A Garota Feliz
Fez-se um lindo dia naquela manhã apesar das notícias ecoando feito fumaça pela cozinha, anunciando mortes, guerras, misérias e outras coisas mais depreciativas, fez-se um lindo dia naquela manhã, exclusivamente aquela manhã. Nem mesmo o tempo cozido em nuvens escapou de ser admirado. Aquela manhã era diferente de todas as que já haviam despertado. O lanche da manhã nunca foi tão delicioso quanto o daquela manhã, mesmo sendo apenas um copo de leite, diluído em água para render mais, e um pão adormecido, e mesmo ter sobrado nada depois de tê-lo dividido com os seus irmãos. Nada estragaria aquele dia. Fez-se uma linda manhã.
A garota sentou-se diante a um espelho, um pedaço de espelho, e penteou suas ressequidas palhas douradas. A falta de um batom vermelho, somente esta cor a faria sentir-se bela, não a impediu de furar a ponta de um de seus miúdos dedos carne-osso para extrair uma difícil gota de sangue para colorir os seus lábios, quase o mesmo tom de uma folha de papel de desenhar amassado, branquinhos e mortinhos. Limpou os seus pés para estarem dignamente apresentáveis para o encontro com o salto alto velho de sua avó, tão velho que mais parecia papelão sobre dois pedaços de galhos, e se sentiu mais forte, atraente, apesar de um de seus dedos estarem cumprimentando o solo pela rasgadura do lado esquerdo do papelão que tentava ser chamado de sapato, salto, tamanco, o que quer fosse menos papelão. Ela apenas largou um sorrisinho de canto de boca com a situação, porque Aquela Manhã! Aquela Manhã era diferente, era especial. A saia de jeans quase um trapo de enxugar chão de banheiro, rasgada, velha, parecia suja, mas ela havia lavado na noite anterior, “o que tem isso haver?” pensou ela, “as garotas da minha classe usam saias e calças rasgadas, e manchadas, e todos os garotos reparam nelas, porque comigo seria diferente? Estou bonita hoje, estou usando uma saia rasgada!” exclamou sussurrando para si mesma, e se sentiu contente com isso. Passou uma mistura de capim-cidreira com álcool de cozinha e pedacinhos de sabonete em seu pescoço, punhos e um pouquinho na sua tralha, o que ela chamava de roupa, chamava de “roupas de sair”, que somente em ocasiões especiais, onde deveria estar visivelmente apresentável, teria permissão para usar. Aquela Manhã era uma ocasião importante, seria o dia em que tudo que acontecesse mudaria a sua vida para sempre, mataria a solidão e a tristeza de seu coração de brinquedo para toda a sua vida, a Garota acreditava na realização de seus sonhos: uma vida de novela, onde depois de sofrer tanto, teria o seu príncipe sob a janela de seu quarto atirando pedrinhas e a chamando para fugir até Bem Longe, onde realizaria todos os seus desejos, ter uma casa grande, com bastante comida na geladeira, com um merecido café-da-manhã de uma mesa farta de frutas, pães de todos os sabores, mel, sucos de mistura de cores estranhas, queijo, mortadela e requeijão – que ela nunca teve a oportunidade de provar, mas sonhava toda vez em lambuzar um pão inteirinho daquele queijo, só sabia que era queijo porque um dia parou para analisar a palavra “requeijão”, cremoso, e a sua barriga uivava só de imaginar aquele potinho cheio chorando requeijão sobre um pão bem fresquinho e quente. “Ah” ela fazia. E sonhava mais, com o seu primeiro beijo, apaixonante, bem quente e caloroso, intenso e bem demorado que guardou apenas para o seu futuro príncipe-marido. E Naquela Manhã, ela tinha a certeza, havia encontrado o tal. Por isso Aquela Manhã era tão especial, tão bonita, tão cheia de vida e tão cheirosa que andar até escola não seria mais um dia de rotina, seria a caminhada para o encontro com o seu amor, driblando todas aquelas poças de água suja e tomando cuidado para não quebrar o galho do seu papelão nos barrancos hostis do morro. Caminhou muito, e caminhou mais ainda, e quando já estava cansada de caminhar, ela já enxergava a sua escola. E isto a animou para dá mais uma pernada até chegar lá, onde encontraria aquele Garoto, o justo merecedor de tanto capricho na maquiagem e na escolha de sua roupa, sendo franco, nem foi tão difícil assim, quase não tem roupa, oras.
