Insolitude
É um jeito quente e úmido de manter-me dentro do seio dos acontecimentos. Às vezes estou chorando doce água profunda de ser sentido até quase a beirada da realidade. É quando muita coisa anoitece por entre os escombros, se lentamente observar o tudo que está fora. Caminhar, portanto, seguindo o rumo diáfano da voz longínqua que clama talvez por piedade severa de mim, ou talvez por simples clamor de ácido que fere vez por outra os ouvidos, mas caminhar para algum lugar quiçá povoado, ou mesmo ermo, ou mesmo inexistente. São vozes altas que me chamam por completo, que exigem de mim o que eu entendo, erroneamente ou acertadamente, sempre, de aproximação casual, de proximidade fortuita. Eu respiro com um nó no peito e vou. E vou. E lentamente meu coração altera o ritmo dos batimentos, leve taquicardia animada pelo inevitável.
Também, diga-se, nunca chego ao berço íntimo dos escombros, e era tão necessário. Não nitidamente óbvio o berço do mal e tão necessário. Minha aproximação resulta-se sempre inútil e enfadonha, porção de angústia equívoca e lamuriosa. O grande berço (talvez nem seja grande, mesmo pequeno ou mesmo mínimo e esdrúxulo), talvez seja uma caixa rústica com um anjo dentro - esguio de olhos azuis com harpa também docemente apoiada na destra, cabelos louros, enrolados, túnica branca e pés descalços, a usufruir da consistência alva das nuvens, num balé clássico plúmbeo de sinfonia. É um anjo comum, desses dos afrescos renascentistas. Nesse instante, pois, tenho leve sobressalto dos sentidos tácteis e da visão pardacenta que se amontoa névoa diante dos meus olhos bastante castanhos e com a pupila dilatadíssima de – de suspiro submisso. Sou monstro terrível. Caixa rústica inopinadamente apoiada em nuvem leve, é o espanto grave. Erro grosseiro da natureza, olhando mais pausadamente. Entretanto, não é possível pensar abstratamente em incongruências possíveis. Estou de barba por fazer e de cabelo crescido, sim, sim.
Há muito que tenho, a meu ver, a poesia entre as mãos e os dedos muitos e grossos e com nódoas esquisitas. E a palavra adiantada que perspira por querer sair do seu invólucro ancestral e embrionário todo românico: tudo entre as mãos delicadamente fechadas. O anjo de dentro da caixa parece me olhar muito placidamente e muito complacente de vida. Anjos são poetas superiores, sinto isso. Talvez um querer se transforma em necessidade. Quero uma embriaguez, então. Um lapso. Um cômico retrato das constelações que outrora, quando criança, vi. E com certeza, agora, enfim, inicia-se meu delírio de amor.
Porque caminhar cansou, já não sinto as pernas muito bem. Preciso imediatamente me afastar do anjo para poder chorar sozinho e secretamente, verter sangue puro dos olhos, inundar minha blusa branca com o vermelho puro e escarlate da dor. Preciso fazer silêncios gigantes, provocar soluços, vômitos e inflamações – tudo muito cru de rancor, acrimônia fugaz desta minha matéria orgânica. Mas se torna insuportável. Melhor fosse mesmo um sonho de leveza insustentável, não a árdua missão de corroer a matéria aérea do céu, eu que sou tão pobre de religiões e nefasto de vida. Porque tudo mesmo é sensação esparsa. É preciso continuar, e tomar cuidado cauteloso com os espinhos no chão, porquanto me encontro de pés nus. Estou deixando para trás uma saudade incurável. Estou com o coração pulsando último em de repente encontrar vida doce e água muito gostosa de beber – nos amargos em que me encontro o único consolo é a miséria estúpida dos meus andrajos nojentos. As linhas desenhadas no chão remetem-me à infância de perdidos anos, tão criança crescida que já não enxerga mais o essencial dos mistérios. E vou indo, vou indo.