A contagem regressiva final (The Final Countdown)

Nem bem começou o Pa-ra-ram-pam, pa-ra-ram-pam-pam e pensou-se que, de fato, faltava pouco para a derrocada. A Terra tremia, as pessoas tremiam e assim, não prestavam atenção a outras coisas. Aguardavam as trovoadas que a melodia anunciava. Trilha de fim do mundo. Homens apressados corriam para reunir seus descendentes. Calamitoso teatro de operações. Tudo pronto para a hecatombe.

Importava saber a que horas o Apocalipse iniciaria? Sim e não. Um dos humanos declarou que a recusa em se fixar o horário para o suspiro final estava anotada como uma das características desse momento. Ninguém entendeu, mas o homem foi conduzido para a dianteira da marcha que iria procurar abrigo no Museu de Ciências Naturais. A trombeta irá tocar tão logo Gnimstarev Androphantos, que agora é mais do que um mero artista declare ser sua a regência do espetáculo, disse o vigésimo quarto ancião do “Conselho para Assuntos Relativos ao Fim do Mundo e Afins”.

Gnimstarev Androphantos agora está a lixar o calcanhar direito no tanque de lavar roupas, em sua casa.Tenta esse último esforço para expurgar os anos de maldição jogados sobre si quando sapateou bêbado em cima de um rosário andaluz de contas de chumbo. Pensa ele que só após a limpeza dos membros responsáveis pela heresia, será aceito como condutor-mor da orquestra universal da eternidade. Mesmo sendo a maior virtuose que já se viu na música clássica, Gnimstarev Androphantos quer acabar a vida como sugerem as escrituras. Talvez um dia ainda aprenda a conduzir a batuta com a mão canhota. Por ora, quer tirar um cochilo antes de assumir o descontrole que o momento produz.

Plomonjutib Alkabani carrega consigo as duas tábuas que sobraram inteiras dos chiqueiros que ele mesmo incendiou quando ouviu que os porcos, mesmo amaldiçoados que são, ganhariam o status de nossos julgadores nesse fatídico dia. Não quis que seus suínos tomassem parte no tribunal celeste. Humildade dele, que, embora considerando indignos seus animais, orou por suas almas ao deus Pigponggodbig. As tábuas onde os suínos pisaram machucam-lhe as costas, mas nelas espera poder redigir as “36 Novas Leis de Conduta Geral e Solidária dos Humanos Pós-Apocalipse”. A última fotografia que tinha de sua mãe, Plomonjutib Alkabani atirou nas chamas no exato momento que elas engoliam a baia dos leitõezinhos. Seu pai, quando Plomonjutib Alkabani era ainda rapaz, ensinou-lhe algumas noções de Direito Universal para Calamidades Públicas. Plomonjutib Alkabani, para agradecê-lo, deu ao suíno mais viçoso de suas pocilgas o louvável nome de Merenjauí Alkabani. Mas nem a beleza do nome livrou o infeliz animal das labaredas impiedosas.

Sofia Reymares perdeu já as contas de quantas horas está a andar de joelhos no calçamento irregular. Está no osso aquilo que, até a hora do trágico anúncio, era suas pernas. As pedrinhas da rua grudam-se ao sangue dos tocos e Sofia Reymares considera-se privilegiada porque suas feridas a redimirão do pecado de um segundo casamento. Tomara que nos lugares excelsos para onde vamos, tenha missa aos domingos, pensa Sofia Reymares, enquanto descansa sob um sinamão. Após recuperar o fôlego para seguir rumo ao fim, Sofia Reymares se junta ao grupo de beatas que, para demonstrar desapego ao materialismo mundano, caminha para o Museu trajando apenas as vestes, por assim dizer, íntimas. A certa altura da estrada, Sofia Reymares, ao livrar-se de escrúpulos desnecessários para um momento de tamanha importância, livra-se também do hábito negro que trazia. Por respeito às leis canônicas, conserva, entretanto, o véu branco em seus também brancos cabelos.

Os cães, instruídos pelos donos sobre o que seria o momento último da existência, deixaram de lado instintos de cio e coletivamente, depois de prévia combinação, demarcam os postes com sua abençoada urina, desde o cemitério judaico até a ladeira que conduz ao Monte Rara Rara Rala. Ao ser o Sol ofuscado pela treva derradeira, as excreções caninas exalarão tal qual essência de baunilha mentolada. Assim nos fala o “Livro Orientador da Conduta Animalesca para os Derradeiros Dias”, nas suas páginas 31 e 97.

