze minutos. Eu a vi, a contemplei na escola. Me apaixonei. E em dez minutos compuz juras de amor
e um musica com o nome dela em duas notas: C e G. E nos dois minutos seguintes, vi ela beijando João
Aguiar, e meu coração parece ter sido fisgado e arrancado pela minha garganta. É, essa é a sensação de
ver quem você gosta beijando outra pessoa. Um anzol bem no veio daquele muscúlo arterial.
- Querida - eu digo.
- Não me chame de Querida, é tão... gay - ela diz, e ambos rimos.
- Clarice, não liga se não der certo, ok? Mulheres é o que mais tem por ai. Se essa Frances não souber
ver como você é especial, então ela não te merece.
Clarice me olha de soslaio.
- Pai, chega desse papo clichê de pseudo-escritor de auto-ajuda.
- Ok, desculpa.
Bom, preciso ir procurar emprego, digo a minha filha. Pego jornal, grifo algumas coisas que não
cansem demais e que paguem relativamente bem - ou seja, uns dois anuncios - pego algumas cópias
do meu currículo e saio a procura da minha próxima tortura - digo, emprego.
3
Eu adoro o transporte coletivo. Quer dizer, há calor humano no local.
Vamos todos no mesmo embalo. Chacualhando no mesmo ritmo, quase sendo atirado ao chão
a cada freiada brusca do motorista. Sempre tem alguém desequilibrado trombando em todo mundo.
Alguém te enrabando descaradamente. Seus pertences esfregando na pessoa da frente. Há aquele
aroma dos operários que estão indo almoçar, com os braços levantados, segurando nas barras
de segurança, exalando o odor corpóreo que creio não necessitar de muitas explicações.
Ao descer de uma circular lotada é quase como acabar de sair de uma suruba sem sexo.
Debaixo de meus braços tenhos várias cópias do mesmo currículo pobre e carente de atividades
e cursos complementares. Se fossemos comparar ele com alguma coisa, poderiamos comparar
com a desnutrição das crianças na África. Está faminto de complementos, e só tenho apenas uma
dose de ensino médio a oferecer.
É provável que os lixeiros - quer dizer, auxíliares do setor da limpeza - tenham maior qualificação
para um emprego que eu. Não sou representativo, então nada de gerências ou empregos que lidem
com relações. Não sou bonito, então acho melhor riscar as sessões de modelos para amostras de
lojas de roupas. Não sou tão gordo a ponto de ser modelo de catálogo de loja de obesos. Mais um
risco vermelho. Não sou bom com calculos, então lá se vai a vaga para caixa de restaurante. Não falo
bem, então risco a vaga para locutor de rádio ou mesmo de vendas em supermercados. Tenho claustrofobia,
logo estou riscando o anuncio para mascote do McDonalds - na verdade não sou claustrofóbico, mas,
sério, sou um ser humano, não mereço tal emprego. - Não tenho cabelos longos para serem alisados
para estar num cartaz de antes/depois da escova progressiva; a mas também em letras miúdas diz
que é só para mulheres. Quando o anuncio já está mais parecendo um jogo da velha de tantos riscos
eu vejo uma vaga para vendedor de banca de jornal. Nada mal, ler jornais e revistas de graça e receber
por isso.
Rabisco o endereço e vou até o lugar.
Fica no centro, perto do terminal da cidade. Na praça.
É uma banca modesta, onde três pessoas não poderiam fazer um menage á trois devido à falta de
espaço. Mas é bem organizado. Tem cheiro de papel, o que acho bacana.
- Vim pela vaga - digo eu mostrando o anuncio no jornal.
Ele põe um óculos de aros grossos, e franze o cenho, me olhando de cima a baixo.
- Tem disponibilidade de horário?
- Sim, senhor - digo com a maior naturalidade cabivel.
- Tem experiencia?
- Em bancas de jornal?
- Sim, é claro - diz ele, rouco e nada simpático.
- Não, mas eu já trabalhei de entregador de jornal.
- Uhmm. Quando pode começar? - inquire o senhor assustador detrás do balcão.
- A qualquer hora, senhor.
- Amanhã. Esteja aqui amanhã às 6 da manhã.
Eu digo que aparecerei sem falta.
E para comemorar vou para o bar.
