A morte do Pingo
Pingo era um cachorro da marca pequinês. Digo era porque ele já morreu. A ironia da morte do Pingo foi exclusivamente relacionada ao tamanho dele, de modo que o enterro não custou mais que alguns centímetros de buraco escavado no quintal de casa. A terra retirada do túmulo serviu apenas para cobrir uma semente recém plantada no vaso que enfeitava a entrada da garagem.
Pingo não tinha cor definida, ora branco ora amarelo com manchas negras, aos desconhecidos era impossível reconhecer o cachorrinho que aparecia latindo na cerca da casa. Mudava a cor do pelo assim como mudava o humor. Se alguém fizesse barulho de manhã - perto da sua casinha onde dormia placidamente – e ele acordasse, a cor do seu pelo escurecia assustadoramente e durante o dia inteiro mordia sem motivos, não comia ou se comia só o fazia com o lixo que derrubava do cesto. Tinha prazeres estranhos quando era acordado e às vezes passava horas escondido entre as folhagens da urtiga que crescia encostada ao muro dos fundos da casa. Quando estava muito nervoso, além de encolher-se no esconderijo inacessível, ainda comia o esconderijo enquanto rosnava ameaçadoramente. Ninguém chegava perto dele.
Aconteceu que um dia choveu tanto que o muro caiu bem naqueles lados do urtigal. De dentro de casa, pela janela, olhávamos o local com uma ansiedade doentia temendo pela vida do Pingo. Justamente naquele dia ele estava muito, muito nervoso, além do normal e havia se refugiado embaixo das folhas rosnando e fazendo cara feia. O muro caiu. Provavelmente bem em cima do Pingo. Não tinha luz porque havia dado um curto circuito numa caixa na rua de cima. Aquela massa disforme da cor do breu só foi decifrada com uma lanterninha a pilhas. Todo mundo queria pegar a lanterna porque achava que onde focaria encontraria os restos mortais do Pingo. Joana minha filha ameaçou um chorinho entrecortado pelos soluços angustiantes. O foco da lanterna só encontrava a terra amontoada em meio ao concreto e aos tijolos destruídos pela chuva e uma ou outra folhinha de urtiga.
Não tínhamos mais esperanças. Joana chorou um choro tão dolorido que comecei a chorar também e o choro correu como num efeito dominó, e aos poucos a família inteira – éramos seis – chorava convulsivamente o passamento do Pingo. Foi então que ouvimos um choro de companheirismo, desses que só um cão é capaz de chorar. Pingo! Ele estava vivo e estava ali o tempo todo procurando por ele mesmo naquele desabamento do seu esconderijo, ajudando, mesmo que na clandestinidade a família apinhada junto à janela portando uma lanterna minúscula e iluminando lá fora. Que alegria! Gritava Joana e todos ficaram tão felizes que se abaixaram para festejar a vida do Pingo. O sufoco amoroso foi tão intenso que Pingo não resistiu e morreu por asfixia para pasmo de todos. Meu marido ainda tentou uma respiração boca a boca, mas Pingo era tão pequenino que não era possível efetuar o procedimento. Joana nem chorou mais porque a fatalidade da chuva foi a infâmia da morte predestinada de Pingo e ela já tinha chorado toda a morte dele. E olha que morte por soterramento é bem pior que por asfixia. Será? Em todo o caso enterramos o Pingo lá no urtigal do muro desabado e ninguém mais falou sobre o assunto.