Aguardar. Estamos no local combinado. Gnimstarev Androphantos ostenta um letreiro em grego antigo onde se pode ler o seguinte: “eu, o mais fraco de todos, porém ultimo representante da classe, escalo-me voluntariamente para ser regente-mor da orquestra eterna e magnífica que formar-se-á nos torrões do eterno”. Antes que a multidão maravilhada comece a gritar “é ele, é ele”, Gnimstarev Androphantos declara em um aramaico arrastado: “faz bem quem lê, ouve e segue as palavras desta profecia”. E para finalizar seu nobre discurso, pronuncia em iídiche as seguintes palavras: “não está longe a hora. Eis o que temos de fazer. Sentar e esperar. Esperar que a intenção se faça ato concreto”.

Conforme o que disseram os sábios que vinham de Agra uma vez por ano, na intenção de nos instruir para a encenação última, depois que esperarmos, terá fim toda a cerveja vendida no mundo. O mesmo sucederá à vodka. Restará ao vinho e ao leite a tarefa de saciar as sedes. A pornografia se encerrará em definitivo. Não será mais necessária a perpetuação das espécies. Acaba-se também o horário de verão. Não há verão e nem relógios para onde vamos.

Procuro alguma tragédia em que tomar parte. Talvez uma manifestação estudantil. Não! Vou dirigir bêbado. Não! O air bag já salvou tantos incorrigíveis. Maldito saco de ar. Convenço-me de que é melhor imitar os outros. Aguardar. Antes, porém, darei utilidade a meus tampões de ouvido.

Gnimstarev Androphantos principia a função. Inicia-se a contagem:

No cinco. Lenina Menchú passa a rua. Esbarra na velhota. De all star desamarrado, segue firme. Cospe o chiclete na galeria pluvial do outro lado. Nem desconfio o que pensa. Ainda será anarquista?

No quatro. A Playboy em cima da cama, para mim é uma piada de mau gosto. Traz na capa uma moça que já faleceu, e tem Gorbachev como entrevistado. Paguei um real por ela na banca de um tio de meia idade. O desgraçado arrancou o pôster do meio antes de entregá-la. Babo no anúncio de lançamento do Fiat Prêmio CSL 1.6 modelo 1991.

No três. Amanhã é a final da Copa do Mundo. Japão e Coréia estão em guerra. Mesmo assim, param o conflito para que o maior espetáculo futebolístico do universo possa acontecer. Nakagawa Fujukama declara em cadeia televisiva mundial que o estádio onde irá acontecer o jogo será transformado em cemitério tão logo a partida acabe. Torço pela Argentina nessa Copa de 2002.

No dois. Corro nu pelo Parque Aquático Municipal. São pontualmente 7 da manhã e só um empresário local, arrogante e barrigudo me faz companhia. Dou duas voltas a mais que ele. Antes de voltar pra casa, devo pegar minha mala que está boiando no lago, junto a algumas sacolas. O segurança me atira uma bóia e da mala retiro minha muda de roupa.

No um. O senhor que consertava guarda-chuvas e que foi preso por colecionar revólveres antigos acaba de morrer. Vou a seu velório unicamente para provar o ensopado de raposa que a viúva preparou. Sinto-me honrado com o que o velhinho me deixará por herança: um óculos de grau em bom estado de conservação.

No zero. Certa manhã ouvi no rádio que o mundo estava para acabar. Que todos arrumassem o essencial de seus pertences e corressem para o Museu de Ciências Naturais. Lá, em meio a orações, esperariam a hora final. Em seguida, o locutor anunciou que também se dirigiria para lá, mandou o sonoplasta colocar uma última música e declarou: esta rádio encerra suas atividades terrenas por aqui. Iremos sentir falta dela, mas nossa concessão provavelmente irá continuar lá no outro mundo. Foi bom tê-los como ouvintes. Agora são 10 horas e 34 minutos, horário oficial desse país. Nos vemos no Museu.

A música que veio depois, eu conhecia dos tempos de adolescente. Em certo trecho pode-se ouvir o seguinte:

It’s the final countdown.

The final countdown

The final countdown…

Wilian Santana Jardim
Enviado por Wilian Santana Jardim em 02/02/2009
Reeditado em 04/02/2009
Código do texto: T1418937
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