Chego em casa, não faço a mínima a que horas, e durmo feito um bebe em poucos segundos
estou roncando. Clarice vem e me cobre. Ao menos acho que foi isso porque quando eu acordo
no outro dia tem um cobertor em cima de mim.
Que horas são? pergunto eu ao acordar e descer para a cozinha.
- Dez para as dez - responde Clarice, com a mesma voz agradável.
E eu me lembro de ontem. Da banca e digo:
PUTA QUE O PARIU!
4
Eu chego na banca já são 11h45, os transportes coletivos fazem mais uma vez sua propaganda
negativa. Mas é claro, novamente não é culpa dele. Não foi ele que enfiou bebida goela a baixo
feito um alcóolatra. Não foi ele que chegou bebado em casa e não ligou o despertador. Como
sempre fui eu.
Lá dentro da banca, não é o velho do dia passado, é uma guria de cabelos tingidos de vermelho
vivo. Ela me olha com uma sombrancelha arqueada, eu não devo parecer o tipo de cliente usual. Olho
umas revistas da semana. Nada de interessante, como habitual. Crise financeira. Novo presidente
dos EUA. A baboseira de sempre. Subida no preço do barril do pétroleo, e queda da bovespa, é
o que a primeira página trás de novidade. Depois me viro a ela e digo:
- Estou aqui pela vaga - e mostro a ela o jornal rabiscado de vermelho de ontem.
- Cara. Essa vaga é minha.
Eu agradeço por não ter um espelho lá dentro para ver minha cara de babaca.
Com meu vocabulo limitado, minha frase é "ah, tá", e eu saio orgulhoso como sempre da minha
habilidade frasal diante de situações importantes - não que um emprego numa banca de jornal seja
importante, mas o elemento emprego, atualmente é importante na minha vida, principalmente quando
não se tem outro emprego. E mais ainda quando se tem uma filha adolescente que precisa de comida.
Eu saio de lá e minha primeira vontade é tomar umas.
Minha segunda vontade é voltar a fumar.
Na verdade minha primeira vontade é pegar aquela ruiva falsa e dar um fim no corpo dela numa
arribanceira, cortar ela em pedaços para tornar irreconhecível até mesmo pela arcada dentária.
Claro que isso é um delirio particular que eu nunca faria, sendo o tradicional cidadão - se eu puder ser
chamado de cidadão mesmo não exercendo meus deveres civicos - covarde e dislexico em momentos
chaves. Não saberia nem como abordar a moça para uma ação tão meticulosa como essa. Na verdade
eu não consigo preparar um sanduíche de atum sem derrubar farelos no chão, quando mais ocultar
evidências de um crime - o qual provavelmente eu cometeria de forma explicitamente mal pensada e
me evidenciaria como autor numa série de provas que a polícia colheria em menos de um dia.
Então eu fico ali, na praça, a mesma praça da banca, perto do terminal rodoviario.
Há alguns hippies tocando musicas do Ventania com um violão desafinado - ou acordes mal feitos.
Fico escutando a filosofia que eles cantam como estilo de vida, os cabelos enormes e despenteados,
as roupas maltrapilhas e chinelos de dedo, e no padrão atual da sociedade penso comigo mesmo que
até que não estou tão mal. Não no sentido de aparência pelo menos. Mas espiritualmente esses caras
me driblariam e eu ainda faria um gol contra.
Um deles diz para uma senhora que passa:
- Vamos pensar no futuro. Ainda há futuro, minha senhora.
A velha corcunda, usa um chale de tricô branco e esgarçado. Sua primeira reação e olhar para o
lado, e ao ver o sujeito de cabelos e correntes e aneis, ela segura a bolsa com força, com as duas mãos,
e aperta o passo com seus sapatinhos de camursa desbotados e meias que beiram os joelhos. Ela anda
de cabeça baixa, rapida como um guaxinim velho.
Eu riu pela cena. Em comparação com a velha, eu até que não estou mal.
Em minha mente estou preparando desculpas ensaiadas sobre meu dia desaventurado de busca
de emprego para explicar para Clarice. É claro que não será uma completa mentira, somente uma
adornação dos fatos com uma mera - tudo bem um grande, enorme - distorção.