A alegria incontrolável de estar apaixonada sem mesmo saber algo da vida era tão grande que o sorriso rasgava, dilacerava o seu rosto transparente, quase saltava de sua boca, menos ressecada pela maravilhosa idéia da gotinha de sangue. Passou pelo portão da entrada da sua escola como se entrasse num palco de um grande espetáculo onde seria a estreante da peça. Feliz, ela desejou bom dia a todos que encontrava pelo caminho, mesmo nem conhecendo e recebendo uma facada com o olhar como resposta, continuava a cantarolar: “bom dia!” “que lindo dia não?” “como vai?” “bom dia professor” “BOM DIA!”. E quanto mais ela se aproximava da sua sala, mais o nervosismo gritava dentro de si: “ele vai me achar linda, ele vai olhar pra mim, ele vai sentir o meu perfume que eu mesma fiz, porque hoje é um dia especial!”.
Como se diz mesmo? “O mundo caiu”... Como é isso? Sentir ser engolido por um abismo sem um fim que dê para enxergar? Sentir morrer? Mas como é morrer? Talvez a Garota saiba, ou soube, quando viu o seu Garoto beijando a Mocinha Popular sentada em seu colo, abraçados, rindo, felizes. Ela soube o que é ter o seu mundo caindo, sentiu ser engolida por um abismo sem um fim que desse para enxergar, teve aquele algo que ela sentiu na manhã que despertou escapando pelos seus olhinhos verdinhos. Mas ela não fugiu do local, apenas encorajou-se e andou desfilando pela sala, em direção a sua mesa de estudo, dando toda a volta possível com a intenção de passar pelo seu Garoto, e olhou para ele como se dissesse: “eu te amaria para sempre, eu te beijaria para sempre, eu seria somente sua para sempre, e você preferiu esta que será de todos até o fim do colegial”. E o casal largou uma gargalhada para a Garota: “o que é isso? Você bebeu e confundiu as suas roupas com o pano de chão do banheiro?” “e esses papelões? Você mesma quem fez?” “seus lábios estão sangrando sabia?”. Todos na sala riram, qualquer coisa que um garoto ou uma mocinha popular naquela escola dizia, era motivo de risadas, porque eles eram divertidos, descolados, palhaços, faziam coisas arriscadas que os outros não fariam. Bebiam, fumavam, eram os maiorais da turma. Ela não, apenas uma garota pobre e seca, que conseguiu estar em meio a tantos filhos de pais milionários porque ganhou uma bolsa de estudos por ter obtido a melhor nota na sua escola de gente de seu nível social, por ter sido considerada Garota Prodígio pelos professores da escola dos meninos filhos de pais milionários. Ela era nada comparada a eles, eles eram bem vestidos, bem arrumados, com dinheiro, cheios de brinquedos que precisam de pilhas para funcionar, com um quarto só seu, e outras milhares de coisas que ela não tinha e não era.
