Ele perdeu o dom
Ele perdeu o dom
Desde pequeno que coisas mirabolantes envolviam e mergulhavam nos seus sonhos, paisagens, pessoas, nomes, mundos que ele desconhecia de todo, mas que lhe apareciam insistentemente. O que vale é que quase todos ao acordar nos esquecemos dos sonhos, só guardando pequenos espasmos de memórias, tal como se guardam memórias antigas: sabemos que elas existem, mas não as podemos descrever ou evocar por estarem tão distantes no tempo, no espaço ou apenas bem dentro de nós. Muito bem, os sonhos eram essa mistura de uma apoteose visual e duma parafernália de sons (sim, os dele tinham sons…Muito bem, o tipo não era normal…mas conhecem alguém que não tenha algum tipo de sonhos mais…destravados…? A única diferença é que todos os sonhos dele eram assim…).O verdadeiro problema surgiu, anos mais tarde, em plena faculdade, na tarde em que ele se lembrou de tudo…Na noite anterior tinha andado na má vida (ou boa vida, consoante o lado com que é visto). Teria sido dos copos? Não, ele tinha bebido o mesmo (imenso!) do de sempre. Pôs-se a pensar e…teria sido de alguma coisa que fumou? Bem, ele por hábito não tinha o de fumar qualquer outra coisa que não fosse uma dose cavalar de tabaco, e essa noite não tinha sido excepção…Bem, Havia que se dedicar aos estudos pois até tinha uma prova para o dia seguinte, e ele devia ir às aulas obrigatórias para ver se passava à cadeira. Mas tudo aquilo que tinha sonhado não havia maneira de o deixar…Calado não disse nada, mas a namorada apercebeu-se do olhar turvo e furtivo em que ele tinha mergulhado…Perguntou-lhe o que se passava, mas nada. Apesar de extrovertido, ele era das tais pessoas que conseguia fechar a sua interioridade com cadeados tão fortes que ninguém conseguia lá chegar a menos que ele desse a chave ou dissesse onde a poderiam encontrar. Como se sentia algo envergonhado, colocou mais uns cadeados à porta e ficou calado, dando uma desculpa qualquer para o seu mutismo. Na noite que se seguiu tentou estudar, mas nada…O sonho perseguia-o insistentemente…Até que após várias horas a branco, decidiu colocar tudo no papel. Duas horas depois e 5 páginas (ele era lento…) tinha a coisa palpável. Para vos dar um exemplo, este sonho era uma mistura curiosa e lógica entre a pouca verosimilhança tecnológica de uma “Star Wars”, e a crueza visionária de Blad Runner; nesse sonho as personagens lutavam por serem livres duma tirania enorme, e lutavam tanto que violavam quase todas as leis éticas e morais que a humanidade se revestiu para se proteger de si própria, algo passado numa língua que ele nunca tinha ouvido mas que entendia perfeitamente como se fosse a sua. O que o espantou mais no sonho foi a natureza real das personagens, que sentiam tal como é apenas possível sonhar num poema, imagens e sons que exigiam serem transpostas para o papel. Aliviado, lá voltou a sua lendária capacidade de estudar de véspera. Pensando ter sido um acaso, deixou os escritos na secretária e nunca mais pensou no assunto. O pior foi quando acordou: novo sonho altamente descritivo, de novo a permanência dele. Que raio! À merda a frequência e vai dai escrever de novo. Para afogar as mágoas de um chumbo dedicou o resto do dia e da noite à suprema e lendária arte de beber para esquecer, ignorando, ou querendo ignorar que as suas mágoas há muito que tinha aprendido a viver à tona da bebida. E foi assim que ele perdeu um ano escolar, arranjou um enorme sarilho com os pais e perdeu a namorada farta dos seus silêncios, da sua incapacidade em partilhar um segredo que tanto o atormentava…Ora ele vivia numa República (residência de estudantes) e privacidade era coisa que ele não tinha, sendo por isso que os seus escritos, os seus sonhos, mal guardados numa estante em breve circulavam livremente (mas fora do seu olhar) por toda a República, e por arrasto em certas tertúlias literárias. Os sonhos eram basicamente histórias de ficção científica; como este meio está saturado, de início ninguém prestou muita atenção à coisa a não ser pela curiosidade de vir dum tipo que nunca tinha escrito