Quando tudo dá errado eu sinto vontade de me tornar um voluntariado num hospital. Entrar para
um ONG de ajuda aos necessitados, qualquer coisa do tipo. Não é meu espirito filantrópico que desperta
nessas horas, é meu desespero egoísta. Quero ver que tem gente muito pior que eu. Gente morrendo,
mantida viva por respiradores, recebendo comida por um catéter no pescoço. Defecando por um tubo
plastico enfiado via retal. Isso me faz sentir vivo. Vejo pessoas na rua passando fome, e penso, bem,
eu ao menos não estou tão mal.
Mas como sempre a inércia me mantem preso ali, naquela praça, cheia de pombos. E eu fico com
raiva dos pombos. Do que eles arrulham tanto? Nem há ninguém dando milho para eles, e eles voam
todo felizes para lá e pra cá, todos batendo asas e ciscando. E meu espirito egoísta fica ainda mais
atacado, e eu penso, como pode um pombo ser mais feliz que um cara como eu que tem uma bela
filha e uma casa própria? Quer dizer, isso não é o sonho de qualquer homem? Pombos me deixam
de mal humor.
5
Se você vai andar pela rua e não tem para onde ir, não importa qual esquina dobre, a paisagem
será sempre a mesma.
E a cada quadra, o cenário é dividido em somente dois, ou se está em um bairro residencial ou se
está num centro de consumo. Há um limiar em ambos. Não se podem estar juntos, mas são como a
abelha e o pólen. Um precisa do outro, mas sempre um é mais benificiado que o outro. Em minha visão
a abelha é muito mais benificiada que a flor, pois mesmo espalhando seu pólen, aquela flor ali não
ganhou nada em troca.
E eu olho nos bares, que são como o mel da colméia. E vejo marcas de cigarro, Camels, Malboro,
Free. E adoro a ironia que os vendedores de cigarro tem.
Free. Livre é a ultima coisa que você se torna a fumar um destes. "A escolha original", eles dizem,
estampados em suas caixinhas; como pode ser original algo que milhares de pessoas fumam?
Não, hoje eu não irei fumar - e mesmo que quisesse não tenho dinheiro para comprar um maço.
Vou para casa a pé; Clarice vai estar na escola ainda, vou assistir um pouco de TV e dormir
no sofá da sala. O que eu gosto da TV é que você não precisa pensar besteira, elas pensam por você,
e no fim, nem pensando estamos mais, daí eu consigo dormir.
Estou esparramado no sofá, hoje é terça, e na terça a reprise de filmes é uma droga. Já estou
cansado de blockbuster que passam pela décima vez em menos de vinte e quatro meses. Mas também
não quero ver aquele programa onde as pessoas ficam reclamando da vida delas, e uma idiota fica
dando conselhos como se fosse uma psicóloga - vendo aqueles programas, eu vejo que até não estou
tão mal.
Eu fico lá, como um lagarto no sol, suando e resfolegando, o calor aumentou muito nos ultimos
anos, mas o que não mudou nos ultimos anos foi minha falta de dinheiro para comprar um ar condicionado.
Não que eu precise de um, é barulhento, aumenta absurdamente a conta de energia - que já não é
tão barata assim - e costuma a dar resfriado. Quando eu entro num banco - geralmente para fazer
depósitos, raramente para sacar algo - e depois recebo todo aquele ar quente no rosto, o choque
térmico sempre acaba me fazendo espirrar. E voí là, um resfriado gratuito.
O que eu não gosto do sofá da sala é da melancolia, eu me lembro da Claudia e fico me lembrando
do tempo em que as coisas não eram tão ruins assim. Tinha comida de verdade em casa. E por mais
diferente que fossemos, sempre tinha alguma bobagem pra conversar e fazer o tempo se arrastar
até o outro dia. Às vezes sexo. Às vezes tinha todo aquele esquema conversa-pré-coito-jantar-
sexo-conversa-pós-coito, que com a Claudia era até bom. Não parecia ser tão artificial.
Eu sempre me pego pensando sobre Claudia. É preciso me sensurar rigidamente porque estou
num processo de superação do passado. Não que em meu passado tenha coisas tão importantes
a serem superadas, mas eu preciso recomeçar de novo, não por mim, mas por Clarice, ela merece
isso do idiota de seu pai. Eu preciso superar o passado para poder pensar em algo suficientemente
legal para recompensar a minha ausência. E pensando agora, vai ter que ser algo muito legal, porque
eu fui um pai muito ausente.
