Efeito Kuleshov 6
Sociedade Pós-Mundo
A chave gira no portão e uma mulher sai para trabalhar. Ela passa por uma padaria e cumprimenta o pessoal. Chega ao ponto de ônibus e encontra uma colega de trabalho.
- Que coisa rara te ver no ponto há essa hora, Christine. Ou fui eu que saí muito tarde de casa?
- Não, eu vou mais cedo mesmo. Estou precisando ganhar mais e resolvi entrar em um rodízio.
- E vai ter tempo para esses novos horários?
- Tempo agente arranja, Hanna.
O ônibus chega e as duas entram ainda conversando e já quase perto do trabalho, os assuntos não param de surgir.
- E não adianta eu falar, ele sempre faz a mesma coisa.
- Homem é assim mesmo, nunca presta atenção nesses detalhes.
Elas finalmente chegam ao trabalho. Hanna e sua amiga Christine entram em um bonito prédio, falando com todos na maior simpatia.
Depois de um longo dia verificando dados no computador, tomando café, analisando pastas de documentos, assistindo reuniões e debatendo novos planos e metas com o chefe, Hanna está de volta ao ponto de ônibus para voltar para casa. Dessa vez sozinha já que Christine fica até mais tarde no trabalho.
O transporte chega e Hanna parece conhecer o motorista.
- Diego! Quanto tempo!
- Você está linda, Hanna? Como vão as coisas?
- Na medida do possível. Fico feliz que tenha encontrado emprego.
- Não é um dos melhores, mas é honesto.
- Isso é muito importante.
Um dos passageiros parece não gostar daquilo. Ele pigarreia para chamar a atenção de Hanna e aponta para um aviso que diz “Fale ao motorista somente o indispensável”.
- Acho melhor eu me sentar. Depois nos falamos.
- Sem problema.
Depois de alguns minutos de viagem, o ônibus quebra no caminho e os passageiros começam a reclamar.
- A gente paga e ainda tem que passar por esse tipo de coisa!
- Isso é um absurdo!
- Como deixam essa máquina velha circular por aí?
Hanna levanta-se e vai até Diego.
- O que houve?
- Não sei. Acho que o motor morreu. Vou dar uma olhada.
Ele sai do ônibus e abre o compartimento do motor para verificar o ocorrido e Hanna o segue.
- Acho que o problema está no carburador. Não dá pra ver direito com tanta fumaça.
- Será que vai demorar muito?
- Isso aí depende se o problema foi muito grave. É melhor entrar. Não fique aqui na rua.
- E você? Vai ficar aqui fora?
- Vou chamar outro ônibus.
Diego pega apressado seu celular enquanto sua amiga volta para dentro do ônibus e senta-se de volta em seu lugar. Poucos minutos depois, o motorista também entra.
- Peço a calma de todos vocês, senhores passageiros. Eu chamei outro ônibus e assim que ele chegar vocês poderão passar para ele. Enquanto isso continuem aqui dentro.
Uma passageira grita lá de trás.
- Por que simplesmente não entramos no próximo ônibus que passar?
- Os ônibus há essa hora estão muito cheios por causa do pessoal que está saindo do trabalho. Esse aqui já tem muita gente e se entrássemos em outro assim ficaria um caos. É só terem paciência que tudo vai dar certo.
Diego olha para Hanna, envergonhado.
- Que azar, hein! Justo hoje que você pegou um ônibus comigo, ele enguiça.
- A culpa não foi sua. Essas coisas acontecem.
- Se eu soubesse de mecânica, já teríamos saído daqui e você já estaria em casa.
- Olhe pelo lado bom: terei mais tempo pra conversar com você. Talvez seja até por isso que o ônibus quebrou.
O encabulado motorista agora sorri animado.
- Você ainda não me disse como conseguiu o emprego de motorista.
- Lembra daquele amigo meu? O Reginaldo?
- Lembro, sim.
- Ele trabalhava como motorista e...
Hanna agora se encontra em um ônibus completamente abandonado e velho. Não há mais ninguém ali, porém ela continua agindo como se prestasse atenção em alguém falando.
Ao redor do ônibus não existe nada e ninguém além de coisas destruídas e um ambiente deserto e sombrio, mas Hanna continua conversando como se realmente estivesse falando com uma pessoa. Ela sorri enquanto fala e logo depois desce do ônibus, andando pela estrada deserta e passando por um muro pichado “será o fim dos tempos?”
***
O que acarretou no fim da humanidade não sabemos. E muito menos como Hanna sobreviveu, mas a vida que ela leva não passa de um conto de fadas.
Sua necessidade de conviver com semelhantes era tão grande que criou uma sociedade em sua mente e passou a viver em sua própria mentira, seu próprio mundo falso.
Hanna tem uma inimiga chamada “solidão” e arranjou um jeito doentio de combatê-la. Não podemos culpá-la. Sua sociedade pós-mundo, pós-Homem, pós-vida se tornou um... Efeito Kuleshov.