Apócrifos
É como lhe digo. Á beira de uma estrada tudo é possível e a caminhada não tem rumo para quem vê com um olhar cheio desses longes das distâncias...
Eram três seres vacilantes e tão distintos entre si. O velho vagamundo era o mais sólido, apesar dos anos que lhe pesavam sobre os ombros. A mulher era uma destas visões que temos ao nos aproximarmos de uma cidade desconhecida ao entardecer.
E um jovem extremamente desconcertado em seu terno em desalinho, visto que a elegância e a distinção haviam ficado há cinco quilômetros...
E o telefone? Talvez não funcione para as vozes da aflição!
O andarilho quis ouvir a voz dos companheiros, pois seus dias eram fartura em caminhar descaminhando estrada e raro o ter companhia, mas por não saber como se faz a aproximação, então começou falando de si.
- Eu nasci há muito tempo, mas ainda me lembro que gritei de frio e nunca mais deixei de ter medo...
Como não ouve nenhuma reação a suas palavras, resolveu recomeçar com mais agudeza a sua narração:
- Eu nasci um bicho (caprichou na voz) um bicho espavorido e gritei com toda goela ao ver-me um pedaço de carne tremente, sendo amparado pelos braços do tempo. Estava ali esperando-me para cravar suas unhas na pele tenra e um cronômetro foi acionado... No princípio marcava pela construção do humano, hoje perto do final, pelo aniquilamento de um prófugo estarrecido...
Somente a mulher se sentiu estimulada, apesar da dúvida. “A quem, aquelas palavras estariam sendo dirigidas”?
- A juventude é como um menino exilado na infância. Todos temos um acorrentado junto aos ossos. No rigor ou simplicidade da navalha, trilhei muitos descaminhos. Foi onde aprendi a afiar argumentos para emergir na ribalta. Solidária com o público, sou mais que inquieta e vou abstraindo da língua, o que em mim é selvageria. Com gestos para contornar conflitos e tento não deixar vestígios de minha penúria?
Agora é ela a observa o efeito.
- Mulher! Pensas acalentar teus enganos com palavra-desatino e ainda direcionando-as aos ouvidos de um jovem aflito?
Nisso a voz do jovem chega para eles como se recém chegada de um outro tempo.
- A perda de robustez desconcerta, desata o herói o repertório trágico, sua prosódia não suporta a beleza. O que era fogoso rasteja abalado entre um pêndulo desajustado e inclina-se por uma paisagem mais dócil para a memória...
Os dois interrompem os passos para admirar tal prodígio.
- Em meus delírios me vejo mártir e tirano no mesmo espetáculo, mas para o gozo de uma platéia indiferente, sou apenas uma criatura cambaleando e estou aqui para ser fulminado pelos olhos concisos de um deus entediado, em uma hecatombe sem precedentes...
- Não compreendo, diz o velho para si mesmo e a mulher disposta a continuar aquilo que pensa ser um diálogo, acrescenta:
- Acaso não vê que ele fala por enigmas ou seriam estas frases, parábolas? É como se fosse um profeta a nos prevenir sobre a muita estrada que ainda temos que trilhar, para só depois merecer o tão desejado repouso para nossos ossos?
- Entre a distância que separa tantos desejos, estou habitando as sombras e vivo entre amuado e ressentido em uma inocência que escancara a dubiedade, pois sou Antígona e Creonte na mesma face, sonhando com um refúgio onde poderei ludibriar o medo.
- Crês que ele enlouqueceu ou foi nossa penúria uma visão providencial para seus olhos acostumados a visões mais dóceis?
E o jovem continuava, como se o mundo ao seu redor fosse um grande palco:
- O tempo é o que mais me dilacera! É sempre o tempo, esta fábrica de pó. De pressa, eu não posso mais... Não!... É a noite que cai ardendo como se sol fosse no meu pensamento, mas ainda preservo oculto sob o escudo um par de asas tecidas com o fio da agonia de uma águia em êxtase...
- Somos apenas desajustes do mundo, unidos em um único destino para macular com nossas mágoas a fluidez da única trilha possível. Quem fez os desejos não sabe sobre o desejar dos justos e o poeta aqui é todos e ninguém, disse o velho.
A mulher:
- Eu também tenho muita pressa em galopar o mais longe de mim. E com velocidade desmedida, mas antes tenho que fechar portas e janelas, por acaso não encharca o corpo do sonho uma chuva intransigente!
- E onde ficam estas janelas, então há os que acreditam em abrigo? Meu Deus! Colocaste-me neste caminho para assistir a uma mulher louca e um menino febril.
Ele está desconsolado porque teve que desistir de seu brinquedinho mais caro, ela que tanto amou, vê seus dias repletos de silêncio.
- Cale-se, diz ela indignada. Escute a voz dos que deixam suas pegadas a margem desta estrada ou pensa que só porque tens o mapa do mundo gravado na planta dos pés, é o único a ter direito a deixar palavras para o vento?
Pela primeira vez o jovem ergue os olhos e depois de fitá-los por um tempo, desiste de querer vê-los e continua com seu monólogo feito de frases sem sentido.
- Neste instante sou assombrado pelo fantasma de Sófocles e clamo, vem Ícaro para confirmar-me no vôo... Mas quem no mundo poderá parar esta ruminação... Há este espelho, onde me vejo exausto da minha multidão e de um de meus olhos, brota-me, como um dardo de luz, a visão de mim. Eu, tão só Narciso e todo esse desamparo...
Os dois acabaram decidindo por abandonar aquela aberração e ao se distanciarem perceberam que estavam unidos na mesma conclusão. Aquilo tudo foi apenas uma visão compartilhada, mas admitiram que ainda podiam escutá-la.
- É sempre o tempo, o tempo. Mísero, sou em minha fúria, um bastardo querendo redenção. Então sub-existo narrando como um possesso... As frases saltam acordando o terror em um conto, onde descrevo todo tipo de engano, somente para distrair os dias que me arrastam rumo ao silêncio...