Não foi só a formatura, foram muitas outras coisas. Tantas que eu tenho até vergonha de citar.
E não vou fazer você perder dez minutos da sua vida para você ter argumentos suficientes para me
julgar um péssimo pai, porque disso eu já estou bem ciente.
As horas se arrastam. É incrivel como as cinco horas demoram para passar. Quando Clarice
está em casa existe uma coisa, ao menos uma coisa que me faz querer continuar a respirar, mas
quando a casa está vazia como agora é cansativo puxar ar para dentro desses pulmões e a idade
de trinta e seis anos me parece bem avançada.
Quando eu tinha vinte e conheci Claudia tudo era tão diferente. Como tudo virou em direções
opostas e eu vim parar aqui agora?
6
Verão de 1980. Meus melhores anos. As musicas que tocavam no rádio traziam alegria e força,
e naquela época, pouco tempo após conhecer Claudia, eu realmente a amava, creio eu. Não quero
fazer nenhum julgamento, mas creio que foram os melhores anos da vida dela também. Nossa unica
preocupação era faculdade, tinhamos suporte de nossos pais, e éramos de certa forma - de uma
forma agradavel, mesmo que ilusoria - livres. Os bares estavão lá para nós o tempo todo.
- O que Weber nos diz é que o mundo não é constituido pelas ações importantes. A ação de
cada um, e isso inclui nossas próprias ações, é o que constroem o mundo como nós conhecemos.
- diz Carlos, nosso professor de sociologia. Essa é uma das ultimas aulas que temos nessa matéria,
e eu penso e reflito, e decido que é verdade, que minhas ações podem mudar as coisas.
Quando escutamos o sinal para o final da aula, todos saem eufóricos, todos querem conversar,
discutir a vida ou a matéria que nos impulsiona a raciocinar. Vamos fumar nos corredores e tomar
alguma coisa num bar próximo da faculdade. É num desses bares que conheço Clarice.
- Acho que se a gente fosse pra cima do sistema, a gente podia mudar cara - diz Augusto,
um dos meus amigos, sentado na mesa com a turma.
Mas meus olhos se viram e vêem uma garota risonha de calças jeans rasgadas e uma camiseta
dos Kinks. E embora meus ouvidos captem o que Augusto está falando sobre revolução social,
o que tento captar é o que aquela garota está falando com uma amiga, e entender a forma pura
com que ela sorri. Qual curso será que ela faz, é o que eu me pergunto.
Um bar para um pós-adolescente é um refúgio contra bombas. Não importa os limites das
entregas de trabalho estarem explodindo, podemos correr pro nosso pequeno abrigo, beber umas
e momentaneamente nos esquecer de tudo - claro que depois que a bomba explode há consequencias
muitas vezes sérias, mas naquele momento, estamos salvos de tudo.
- Mas as pessoas não se mobilizam, por isso eles estão vencendo - diz João, outro amigo na mesa.
Eu me levanto e ando em direção a garota de jeans, mas não consigo ir direto, então me encosto
no balcão ao lado dela. Um cara vem e me pergunta o que eu vou querer; com quinze centavos nos
bolsos eu digo que uma bala de cereja, ele me olha torto, mas trás a bala.
Daqui eu consigo ouvir o que ela está dizendo:
- Eu não acho de forma alguma que o mundo vá acabar no ano 2000 - ela diz, e sua voz é doce,
mas não de uma forma irritante. É suave, gostosa de ouvir.
Eu me aproximo dizendo: - Também não acredito que vá.
E ela e a amiga dela me olham com um olhar do tipo quem-é-você-e-o-que-você-tá-fazendo-aqui?
Mas eu sorrio pra elas e me apresento. Digo a elas que não pude de reparar no assunto e precisava falar
com elas.
- Mesmo? - diz a amiga, Sheila.
Claudia apenas me olha e diz que seu nome é Claudia.
- Oi. E então, vocês vão sair amanhã?
- Que cara de pau! - diz Sheila.
Mas Claudia gosta do que digo, e sorri. Ela pergunta para onde eu a levaria. E aqui muitos homens
errão o caminho. Levar para o paraíso, embora soe bem romantico e tal não é o que elas querem ouvir,
ao menos comigo nunca funcionou. Digo que para algum lugar com musica. Boa musica.