nada…Mas em breve…Foi abordado por um senhor na casa dos quarenta que se identificou como sendo duma editora; maravilhado disse-lhe que a sua escrita era invulgarmente genuína e que queria publicar o seu material. Entre o espanto e o cheiro de dinheiro fresco (os pais tinham-lhe cortado parte da mesada…) ele concordou, e senhor dum raro espírito dourado, assegurou-lhe que até poderia fazer de tal uma forma de vida, dado ter imenso material todos os dias (ele era alguém que de facto sonhava imenso…). E foi assim que de mediano e nada promissor advogado se tornou num escritor entretanto de sucesso dado a sua escrita ter conquistado a critica e ele se ter dedicado mais à ortografia (fraquinha) e à sua deficiente gramática. No entanto…Quanto mais se dedicava à escrita, mais se afastava do mundo, da realidade. Os seus sonhos cada vez mais intrincados, mais originais, mais humanos, a transbordar de humanidade e complexos exigiram dele uma entrega total, obsessiva, compulsiva, e ele afastou-se do mundo, não parando de escrever, de tentar melhorar, pois só assim se sentia aliviado ao dar vazão ao que tinha na cabeça. A família, os amigos, os conhecidos, todos passaram a ser estranhos no cenário da sua vida; os namoros que duravam anos, passaram a durar semanas pois ele perdera a capacidade do sedentarismo emocional. Como isto do meio das artes é dado a diferentes perspectivas, este afastamento até lhe ficou bem, e ficou a fazer parte da sua imagem... Ciente deste afastamento, triste pelo facto, mas incapaz de o contrariar, fechou-se sobre si próprio e pensou que o resto da sua vida estava definido, sendo que o pior era a sua incapacidade para escrever sobre tal, pois a única marca na escrita do que sentia era a tristeza que o perseguia tão intensamente como os sonhos.
O que espantava mais o público além da imaginação, era a enorme capacidade daquele homem distante transmitir tão bem o sentido. Como era possível um quase eremita transmitir tão bem os sentimentos, que todos sabiam inventados, mas que pareciam tão reais?
Se a sua escrita parecia real, é porque de facto era real dentro de si, pois o sonhado nada seria sem esses sentires reprimidos bem no seu interior, essa velha tensão entre o que sentimos e o que queremos colocar em prática. Era a sua arte, o segredo do sucesso, sua glória, sua maldita prisão.
Até ao dia em que tudo mudou.
Deu consigo a acordar sem sonhos, sem a voracidade para os descrever, deu consigo sem nada, mas ao mesmo tempo deu consigo a pensar nas coisas simples da vida. Ainda baralhado escreveu sobre o assunto, e animado foi ter com o editor dum jornal onde publicava alguns dos textos antes de os reunir em livro. Perante a sua estupefacção, o homem disse-lhe que o mercado estava a abarrotar daquilo e que por isso não era publicável, mesmo vindo de quem vinha. Obstinado, deixou passar alguns meses (sem sonhos, claro, que estes tinham desaparecido tão depressa como tinham surgido), reuniu as novas histórias em livro e tentou a publicação, tendo como resultado uma negativa, com o mesmo argumento do dado pelo jornal.
Deixou de perceber nada de nada…Tirando a ficção científica os sentires estavam lá todos, a intensidade era a mesma, mas passada nos tempos reais e não imaginários, e vinham-lhe então dizer que esses sentimentos de nada serviam no mundo editorial, que o público não queria a realidade pura e crua?
Foi como regressar ao mundo velho, mundo novo. Retomou os estudos, pagos pelos direitos do autor das suas obras, abriu as janelas da alma fechada e voltou a respirar.
Continuou a escrever, mas desta vez aprendera a lição e nunca mais voltaria a mostrar, ou a deixar que alguém o visse. Se dantes era obrigado a escrever, fazia-o agora pelo simples e belo prazer incondicional da escrita em si. Reaprendera a capacidade de socializar, de amar e a arte de a colocar em prática, reaprendera a arte da felicidade.
Era pois a altura de voltar ao mundo do qual o dom o tinha protegido, afastado, era a altura de voltar finalmente à vida, porque
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