Na Ladeira
Todas as tardes, sol ou chuva, calor ou frio, dia de trabalho, feriado ou dia santo, Juvenal sentava num ridículo e surrado banquinho de madeira, se escorando no portal de pedra de cantaria, bastante pichado por moleques idiotas e com as marcas do tempo que escondiam a beleza daquela pedra que ornamentava a entrada do fétido botequim do Souza. Fétido hoje, pois há 80 anos era um belo “estabelecimento de secos e molhados”. Souza recebeu de herança de seu pai Francisco que havia recebido das mãos do seu avô Arlindo, o primeiro português da família a aportar na Praça Mauá vindo de Figueira da Foz, cidade pequena, litorânea, forte no pescado, localizada entre Lisboa e a cidade do Porto.
A Birosca do Souza, na Lapa, na rua Joaquim Silva, bem ao lado da escadaria Selaron, estava vazia como de costume. Pontualmente, cinco e meia da tarde, Juvenal se acomodava no seu canto e pedia a primeira das religiosas cinco cervejas que tomaria, acompanhada por uma pinga braba que não tinha a menor idéia da procedência. Souza não perguntava mais nada para Juvenal, nem mesmo cumprimentava o homem. Depois de ouvir sempre um ganido como resposta ele desistira. Juvenal, corpo atarracado, cabelos negros, pele grossa do sol que o castigou na sua infância em algum lugar do interior de Pernambuco, pouco mais de um metro e meio de altura e uns 70 quilos, tinha olhar vidrado, boca cerrada, camisa sempre molhada e colada ao corpo suado. Ele era a imagem perfeita de um homem sem passado, flutuando num limbo no presente e sem qualquer idéia do futuro. Esperar a morte chegar era o resumo de Juvenal. Sem mulher, sem filhos, a família foi coisa do passado. A mulher já enterrada e o filho perdido no mundo. A única âncora de Juvenal era a birosca do Souza. O conforto que o calor da pedra em que encostava as suas costas trazia, era o abraço da mãe que nunca tinha visto.
Segunda cerveja. O movimento dos passantes aumentava, fim de expediente, início da noite na Lapa, turistas indo a ladeira e Juvenal observava tudo sem se mover muito. Souza iniciava a distribuição de banquetas na calçada agora que o escaldante sol não torrava mais a frente da birosca. Normalmente em meia hora todas estariam ocupadas por costumeiros beberões e por alguns turista, atraídos pela antiga entrada de pedra da birosca que ainda fazia algum efeito visual no lugar.
Terceira cerveja. Um grupo de amigos parou para tomar uma água e também umas latas de refrigerante. Eram jovens e fortes, falantes, e nitidamente não eram cariocas, o sotaque mineiro entregava o grupo. Juvenal olhava a latinha vermelha do refrigerante e não fazia idéia do sabor daquilo. Em toda sua vida três líquidos passaram por sua garganta, água, pinga e cerveja. Comida era farofa, arroz, feijão carne assada, frango e batata. Seu organismo era básico, seu paladar básico, sua vida era básica. Arrumador de estoque de uma gráfica, seu único trabalho, por mais de 15 anos era empilhar resmas e mais resmas de papel de forma arrumada. Não precisava contar nada, controlar nada, falar com ninguém. Empilhar e empilhar... O grupo de amigos foi se afastando e a calçada retornou ao silêncio. Juvenal se levantou para ir ao banheiro. Passou pelo apertado corredor e no final um mísero espaço para urinar. Luz fraca, a naftalina pairava no ar. Tentava disfarçar o indisfarçável. Voltou lentamente olhando os ladrilhos surrados das paredes. Com esforço podia identificar um belo desenho de um pescador puxando a rede. Chegando na calçada, voltou para o seu banquinho e ouviu o barulho de um caminhão parando na porta da birosca.