Todo o resto aconteceu tão rapido, passamos a nos falar todos os dias nos corredores. Passamos
a sair juntos sempre, até que aconteceu. Clarice aconteceu.
Foi bem na nossa primeira vez, e eu queria dizer que essa primeira vez foi ótima e que ambos sairam
satisfeitos, mas infelizmente não posso. Foi péssima. Ambos não sabiamos onde estavamos nos metendo,
nos metendo pela primeira vez ainda por cima. Vou evitar detalhes, mas posso dizer que houve dúvida
de localização correta do terreno inimigo.
Acho que quando casamos nos amavamos. Mas hoje parece que nos odiamos desde sempre, boa
parte por eu ser um extremo babaca, não culpo Claudia por me odiar. Eu me odiaria se fosse ela. E ainda
assim tiram Clarice dela e deixam o ônus de nossa relação comigo. Isso soa injusto. Talvez a justiça divina
esteja passando por momentos de dificuldade tecnica.
7
As pessoas estão sempre ocupadas agora. Elas atendem o telefone e seguram com os ombros, porque
suas mãos estão ocupadas com o controle remoto, estão ocupadas digitando mensagens num computador.
O tempo que elas passam no computador seria equivalente a pegar um ônibus e ir ver a pessoa e apertar
a carne e o osso que constitui essa pessoa de verdade. Mas estamos dramaticamente comicos com nossa
existencia. Estamos discutindo filosofia de botequim em comunidades da internet. Estamos lendo livros de
auto ajuda. Comendo comidas com conservantes. Gastando água para lavar nossos carros financiados em
120 meses. Pintando nossas casas, e deixando de herança a hipotéca para nossos netos.
E todos acham que são protagonistas desse tragidrama moderno. Cada um se acha especial e acredita
que tem algo reservado para ele depois que sair daqui. Como somos egoístas, temos uma vida inteira e ainda
queremos uma recompensa divina. Eu não quero mais nem essa, quanto mais outra num lugar feito de algodão
e com anjos chatos tocando harpas. Não prefiro qualquer outra coisa.
Ouço o batente da porta e Clarice entra, joga as bolsas no sofá. Passa por mim e diz "oi", e vai para seu
quarto. Eu ouço um bip, e logo os pequenos ventiladores de refrigeramento estão rodando a 1200 RPM, e
ela está ligando o monitor, está se conectando com o mundo que eu perdi contato.
Pouco tempo depois de Clarice se enclausurar com seu mundo digital, eu ouço baterem na porta.
Quando abro, dou de cara com um velho, Chico, meu pai.
Ele tem a tempora sangrando, e no ferimento dezenas de pequenos cacos de vidro, agora vermelhos
pelo sangue enfiados na ferida, não tão profunda, mas funda o bastante para alcançar os vasos sanguíneos
e fazer o sangue escorrer por todo seu pescoço até a gola de sua camisa polo.
Mesmo odiando o velho em minha frente, eu deixo ele entrar. Sentado em minha frente eu vejo o meu
futuro, caso continue em vida. Um velho horrendo, do qual ninguém sente nada além de ódio, e bebado.
Lá no meu sofá ele me conta como minha mãe se encheu dele e quebrou sua garrafa de whiskey em sua cabeça,
acordou depois de sabe-se lá quantas horas depois e percebeu que o unico lugar para o qual poderia vir
era aqui, na casa de seu filho.
Por sorte Clarice não está aqui para ver essa cena.
Depois de um tempo meu pai me diz com sua voz tropega e tremula:
- Você poderia tirar isso com uma pinça? - diz ele gesticulando para os pequenos fragmentos de vidro
avermelhados.
Eu digo, claro. Como se fosse uma coisa normal. Na verdade digo laconicamente por ausencia de forças
para xingar o velho. Depois de tantos anos minha vontade se exauriu a tal ponto que nem mesmo aquele velho
eu conseguiria ofender.
Eu volto momentos depois e sento ao seu lado. Com a pinça vou jogando os cacos que removo dentro
de um velho cinzeiro que encontrei perdido em uma gaveta onde estava a pinça. Eu digo a ele que não pode
ficar ali por muito tempo, e sob uma condição, que ele não beba se pretende ficar um segundo a mais nessa
casa. Ele meneia a cabeça, um tanto tristonho, mas por fim concorda.
- Eu sabia que esse dia chegaria, Chico.
