Folhas Secas

1

Eu choro.

Choro e meu filho diz que quer morrer.

Seus braços finos e pele ressecada se agitam no ar.

- Porque eu? - ele diz, e chora também. - Porque?

Isso para uma mãe é como o maior sinal de impotência. As lamúrias de seu filhos aos seus ouvidos e você na poder fazer.

Uma semana.

O médico que trata Alisson diz que ele tem mais uma semana. No maximo duas.

Essa é a sensação mais ambigua que já senti em minha vida. O alívio porque tudo vai acabar. E o medo, porque tudo isso vai acabar.

Alisson. Meu Alisson.

2

Foi em uma noite nublada que Alisson chegou com seu namorado. Ambos pareciam tão felizes, mesmo com aquele terrível tempo que fazia galhos tamborilarem sob os telhados.

- Eu perdi minha virgindade, mãe - diz Alisson, de mãos dadas com o namorado. Eles tinham um olhar apaixonado; daqueles que só vemos na juventude plena.

Nada nesse mundo tem mais força que um sonho na juventude.

Ao envelhecermos a matéria que compoe os sonhos parece se esvair de nossas veias. Sobrando apenas a dura realidade da vida. Mas quando jovens, o sonho é real.

Eu olhei para ele e pisquei.

Nós sempre nos entendemos muito bem.

E mesmo com seu pai longe de casa, Alisson parecia realmente bem. Mesmo com a briga antes dele contar sobre sua sexualidade.

Eles sairam, e eu sabia que tinha educado um bom filho.

Meu Alisson, que só tirava notas boas, que todas as professoras adoravam, que fazia trabalhos manuais e participava em passeatas de ativismo.

Mas foi em uma tarde ensolarada, onde o sol sorria raios radiantes que ele entrou chorando e me contou a história toda. É difícil mesmo agora contá-la.

- O Renato recebeu a notícia de que sua mãe é aidética - disse ele, chorando e tremendo. Alisson estava com a voz tremula e a sáliva escorria pelo canto de sua boca. - Ela amamentou ele, mãe! O Renato recebeu leite de uma aidética!

Foi assim que Alisson se tornou soro-positivo.

Naquela época os remédios não eram tão eficazes, e em menos de um ano ele estava infectado, seus braços finos tais quais meus pulsos. E agora sua pele assumira um tom pálido, amarelado, descamado. No seu corpo logo surgiram pústulas e escoriações por ter que ficar constantemente deitado, e não ter forças nem para se mover. E eu não podia cuidar dele o dia todo, pois precisava pagar os medicamentos que cada vez pareciam corroer tudo que ele fora um dia.

3

Agora Alissonn me olha.

Seu olhar é vazio e seus olhos estão formando cratéras.

Ele tosse, e tosse, e tosse. E chora.

Ambos choramos.

Porque foi hoje que o médio disse que o AZT não iria surtir efeito com a condição atualdo sistema imunológico dele.

Eu choro de desespero. Alisson deve chorar de dor.

Não consigo imaginar como deve ser ter todo o seu organismo falhando, como se alguém cortasse a tomada que

abastece seu organismo de energia.

Alisson é um casúlo onde uma borboleta poderia nascer, mas que puxaram suas asas para fora e ele nunca, nunca

conseguirá voar.

E eu sou o cúmulo da inutilidade. Sei que daria minha alma e minha própria vida para salvar a de meu filho. Mas

não acredito mais em milagres. E tudo que eu queria agora era saber a ultima coisa que Alisson queria.

E ele me diz que quer morrer.

4

Meu filho está morrendo de pneumônia porque seus glóbulos brancos se reproduzem mais lentamente que as

células que estão o consumindo por dentro.

As estatísticas apontam que há cerca de quarenta milhões de infectados pelo mesmo virus que meu Alisson está.

Os dias passam.

Alisson parece tão cansado.

Eu sonho: Alisson em seu primeiro aniversário. Sua primeira bicicleta. Sua primeira palavra.

Tudo vai embora com os bips da máquina.

Bip... bip... bip...

Acelerando. E por fim, um longo e extenso sinal de linha telefônica.

Sei que você esperava algo mais.

Mas a vida é assim mesmo. Banal, sem efeitos especiais. Sem ápice.

Eu não preciso dizer que meu filho morreu.

Porque somos um montuado de clichês.

Porque vimos algo do tipo na TV.

E eu te digo: Na vida real, sem trilha sonora, nada causa tanto impacto, a não ser em mim.

E mesmo assim, é mais do lado de dentro.

Os médios e enfermeiras vem.

Me olham desconfortavelmente e dizem apenas:

- Lamento.

5

A vida é tão frágil.

Tão curta.

Vejo agora como é bobagem se dedicar demais a qualquer coisa.

A vida é temporal.

E a unica coisa que vamos descobrir é que no decorrer dessa estrada é que estamos sempre perdendo tempo.

O que eu vou te dizer é o que queria ter dito a Alisson, se houvesse tido tempo: Não fique parado. Não assista

tanta TV. Saia da frente do computador. Não perca seu tempo com pessoas vazias que só querem sugar o que

você tem de melhor para tentar preencher a si mesmas. Não fique no meio, na mediocridade. Viva ao extremo.

Não segure lágrimas. Não guarde palavras. Cante. Tome banho de chuva. Se apaixone. Fume. Beba. Viva. Morra.

Faça o que você quiser se isso for te fazer feliz.

Sei que ninguém vai te impedir.

É difícil nos fazermos felizes.

Mas você pode fazer outra pessoa feliz.

E talvez, um dia... você venha a ser a outra pessoa.

Não viva sabendo que vai morrer.

Morra sabendo que viveu.

E para você, sim você que segura meu diário, que segura essas páginas, se você leu tudo isso, feche esse livro agora

mesmo, feche-o, deixe ele de lado e vá fazer alguém feliz. Vá se fazer feliz.

Para o Alisson não houve tempo.

Mas para você ainda há tempo.

Gabriel Dominato
Enviado por Gabriel Dominato em 16/03/2009
Código do texto: T1489427
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