UM PEQUENO DE LITTO

Adquiri um pequeno De Litto.

Leve como bruma, pendurei-o na parede esquerda, perto da estufa, acima da lareira.

Quando o vi, de relance, senti algo me chamando,

me empurrando para ele. Fui...

Pequeno, não dei tanta importância, de início.

Mas, algo esquisito, feminino, entorpeceu-me.

Atrás, escrita na tela inteira, uma pequena história

contava o porque de ter sido pintado com tanto realismo.

. . .

Uma mulher pequena, porém robusta, havia saido a passear

numa tarde chuvosa.

Sombrinha, bolsa, alguns trocados, resolveu andar um pouco

debaixo de chuva, uma alegria repentina, uma ruptura nos seus movimentos retílineos levou-a a caminhar sobre a amurada perto do rio, algo colorido se insinuava e procriava outras cenas em seus olhos.

Do terço, uma conta de felicidade.

Parou sem motivo, avistou um vulto bailando sobre o rio,

uma sombra de homem, cabelos compridos, roupa até os pés,

a tarde se acabava e com ela a claridade, o que será,

será que é...?!?

Sem tirar os olhos do vulto saltou para o chão, de costas

correu até a sua casa, revirou a arca que tinha na sala, perto da estufa, perto da lareira, dinheiro à beça, saiu,

de costas, correndo, não queria perder o vulto de vista,

na pequena loja de produtos náuticos, quase para fechar,

entrou, de costas, quase parando, parou, perguntou,

quanto custa um escafandro?

O vendedor-proprietário escarafunchou numa velha caderneta, é tanto, ela pagou, de costas, correndo, perto da amurada vestiu o aquilo que comprara, lá, o vulto boiava acima d'agua, ela, olhos dentro do visor, mergulhou, braçou umas tantas medidas e chegou perto da figura. Imensa. Enorme. Grande. Verde escura. Olhos semicerrados. De dar medo.

Um medo não assim igual ao medo de todo dia, um medo neuronial, seria Ele, o Ele tantas vezes falado e descrito

até na Bíblia?!?

Fez o Sinal do Pai de um jeito desengonçado, quando mais perto chegou deu com os pés n'alguma coisa sólida que sustentava a figura.

Mergulhou, acendeu a lanterna, esqueci, havia comprado também, fixou o facho, deu de cara com uma figura humana esculpida em mármore, lembrou-se da enciclopédia que havia comprado, achou que era o Atlas, aquele que carrega o mundo nas costas, esquisito, pensou...

Megulhou mais fundo e viu, n'outro corpo de mármore, uma imagem do que dizem ser Deus, barbudo, cabeludo, sem lâminas no Paraíso, pensou, parece que ainda respirava, quis dizer algo, só bolhas, mais fundo, num solavanco, os pés daquela figura que dizem ser Deus pisavam em duas figuras que pareciam mais vivas ainda, uma era, se não me engano, disse, Eva, a outra, se menos me engano mais, Adão, os dois seguravam o ar nos pulmões, quase estourando e meios esverdeados e olhos esbugalhados, meu Deus ou esse Deus, o que se passa?!?

Meio que impelida para baixo mais fundo foi, mais escuro de ver e mais dificil de entender, lá estava Lilith sustentando Eva, Caim e Abel sustentando Adão, uma serpente roía as unhas de todos os pés, uma maçã podre fedia um pouco, um anjo de isopor e feltro erguia uma espada e ameaçava a todos, um anjo esquisito, pensou, vermelho, raivoso, dentões pontudos, outros tantos anjos se posicionavam para dar combate, que festa, pensou, se o Éden é assim, que bagunça, mais fundo mergulhou e levou um susto que fez mudar toda a sua vida que não era bem uma vida, inteira, dessas que se lê em livros, viu-se em mármore viscoso, marrom, em certos lugares transparecia os ossos, lúdicos, jogos de uma combinação mortal, sombrinha pendurada no braço esquerdo, a pequena bolsa aberta, meu dinheiro, pensou, flutuava, e viu que nada embaixo tinha, só água e água e mais água, como pode ser isso, eu, sustentar tudo o que vi em cima como uma cornucópia prestes a se rachar, tão frágil e tão humana e de verdade, carne, excremento, varizes, enxaqueca todas as noites, olhos cansados de ver televisão, que peso enorme que sustento e nem sabia...

Avançou um tanto e outro tanto e tanto avançou que chegou bem perto de si, se abraçou, só um choro rápido, o ar acabava, começou a se puxar pela cintura, fez toda a força que pode e foi perdendo aquela força inicial, largou-se, a outra ela, a viscosa, abraçou-a, puxou-a para dentro de si, riu, daqueles risos que quase não se vê e que tem algo de ironia, foram se misturando e todos acima lançaram olhares furtivos, voltaram à posição inicial, o escafandro seguiu o curso da correnteza interna, a lanterna apagou-se, o fundo do mais fundo aquietou-se, apenas o rumor de passos perto da amurada deu-se à cena como que para fazer todos entenderem que mais e mais senhoras desavisadas e senhores desavisados viriam, até que a tarde imensa, enorme, grande, se apagasse, e o breu oculto que reside no mais fundo revelasse a contínua expansão do pequeno quadro que

De Litto pintara.

Preto Moreno