- Não sou mais pai?
- Você foi despedido desse cargo há muitos anos, velho. - digo, mas sem rancor. Sem humor porém.
Digo a ele que durma, e que não faça ruídos porque não quero que Clarice saiba que ele está por ali.
Eu achei que fosse tudo acabar agora. Mas o que se segue é algo que eu nunca imaginei aconteceria.
8
Tudo começa na terça. O velho é pego por Clarice no banheiro. Ela sai, naturalmente correndo, e me
encontra no sofá e diz:
- Tem um cara no banheiro!
Eu vou puto reclamar e dizer que ele quebrou a unica clausula de nosso contrato. E que se vá.
Mas ele está vomitando algo, o que me deixa sem palavras. Ele me diz:
- O que é isso? - pergunta ele indicando para a patente.
Eu olho a coisa, está enegrecida, boiando sobre a água. Junto a um monte de comida mal digerida.
Sua saliva escorre num fio que gruda no acento da patente. E ele tosce. E logo vomita novamente,
mas desta vez é sangue misturado a liquídos gastricos. E eu olho a coisa flutuando novamente e percebo.
- É um pedaço do seu pulmão, Chico.
Seus olhos velhos e cheios de entradas, sem brilho, se arregalam, e ele me olha fixamente, eu não
preciso contar o resto. Ele já sabe que está com cancer. Esses velhos que não vão ao médico. Poderia
viver alguns anos, mas agora que começou a a vomitar as próprias tripas é sinal claro que o que havia
lá dentro está podre.
- Oh, Michel. - diz ele, pronunciando meu nome. Há tempos não escuto meu nome da boca daquele
velho. Desde que sai de casa para ir para faculdade. Desde que me casei com Claudia.
Não posso deixar de notas os filetes de saliva grudados na patente junto com pedacinhos de sangue
já coagolizado. E nas lágrimas que lhe escorrem pelos cantos do rosto. Ele já é careca e magrelo, a quimio
vai deixar apenas mais um cadáver. Porque um cancer nunca se cura de verdade, suas células já estão
mutadas, e mesmo quando se retira o pedaço pobre, quando se descobre tal parte putrida de seu corpo
outras partes estão prestes a apodrecer, seja daqui a um mês ou dez anos, mas nunca se está realmente
curado. A ilusão da medicina moderna é a cura dessas doenças.
Clarice está sentada no sofá. Quando volto à sala ela me pergunta quem é aquele homem.
Eu digo que é um velho conhecido, que está desempregado e precisa de um lugar, e digo nitidamente
que vai ficar ali por mais uns dois dias.
Esfrego meus olhos, pensando em toda aquela merda, e na minha absoluta incapacidade de mantar
aquele velho idiota embora. Já não seria fácil antes, agora com ele tocindo as tripas pra fora não facilita
o processo de nenhuma forma.
Depois de Clarice ir para a escola, eu digo ao velho Chico que precisamos conversar. E não ali,
precisamos sair e tomar decisões.
Estamos caminhando na avenida. E eu digo que ele fez tudo errado, e que ele tem que ir embora.
O lugar dele não é ali. Não mais. Estou indo preencher um cadastro na agência de empregos e entregar
meu curriculo em uma agência de fast food. Qualquer merda está me servindo agora.
- Mas não foi culpa minha - diz o velho, com a voz lamuriosa, como se ele fosse o filho errante.
- E de quem foi? De clarice por usar o banheiro da própria casa? Desista velho, você não vai me
convencer. É o fim da linha.
E não quero dizer aquilo literalmente naquela hora, mas ele sente o segundo sentido da frase. É
tão tipíco, ele estar fodido e me procurar. Nunca esteve lá quando eu precisei. Eu me esforcei para
não precisar dele.
Ele retira um cigarro de um maço que trazia na carteira dentro do bolso da camisa amarela desbotada.
Coloca na boca, e eu digo a ele como essa é realmente uma grande ideia. Ele dá meio sorriso e diz:
- Agora, acho que não importa mais.
Eu digo a ele que vá pra casa e arrume as coisas e vá embora amanhã, digo que a estória de fachada
dele não vai dar mais pra cobrir a mentira por mais que um dia. E então ele vai. Digo que não chegue nem
perto de Clarice, suma de vista e fique no seu quarto. Isso se quiser ficar mais um dia. O ultimo dia.
