Podando o parreiral
Minha vizinha cria gatos, zilhares deles. De todas as espécies e cores, eles somem adultos e reaparecem filhotes. Quando os filhotes aparecem não tem um pelo de gato adulto para contar história. É um fato tão misterioso que essa é a quarta vez que falo sobre isso.
Tenho um lindo parreiral composto por quatro tipos de uvas, a branca, a rose, a preta e a outra eu não sei o que é porque nunca deu frutos. Pois justamente esse quarto pé faz divisa com o terreno da minha vizinha maratonista, e é ali também que nascem muitos pés de funcho ou erva doce, que eu arranco fora com raiz e tudo e eles reaparecem em brotos verdejantes e cheirosos.
Como é de costume e segundo dizem os entendidos, as parreiras devem ser podadas quando:
1-Der a última geada.
Contratei um vidente e fiquei de olho na previsão do tempo por no mínimo dois meses, sem sucesso. Quando afiava a tesoura geava.
2-Quando a árvore da bracatinga brotar.
Primeiro fiz pesquisas para saber que árvore era essa e de posse da informação fui procurá-la in loco, depois de muito tempo descobri um pé no meu pátio, bem acima do meu nariz. Não estava brotando.
3-A árvore de Ipê estiver com as flores abertas.
Perguntei qual deles, o amarelo, o branco ou o roxo? Cada um me respondeu de uma cor diferente e abandonei essa estatística por falta de provas contundentes. Mas fiquei de olho no pé de ipê amarelo da vizinha.
4-Ser dia de Santo.
5-Ser o mês de agosto.
Todas as alternativas tinham que ser no mês de agosto. Escolhi o segundo domingo do mês, tinha geado uma semana antes, vistoriei a bracatinga e notei alguma coisa minúscula nos galhos e como era verde dei por brotos. A bracatinga brotou! Exultei.
Faltavam-me as flores do Ipê e o nome do Santo daquele domingo. Afiei a tesoura de olho numa possível flor de Ipê e dei ao domingo da poda o nome de “Santo Baco” numa referência nada católica ao deus do vinho da mitologia grega.
Logo na primeira hora da tarde comecei a poda, com um olho na tesoura para dar o golpe certeiro – entre um broto e outro – e outro no aparecimento sutil de um gatinho, do lado de lá da cerca. Os gatos da minha vizinha. Podava um galho e aparecia um gato.
Uma sombra perpassou por mim quando estava na metade do segundo pé, o rose, eram gatos enfileirados no pé da cerca, todos sentadinhos olhando-me. Nem se coçavam, nem se lambiam.
Quando iniciei a poda do terceiro pé - o de uvas pretas - não pude contar aquela população de gatos que me espreitavam de soslaio. Ensaiei um susto para espantá-los, mas a curiosidade me dominou e fiquei ali cortando e cuidando de onde apareceria mais um gato e de cor seria e que tamanho teria. Terminei aquele pé e parti para o seguinte. Primeiro cortei a touceira de erva doce que teimava em nascer aos pés do quarto pé.
Comecei a afastar os galhos da parreira e então o miado principiou de um gato, se não me engano foi o primeiro que apareceu há uma hora quando ainda estava ensaiando a poda das videiras. Cortei o primeiro galho e os gatos enlouqueceram. Mirava a tesoura e os miados estouravam. Quando parava, eles paravam.
Tinha alguma coisa naquele pé. Ou abaixo dele. Ou mesmo dentro dele, quem sabe? Dei uma volta para ver se os gatos dispersavam, e então lá estavam eles paradinhos, esperando.
Não pude continuar, mas convoquei meu marido sem contar o ocorrido e pedi que cavasse em torno do pé para ver se não tinha alguma coisa, já que aquela parreira não dava frutos mesmo. Qualquer coisa arrancaria e plantaria uma que produzisse. Ele achou loucura escavar ao redor do pé e me disse que o domingo era um dia santo e servia para o descanso e não para a escavação.
Os gatos ouviram nossa conversa e no lugar dos miados eles soltavam ruídos que pareceram risadinhas. Eles venceram. Por enquanto. Esperei anoitecer e cuidei que não estavam mais lá, já deviam estar fazendo parte de algum ritual macabro de minha vizinha e seu namorado oculto. Saí da casa pé ante pé, fui de chinelinhos para fazer menos barulho e no escuro mesmo, cortei um galho daquela planta fatídica.
Só acordei meia hora depois na grama com meu marido me chacoalhando, a tesoura numa mão e na outra uma haste da quarta parreira. Tinha os braços e as pernas arranhados e meus chinelinhos haviam sumido. Nenhum gato à vista. E nenhuma explicação plausível que meu marido exigia.
Surto? Veneno? Ritual? Estaria embaixo do pé um cemitério de gatos? Eu tinha certeza de ter cortado fora a touceira de funcho, e quando abri os olhos do desmaio, lá estava ela, forte, bonita e cheirosa. A touceira arrancada também estava lá, do ladinho da nova a rir-se de mim.