Revelia

Eu cometi um terrível engano.

Por um momento, grande demais para ser mensurado eu achei que o

que importava era o que eu pensava. E acho que descobri tarde demais que

o que realmente importa é o que fazemos. Palavras sem ações são só

palavras que não me servem nem de consolo. São só silabas que formam

um dialeto insignificante quando o que elas realmente significam que

você irá fazer o que você diz.

Paz.

Amor.

Eu disse a Pati: eu te amo. Não uma, mas várias vezes. É inegável

o numero de vezes que eu lhe disse isso. Mas quantas vezes eu amei

ela? Quantas vezes esse amor foi fisíco e não somente um débil expressão

literal clichê e vazia. Me dói dizer, mas acho que todas as vezes.

E da mesma forma eu paro para pensar, quantas vezes as pessoas

me amaram, não somente disseram que me amavam. Ouso dizer que

todas as vezes. E não tome isso como amargura de minha parte. Não

é fácil amar nem a si mesmo, quanto mais a outros.

Palavras podem dizer muito, mas o que muito significa para alguém

sozinho nesse mundo, como creio que todos estamos. Recebendo

declarações de amor de quem nem ao menos conhece nosso íntimo.

Nada, é isso que a palavra amor vale.

O melhor dos amores é o silencioso. É o ato amor. Não a palavra.

Se a cada dia em que alguém lhe dissesse eu te amo, ela se calasse

e somente te amasse, você se sentiria alguém muito mais completo.

Haveria muito menos uso de antidepressivos. A taxa de suicídios certamente

cairia pela metade.

O problema atualmente é que com a solidão global, todos aceitam

as palavras como conforto do que não podem ter realmente. É muito mais

simples ouvir eu te amo todos os dias antes de ir para o trabalho, antes

de uma árdua jornada de oito horas de esgravagismo do que em alguns

raros momentos na vida ser amado. Todos preferem assimilar a palavra

à ação, e nem se lembram que a ação existe. Admito que o ato em si

exista, e com certa frequencia. Porém, não acredito que muitos estão

preparados e aptos a aguardar tal momento.

Antes adocicar o fel que aguardar o mel.

Voltemos a dois meses atrás. Patricia está se arrumando no banheiro,

se dosando com perfumes que eu não imagino o nome, mas dos quais ela

sabe até o nome dos fabricantes. Eau de Perfume importado. Está alisando

os cabelos, não sei se é para mim ou para ela, para mim não importa, mas

como sei que importa a ela, eu aguardo pacientemente sentado em um puff

da sala dela que deixa meus joelhos perto de meu toráx. A televisão está

ligada e alguma mulher que passa horas na academia, aparentemente,

apresenta um novo método para emagrecimento com barras de cereais e

uma gororoba especialmente nutritiva, com a promessa de alimentação saudável

durante o processo de regime.

- É garantido - diz a apresentadora alta e esguia de voz irritante.

Se você comprasse frutas no lugar do programa da semi-analfabeta na

televisão certamente teria uma dieta muito mais balanceada e não passaria

fome. Mas a TV tem um charme a mais que as frutas parece não ter. É difícil

para uma maçã parecer glamurosa num balcão cercada de outras frutas que

começam a apodrecer junto a outras dezenas de maças abdicadas pelas

barras do programa. Ainda mais quando abelhas começam a voar ao seu

redor conforme sua suave película vermelha que a revolve começa a ficar

mole e um grosso liquído passa a escorrer da sua superficie, e tardiamente

uma fila de moscas vem a provar sua seiva gratuita, a mesma que os seres

humanos, ditos racionais abriram mão. O que não me deixa de pensar na superior

inteligência de uma musca domestica sobre nosso tão dito intelecto.

Logo após estar vestida e cheirosa das fragrancias chiques, ela pega um

lápis de delineação e pinta os contornos dos olhos com suaves traços, realçando

cada cílio. Estendendo-os a um formato inatural. Então ela pega um pequeno

estojo e passa pó de arroz e blush. É a naturalidade sendo batida contra a

ditaduta cosmética, e perdendo a batalha. Tenho esperança de que ainda percebam

e não deixem esse monte de química vencer a beleza natural feminina que me

atraí muito mais. Cílios comuns. Pele com acne e manchas. Bochechas pálidas.

Cabelos secos e ressecados. Seios pequenos que murcham com o tempo.

Lábios da cor natural. Isso tudo me atraí muito, e é o que eu mais amo nas

mulheres. Como o que amo na natureza são as flores silvrestres que crescem

sem adubantes, sem aparagens, somente a polinização natural.

A flor é como a mulher, mas ela não começou a comprar pétalas postiças,

e espero que nunca o faça, porque não existe flor mais bela que as do campo.