Quarta cerveja. De cima do caminhão adaptado para levar turistas como num safári urbano, desceu um grupo de seis pessoas. Quatro homens e duas mulheres, todos muito brancos, altos e de cabelos muito claros. Juvenal olhava e pensava que merda estes gringos vem lá de longe para ver um monte de casas velhas, lixo na rua, pivete uma escadaria de ladrilhos com desenhos malucos. Será que gostam de cheiro de mijo, de ver gente suada e feia, de serem quase sempre assaltados por moleques de rua. Juvenal não entendia. Já estava sob o doce efeito da pinga que descia macia após um gole de cerveja. Estava entendendo menos ainda. O grupo foi em direção à ladeira e a calçada ficou novamente vazia, apenas Juvenal e uma das mulheres que resolveu ficar admirando a entrada da birosca. Ela olhou para Juvenal e abriu um sorriso. Dentes enormes e brancos. Boca enorme. A mulher tinha quase 1,80 de altura. Branca, muito branca, cabelos ruivos, peitos grandes e levemente caídos escondidos debaixo de uma mini-blusa branca, que deixava claramente transparecer os bicos bem pequenos e arrepiados. Saia estampada de flores na altura dos joelhos, pernas que pareciam com as de um flamingo, longas e finas. Juvenal não sentia a menor atração, tinha colocado o sexo de lado. Não tinha mulher, nem namorada. Achava nojento as prostitutas que as sobras de seu salário podiam pagar, mais nojento ainda, as mulheres que queriam ficar com ele em troca de uma noitada de pinga, cerveja e cigarro. Seu sexo era sua masturbação no banho, isso bastava. A grande ruiva se aproximou e em um péssimo português perguntou a Juvenal se ele sabia quando aquela birosca tinha sido construída. Em um movimento lento e certeiro apontou para uma placa de gesso quase no teto da entrada onde estava escrito 1921. A gringa olhou e fez um comentário incompreensível para Juvenal. Pouco importava o que ela falava, ele não estaria dando muito atenção nem se fosse em alto e claro português. Mais uma vez ela sorriu e foi ao encontro de seu grupo que já se encontrava no meio da ladeira. Juvenal se engasgou com o gole de pinga, tossiu, puxou um catarro e mandou, a uns três passos dele, uma bela cusparada, digno de um pinguço e totalmente compatível com aquela birosca. A cerveja fazia efeito na bexiga e novamente se levantou para o banheiro. Entrou e viu dois homens a espera do cubículo. Estava apertado. Voltou para fora e foi em direção à escadaria, passou por ela, uns quatro ou cinco passos, e tinha um muro muito mal iluminado pois uma grande amendoeira impedia que a fraca luz do poste iluminasse a calçada. O movimento era mínimo, já passava das dez horas da noite, segunda-feira, só os perdidos como Juvenal ainda estavam na rua. Foi um pouco mais distante, parou em frente ao muro, encostou a testa nele, como se isso fosse equilibrar melhor seu corpo, soltou o velho e roto cinto, abriu a calça e aliviou a torturante pressão que a bexiga fazia em sua barriga. Uns quarenta segundos depois, quando se preparava para fechar a calça, sentiu um vulto por trás dele. Não deu tempo de se virar, sentiu uma respiração na sua nuca, uma mão correndo pelos seu ombros e descendo os braços, ao mesmo tempo que um leve empurrão o pressionou contra o muro. A maldita pinga não permitia uma reação instantânea, tudo estava meio turvo, um torpor já tinha se espalhado pela cabeça. Sentiu um forte e doce perfume. As mãos que desciam agora pelos dois braços já atingiam sua calça, abrindo e colocando novamente para fora o seu pau. Tentou se virar mas o peso e a pressão que o mantinha colado ao muro não deixava. Era forte como um touro, mas naquele momento estava inerte, entregue a surpresa e ao inesperado. As macias mãos iniciaram um movimento frenético, firme porém delicado e ao mesmo tempo sentiu um sussurrar em seu ouvido, junto com beijos e pequenas lambidas na orelha e nuca. Sua resposta às carícias foi imediata, em poucos segundos já estava com o pau duro, pulsando e mais alguns segundos depois, sem o menor controle, o gozo já jorrava pela parede do velho muro. Não conseguia mais distinguir o que sentia, acabava de gozar e ainda sentia o alívio de ter aliviado a bexiga. A pinga, orgasmo, cerveja, urina, tudo vibrando dentro dele nuca louca mistura. Não raciocinava mas sentia a sensação de impunidade e liberdade. Será que morte era assim? Ser absolutamente impune com limitações de moral e regras. Mal terminava de arrumar essas idéias em sua cabeça, não sentiu mais o peso em suas costas, estava afastado do muro, membro já inerte, calça ainda aberta, voltou a sentir o peso do seu enfadonho corpo. Olhou para o lado da birosca e lá ia ela, a gringa ruiva com suas pernas de flamingo, mãos se esfregando na estampada saia, tirando os resquícios do seu gozo patético. O grupo já estava todo no pequeno caminhão, ela foi a última a subir. Foi o tempo dele fechar as calças, caminhar para a beira da calçada e o caminhão passou na rua lentamente. Sentada por último, na ponta do banco, a ruiva abriu o mesmo sorriso de antes. Juvenal não teve reação, apenas olhou-a sumir na curva. Voltou lentamente para a birosca.
Quinta cerveja. Juvenal sentou no velho banquinho e ainda incrédulo, sentia um alívio indescritível, alma, corpo e mente leves e soltas pela primeira vez em mais de 50 anos. De todas as coisas que rodeavam sua cabeça, não queria entender nada, só tinha uma certeza, morrer já não era um caminho óbvio. Despertou dentro dele a vontade de estar vivo. Que tal mais alguns anos...