Na rede de fast food digo que quero tentar uma vaga. Eles me olham e dizem que não me encaixo no
perfil requerido deles. Não tenho mais meus vinte anos, mas sei fritar hamburgueres, porra! Jogo o papel
amassado do curriculo na cara do atendente e vou para a praça. A praça onde hippies tocam musicas do
Raul Seixas e pregam a paz. Pombos empoleirados em todos os cantos, arrulhando alegres. Mas hoje,
hoje eu não sinto raiva de nenhum pombo. Na verdade, estou tão saturado que não tenho forças para
sentir raiva mais de nada. Nem do meu pai, nem de ninguém.
No fim de uma das musicas, Meu Amigo Pedro, um homem cabeludo com brincos nas duas orelhas
pega o microfone e diz:
- Se não der certo tente outra vez. Faça sua vida ter sentido, e se mesmo assim não tiver, tente outra
vez! - e ele emenda com o sucesso Tente Outra Vez, e dessa vez ele toca bem. Ele deve ter ensaio. As pessoas
melhoram, e eu sinto inveja. Eu não consigo me esforçar o suficiente em nada, e na unica coisa que tenho
vontade, melhorar como pai, sempre falho miseravelmente.
Chego em casa, e ouço duas vozes, vozes que eu conheço muito bem. Maldito velho, eu avisei ele.
Fico à escuta, e ouço:
- Então você é a Clarice.
- Sim, como você sabe.
O velho hesita por um monento, mas se sai bem:
- Seu pai fala muito de você. Na empresa... que nós trabalhavamos. Ele falava sempre de você.
- E o que ele dizia?
- Que você era uma guria muito especial. Essas coisas.
- Sério? Nunca achei que ele pensasse isso de mim.
- Ah, seu pai é meio rabugento às vezes, mas é um bom homem.
- O senhor conhece ele a muito tempo?
- Oh, sim. Desde que ele... desde que entrou na empresa.
- Uhmm.
Pausa.
- Você se parece muito com sua mãe.
- Você conheceu minha mãe?
- Oh sim, ela sempre estava com cabelos soltos. Cabelos como os seus.
- Sinto fala dela.
- Sim, foi uma mulher incrível.
- Você conhecia ela tão bem assim?
- Um pouco. Apenas nos jantares de família... - ele quase revela a mentira. - Que seu pai me convidou.
Boa escapatória velho.
Então eu abro a porta. Digo ao velho que precisamos conversar.
Mais um dia, essa noite e só! Eu digo para ele e pergunto se já fez as malas. Com olhos tristonhas ele
responde que sim. Que só queria ver a neta. Mais uma vez.
E então a noite se passa. E quando acordo ele realmente se foi.
9
- Pai, como era o nome daquele seu amigo que ficou uns dias por aqui? - pergunta Clarice na sala.
- Chico - digo eu - Chico Euclides.
- Uhmmm.
- Porque?
- Saiu o nome dele aqui no obituario.
Eu corro para sala. Pego o jornal em minhas mãos. E leio o nome de meu pai na sessão de falecimentos.
Involuntariamente começo a chorar. Derrubo o jornal no chão. E Clarice me olha.
- Vocês eram muito amigos?
Eu me encosto no sofá, tento parar de chorar, mas parece ser impossível. Então respiro fundo e digo:
- Há algum tempo atrás fomos grandes amigos. Mas o tempo passa, Clarice. E as coisas mudam.
Sim, as coisas mudam, um dia você ama seu pai, quer ser como ele quando crescer, no outro é o homem
mais odioso que você conhece. Num dia seu pai está vivo, e no outro está numa nota de rodapé do jornal.
E por mais ódio que tenha no coração, foi ele que bancou minha faculdade. Foram meus pais que me educarão.
Forão eles que derão tudo o que podiam quando eu queria. Eles mudaram, ou seria eu que continuava o mesmo,
rancoroso por qualquer bobagem. Ele mudou, ou fui eu que não quis aceitar a vida real, a vida para qual eles
estavam me preparando e eu não deixei, porque queria sair de casa, queria viver minha vida, porque me sufocavam.
E mesmo que eu tenha feito burradas, ele continou a ser meu pai. Eu que deixei de ser filho dele.
E num dia seu pai está vivo.
No outro, não há mais tempo para pedir desculpas.