Andou, após do término da aula, pelo bairro inteiro, estava longe de casa, porque ela morava num morro e estudava numa escola de um bairro da alta-sociedade bem distante de lá, tanto quanto céu da terra. E naquele dia em especial, ou que foi especial, decidiu entender o que era vestir-se para ser bonita de verdade, andou e andou até perder a noção do horário, quando notou que já não tinha mais nenhuma loja aberta, em meio a um deserto de multidão de poeiras e brisas tristes, ela notou que estava só. E decidiu voltar para a sua casa, quando, inesperadamente, aconteceu o que ela jamais havia sonhado ou cogitado na sua cabecinha de menina superdotada, viu o seu Garoto rindo bem alto na pracinha bem de frente a ela, ele segurava um cigarro com os seus dedos e com os da outra mão uma garrafa de cerveja, rindo bem alto mesmo. De repente o olhar do Garoto atingiu os seus e assustou de uma forma que a deixou paralisada. Por um curto tempo os amigos do Garoto, que já haviam notado a presença da Garota, cochichavam em seus ouvidos, e quando pararam, o Garoto levantou um de seus braços e acenou como se a chamasse para juntar-se a eles. E ela, nem um pouco besta, ou totalmente lesada com o encanto pelo rapaz, o fez. Depois de um bom tempo, ela estava feliz, bebeu a cerveja da garrafa cuja boca estava no do Garoto de seus sonhos, fumou e tossiu o cigarro que foi tragado por ele também. Ela estava muito contente, pois havia beijado indiretamente o seu Amor, “mais um pouco e eu consigo encostar a minha boca na dele” imaginou. E com o tempo alegrou-se mais ainda, agora ela estava rindo bem alto, bem alto mesmo, com eles, o Garoto e seus amigos. Já todos quase sem consciência, partiram para uma brincadeira sem muita graça para ela, mas que para eles seria uma daquelas que jamais iriam se esquecer, e não iriam mesmo. Passavam as mãos na Garota, tocavam em suas partes e riam, sem vergonha, bem baixinho, e o Garoto também, ela não gostava daquilo, mas o seu amor estava a tocando, então, nem ligava para que os outros fizessem com ela. Mas a brincadeira tomou sua intensidade e foragiu do sossego, ela não podia controlá-los, ela já não tinha força por causa daqueles beijos indiretos no seu Garoto. E mais sucedia, até eles a deixarem completamente sem a sua tralha de limpar banheiro e quebrarem o galho do seu papelão que tanto teve cautela. Ela estava triste, perdida, nada ali era nítido e por coincidência nada do que ela esperava. E por desespero, sentindo uma dor horrível de parecer estar sendo cortada, mesmo que por cima de seu corpo o seu Amor estivesse fazendo uma feição de prazer, começou a se agitar, e ela gritou, gritou muito alto, até sentir sua garganta rasgar. E provando de uma estranha sensação do seu Garoto estar por dentro de si, ela abriu os seus olhos e viu um, dos garotos, levantar e simultaneamente derrubar com bastante força uma pedra no seu rosto transparente e seco. Quase não deu para tirar a certeza se era realmente uma pedra, só soube da melhor forma que era algo sólido e pesado, logo, uma pedra.
Os garotos se divertiram bastante naquela noite, a não ser por um detalhe que os assustavam, o preocupante corpo da Garota imóvel no chão daquele fundo da praça deserta. Eles, mesmo sendo populares, sabiam que assim que amanhecesse alguém encontraria a Garota imóvel e assim chamariam a polícia, e incrivelmente sabiam também que descobririam que foram eles que a abandonaram ali, porque eles deixaram vários pedacinhos de si dentro dela, fora dela, e na boca dela. Os garotos solucionaram o problema após avistarem uma garrafa de aguardente que sobrou mesmo depois de tanto beberem, e juntos, mesmo sendo populares, pensaram. E esvaziaram a garrafa sobre o corpo da Garota, ateando fogo na bebida com o isqueiro de um deles, e correram, correram muito medonhos, desesperados por escutarem a garota gritando depois de darem bebida com fogo a ela.
A garota vive feliz hoje, porque hoje, apesar do rádio noticiando as mesmas notícias de sempre, ela estava contente por saber dos seus irmãos, já adultos, vivendo bem cada um em sua casa. E ver a sua mesa farta de frutas posta sobre a mesa, junto com os sucos de cores estranhas e pães de vários tipos, e um desses em suas mãos encharcado de requeijão. E nem hoje o dia nublado e frio escapou de ser admirado por ela, que costumava sentar-se em uma das várias janelas da sua grande casa. Hoje é um dia especial, hoje é um dia de, mais uma vez, ficar bonita, caprichar na maquiagem para cobrir o seu rosto deformado pelas queimaduras, e vestir uma roupa bem cheia para cobrir todo o seu corpo deformado pelas queimaduras e ir buscar o Garoto dos seus sonhos na prisão, para perdoá-lo e cobrir todo o seu coração de brinquedo deformado pelas queimaduras. Esse dia foi o mais feliz de toda a sua vida.