Aquele homem teve o passado que desejava, o presente casual e um futuro incógnito

E se pudessemos alterar permanentemente o passado ao sabor da nossa vontade, dos nossos sonhos, o que aconteceria?

A coisa acontecera-lhe a meio da idade adulta, naquela altura em que recordamos os erros do passado como obstáculo a um futuro mais do nosso grado, e foi quando realmente se começou a preocupar com a acumulação desses erros que tudo aconteceu: deu consigo seriamente a imaginar no rol de oportunidades perdidas, e como tudo seria se, à luz do que sabia actualmente, como tudo seria se pudesse voltar atrás e refazer tudo de novo: E se assim pensou, assim misteriosamente aconteceu, num caso aparentemente insignificante que começou a alterar tudo o resto, alterou a sua vida para sempre - por mero acaso pensou numa amiga de liceu que, na inocência da sua idade não reparou na relevância desta gostar dele, e por isso não lhe deu a devida atenção, pelo que ela se fartou de esperar por ele e acabou por namorar com outro colega, namoro particularmente feliz a prolongar-se até a um casamento feliz. Anos mais tarde soube ser ela uma pessoa extraordinária, criatura rara, pérola de inestimável valor que não soube colher. E foi assim que anos e companheiras de efémera ligação depois ele se tentou colocar no lugar do marido, imaginou que tinha correspondido aos bilhetes dos bancos da escola que julgara ser uma mera brincadeira. Foi então que tudo aconteceu pois, na manhã seguinte, ao invés de acordar numa cama vazia, despertou com ela a seu lado e a cabeça preenchida por um passado e presentes comuns particularmente felizes. Em suma imaginou que de facto tinha começado a namorar com ela, e esse pensamento ganhou o corpo da realidade.

Pensando tratar-se tudo dum sonho, duma estranha coincidência e perfeitamente confuso, decidiu tirar tudo a limpo com um novo pensamento: e se tivesse seguido a sua vocação, tirando o curso do seu agrado no lugar daquele imposto pela família e amigos? E assim se passou depois de mais uma noite, pois na manhã seguinte despertou com outra profissão, outras memórias, mais uma vez...E foi então que de facto tudo se alterou, pois isto da vida é como uma corrente onde a alteração dum elo implica a alteração dos seguintes, pois de repente deu consigo a ter novos conhecimentos, novos amigos, enfim uma nova vida a qual não poderia jurar ser substancialmente melhor, pois era tão diferente da sua anterior...

E o pior (ou o melhor, consoante o ponto de vista de que fosse observado) foi ele se ter consciencializado das potencialidades desse “dom” e, qual déspota cego, ter decidido alterar todo e qualquer pormenor do passado que não gostava, ou que achava caprichosamente dever ser “limado”. Embriagado pelas imensas perspectivas, viciou-se completamente nelas, sendo que a partir dessa altura já nada era igual, pois as mudanças foram tantas que não podemos já falar duma linha temporal no sentido convencional, e depois, depois a ciência do tempo é das mais perigosas que existem, pois nada é tão linear como aparentemente julgamos, pois mudanças menores em acontecimentos desagradáveis implicavam a alteração de outros que o tempo veio mostrar serem benéficos, pelo que em breve ele alterara demais, e para além do seu agrado quase toda a sua vida, numa torrente de mudanças cujo fim desejava mas que já não poderia controlar.

Assim, ao abrir a caixa de Pandora os acontecimentos tomaram conta de si, pois viu o seu casamento perfeito desaparecido, bem como os filhos amigos e profissão, para dar lugar a outros, sendo o pior é que ele se lembrava de tudo, de todos os presentes que criara a uma velocidade vertiginosa e que desfizera ainda mais depressa, querendo alterar tudo, querendo que tudo voltasse à altura antes da descoberta do “dom”, para poder voltar a recomeçar todo de novo (baseado nos conhecimentos entretanto adquiridos...), mas já não sabia como recomeçar, perdera-se completamente na linha temporal.

Perfeitamente desvairado ainda consultou um psiquiatra que fingiu acreditar nele (pelo menos ele assim o pensou...) mas que após alguns meses lhe deu alta, recomendando-o que não pensasse demasiado no assunto, que aproveitasse melhor o presente em vez de andar insimesmado com o passado...!

Desiludido colocou tudo no papel e publicou um livro (após as dezenas de negativas habituais nestas ocasiões e mais ainda pela estranheza do relato) na esperança de encontrar outras pessoas iguais que o pudessem ajudar. Foi um estrondoso sucesso da crítica e público, sendo aplaudido como uma nova forma de ficção, a renovar os horizontes do género...

Perfeitamente perdido, acabou por decidir-se a ficar quietinho e conformado com a fama e o dinheiro, abstendo-se de contar a qualquer pessoa que, mais do que um relato ficcional aquilo era a mais pura das realidades. No entanto, e após alguns meses nesta estabilidade fartou-se de entrevistas onde a pergunta “como conseguiu imaginar isto tudo” se repetia até à exaustão para sua grande frustração, deixando-se cair na tentação de numa noite imaginar como seria se não tivesse escrito o livro...

Aquele homem teve o passado que desejava, o presente casual e um futuro incógnito

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