Sou fogo

Estou nú em meu quarto. Encontro-me numa posição incômoda na cama, não sento, não deito, fumo um cigarro. Estou morrendo! Dou-me conta disso sem saber o porquê. Figurativa e literalmente perco minha vida aos poucos nesse instante. É como um processo, uma metamorfose sem mudanças. Sou um imago. Um mero estágio entre plena vida e morte plena. Transitório. De forma real e palpável morro. Cada segundo passado é um segundo gasto, morto. A todo momento meu corpo se esvai. Milhares de células são sentenciadas. É implacável. Não há outro caminho, a única possibilidade é se aproximar do fim cada vez mais. De forma lenta ou rapidamente todos os destinos convergem. Não é triste e nem assustador, é a natureza...

Morro porque quero morrer, porque me permito. Deixo cair, secar e apodrecer todas essas folhas. Já não servem de nada, estão como parasitas que impedem o funcionamento do organismo. Estão no chão, em queda, decompostas. Essa é a segunda morte, a psicológica. Aquela que ocorre com menos frequência e que poucos tem o privilégio de experimentar. Poucos porque é reduzido o número dos que ousam e dos que se conhecem e sabem o que precisam. Esses são escassos e os que escolhem morrer podem viver duas vezes.

Morrer é uma escolha! Não a morte biológica, a outra. Escolhe-se morrer quando é necessário, quando a opção de continuar vivendo é demasiado cruel e desumana. Mas morre-se apenas com um propósito: vida. A vida é impossível sem essa morte, sem o renascimento. Morro. Mas sou um pássaro mitológico, sou feito de cinza e fogo e vida e morte.

Sinto a ausência, o vazio (temporários). Dão lugar a uma nova presença, uma plenitude renovada, uma sensação de preenchimento. Morro somente para viver, porque essa vida já não presta. Ela pecisa acabar para que tenha início outra. Essa vida é como uma concha que ficou muito apertada para o molusco e este precisa fazer a muda, precisa continuar pois não há outra alternativa. Trata-se de instinto, de sobrevivência.

As cinzas se formam entre os dedos e a pequena chama é invisível a mim. Refletem-me: cinza e fogo. Agora sou cinza, já fui fogo e serei outra vez incandescente. Sou brasa, sinto o calor emanando, expurgando todos os tóxicos, exorcizando os demônios, do interior para fora. Matando. Dando vida. Agindo simplesmente. Sinto-me despertando, apesar de não ter dormido. Não dormi? Não fechei os olhos mas estava adormecido, estava num estado inativo, passivo. Agora acordo, abro os olhos pela primeira vez em muito tempo e vejo vida. Sinto calor entre meus dedos e é a chama, ela me desperta. Sou fogo, sou fonte de luz e chama. Tenho o corpo aquecido de excitação e fatigado pela catarse. Sou vivo e sou morto. O que morre em mim não é meu mais, não reconheço, foi consumido e deu lugar a outra coisa. Algo não descoberto, não explorado, novo!

Arremesso a guimba na chão e observo a pequena chama. Ela dança, comunica-se, cresce. Brinca com os trapos e mostra-se para mim. Reconheço-me. Sou fogo. E preencho o quarto, faço-me presente em cada parede, em cada móvel. Consumo o que se encontra e mato. E morro. E concedo vida. Ilumino com calor e aqueço com luz. Sou fogo.