Assim como não existe nada mais belo que uma mulher ao despertar na manhã,

nua e crua, natural. Sem maquiagem. Cabelos revoltos. Isso é a coisa mais bela

que meus olhos podem captar.

Ela escova os cabelos com a delicadeza de uma concha na praia. Como se

houvesse uma pérola a ser resgatada. Em minha opinião a pérola é o que está por

trás da grossa maquiagem. É o que quero resgatar. É o que queria.

Ela sai do banheiro, e está linda de qualquer forma. Ela ajeita minha gravata

e diz que estou bem, que estou aprensetavel para um casamento. E nós saimos,

o taxi já nos espera, posso ver ele do terceiro lance das escadas. E lá vamos nós

assistir o desfile hipócritas de ricos bem vestidos. Suas argolas gigantescas penduradas

em orelhas murchas e grandes, a maior parte dos convidados são velhos conhecidos.

No sentido velho, geriatrico da coisa. Patricia está ansiosa pelo seu próprio, e quer

ver a cerimonia de perto, ajeitar tudo, anotar tudo mentalmente para não ter nenhum defeito

aparente.

Eu pedi Pati em casamento depois do dia em que ela chegou em casa, comentou

muito sobre o assunto, e pude sentir pelo seu tom de voz o quando desejava a coisa.

Então algumas semanas depois eu já estava com a jóia em meu bolso, não foi nada

romantico, simples apenas, mas ela gostou, chegou chorar de emoção.

Estamos nos deslocando pela rua que nos leva à catedral, e paramos em um sinal.

Um homem barbado de óculos nos aborda. O taxista pragueja que não vai dar esmola.

Ele desce a janela e grita:

- Ei, ei. Não, tira esse rodo do meu carro! - diz para o homem que começa a esfregar

e limpar o vidro dianteiro do carro. Então se aproxima e saca uma arma na cabeça do taxista.

Abra a porta, ele diz. E logo se enfia no banco do passageiro.

São sete horas da noite, e ele age sem qualquer problemas, sem qualquer tensão,

simplesmente senta-se no banco e mando o taxista seguir para a av. Brasil, e diz que lá

nós iremos aos nossos bancos fazer uma retirada para ele. Diz que todos podem ficar

bem se seguirem as regras.

Na frente da rua onde ficam os bancos, nós descemos, um de cada vez. Primeiro vai

Patricia, ele vai fingindo um jeito amigavel ao lado dela, com a arma, que na realidade não

pudemos ver qual era com muita nitidez, empunhada contra sua cintura. Ficamos eu e o

taxista, ele olha no retrovisor, seus olhos demonstram um gesto de perspicacia. Então ele

abre o porta luvas e de lá tira sua própria arma. Eu movo lentamente o rosto em um ato

negativo. Mas ele me ignora e põe a arma atrás de si. Do outro lado da rua vem o homem

e Patricia. Quando ele vai abrir a porta o taxista abre a arma, e dispara quantos tiros é

capaz. Com o barulho, as pessoas e as pombas saem arrulhando. Assustados. Sem saber

de onde vem o tiro eles correm para todos os lados, se chocam, alguns caem de encontro

com os outros. Pombos se chocam contra as grande e transparentes janelas dos bancos.

O taxista dá ré, ele vai atropelar o homem barbudo. Mas Patricia está na frente dele,

aturdida e confusa. Então, antes que ele engate a primeira para sair em disparada, eu pulo

contra ele, e lhe agarro o pescoço. Tudo acontece rápido demais para que eu perceba, tudo que

vejo é o taxis mudando de direção e indo de encontro com um poste, depois de um choque

contra algo sólido, eu me vejo no chão imóvel. E a figura que se está ajoelhada ao meu lado

é Patricia. Ela está dizendo calma, que tudo ficará bem. Diz que está chamando o SAMU.

Eu digo, Pati, eu te amo.

E penso, conforme minha visão fica um tanto desfocada e os sons parecem vir em ondas

compridas e atrasadas da boca dela, como em um filme com o audio atrasado. A boca dela se

mexe, mas as palavras "tudo vai ficar bem" demoram para chegar ao meu ouvido, e parecem

de alguma forma em camera lenta. E penso: desta vez eu realmente amei ela ao invés de

somente repetir as palavras eu te amo? Terei amado ela ao menos uma vez?

Quando minha consciencia me diz que sim, eu suspiro, e fico incosciente. E tudo fica longe.

E minha visão vai esmaecendo, devagarinho. E eu vejo os pombos pousarem ao redor de nós dois.

E eu vejo os olhos castanhos de Patricia mais uma vez. E com as forças que consigo reunir, eu sorrio.

Me esvaindo em sangue, eu sorrio.

Parando de respirar, sorrio.

E olho para Patricia pela ultima vez.

E sorrio.

Gabriel Dominato
Enviado por Gabriel Dominato em 16/03/2009
Código do texto: T1489429
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