A Era dos Macacos
1
Pergunto a Barbara se esta serve. Ela me olha de soslaio e diz:
– Johnathan, qual é a cor de nossas paredes?
Eu suspiro e digo:
– Mostre-lhe as outras. Mostre todas as outras.
Barbara está num programa de reabilitação de traumas armados e num encontro de ansiedade traumatica. Ela toma três comprimidos diferentes por dia; Mas ela tem tomado superdosagens.
Eu estou me masturbando porque Barbara agora tem trauma de sexo, e ela grita:
– Câmeras, precisamos de câmeras!
Eu continuo batendo bronha relaxado, e ela continua:
– Venha cá, temos que pensar em câmeras.
Sem conseguir gozar, subo minhas cuecas e vou até o quarto olhar aquela mulher que costumava adorar ser currada por mim, e nós até acreditavámos ser felizes, com nossas roupas caras e várias talheres de mesa, vinhos importados e taças. Pilates. Televisores de cristal líquido que cobrem partes de uma parede. Quadros de leilões. Artesanato de tribos naturais da África. Mosaícos de antigas tribos egipícias. Prozac.
O Que?
– Câmeras, eu li que existem câmeras tão pequenas que ninguém sabe que estamos com ela.
Voyeurismo vai te fazer feliz? Eu digo ainda um pouco retardado pelo sono da manhã.
– Não, câmeras de segurança.
No outro dia sou arrastado por Barbara, acordado por seus lábios de colágeno e seu bronzeado artifícial, fazendo o que era pra ser um beijo, da boca que era pra ser de minha mulher.
Café na cama. Ela trás café na cama.
Sinto que ela está tentando, mas das formas erradas. Ela quer se reconstruir, mas não internamente. Ela compra peitos novos e apliques de cabelo. Lipoaspirações. Carro novo: New Beetle. Cirurgia para quebrar o nariz, modelá-lo e deixá-lo empinado. Um ármario novo recheado de roupas, talvez mais roupas que um cidade do Zimbabue possuí dentre sua população inteira. E agora: Câmeras. Câmeras de Segurança.
É a ultima moda, ela me diz.
Foi há uns quatro meses. Um homem com meia-calça enfiada na cabeça com um revólver apontado para nós.
O Dinheiro. Pode levar o dinheiro, eu digo, mas ele diz que quer currar aquela branquela. Barbara. Minha mulher.
Não preciso contar o resto, foi assim que Barbara se tornou dependente e membro de associações de dependentes. E agora aspirante a estudante de segurança doméstica.
– Essa é a mais recente – diz o vendedor já de saco cheio. Ele conviveu com Barbara por meia hora. Eu vivo há oito anos.
Ela olha o catálogo, e seus olhos parecem olhar para o além. Pensando se irá combinar com nossas paredes.
– Vou querer doze dessas. – diz ela.
Eu passo meu cartão e Barbara fica alegre (porque não sou mágico para conseguir deixar alguém feliz). Por hoje.
Alguns dias depois chego em minha casa, e vejo homens estranhos de macacão, e caixas e mais caixas de papelão, todas empilhadas num canto da garagem.
Desafrouxo a gravata e entro pela porta da cozinha. Sento e acendo um cigarro procurando por um momento de paz.
Barbara vem com outro homem de macacão, perguntando se prefere de caju ou de maracujá.
– Oi, querido – diz ela enxendo o copo do terceiro homem. Ouço os dois sairem e minha mulher dizendo que ela quer as câmeras não fiquem muito evidentes, e que fiquem num ângulo que irá combinar com a cor pastel-árabe-acrílico de nossas paredes.
Nosso bairro sempre foi seguro, e nossas vidas rastejavam alegres até o homem da meia calça. Barbara fez 52 exâmes de HIV. Não fora contaminada, mas marcou o quinqüagésimo terceiro exâme para semana que vem. Toda vez que ela pega um resfriado jura que vai pegar pneumônia e irá morrer. Minhas palavras não funcionam mais, já cansei de tentar consolar. Já cansei de ter uma esposa e ter que currar mulheres idiotas no trabalho. Me masturbar na suíte de casal.
Quando vou à sala vejo que há monitores sendo montados e plugados. Nas telas vejo o jardim. Meu jardim. Outra no meu banheiro, na sala, na sala de jantar, fundos, cozinha. Porra, até no banheiro, Barbara?
– Amor, você sabe o que penso sobre palavrões. – exclama ela e me esquece por completo. Plugue a décima nas escadas!
2
– Cercas elétricas.
Ouço enquanto estou cagando. Puxo papel para me limpar e ouço:
– Cercas elétricas!
Olho para o teto, jogo o papel fora e subo a cueca.
– Johnathan, venha cá! – diz ela como se a droga da loja abrisse às 6:37 da manhã.
De saco cheio coloco um cartão em cima da cama. Sobre os lençois espanhois que ela vive comprando em feiras que encontra por aí. Eu digo:
– Você sabe a senha.
– Você não vai comigo? – pergunta ela preocupada; depois de se tornar ansiosa, Barbara não sai mais sozinha. Não visita mais as amigas, o que conseqüentemente acabou com seus círculos sociais, restando apenas eu, e sua mãe, entubada num hospital no centro, que ela tenta visitar quando eu a acompanho. E seu peixe de aquário. Davi.
Alguém precisa trabalhar.
Alguém precisa pagar a conta dessa droga de cartão.
Barbara me olha como seu eu tivesse acabado de bater nela. Conto: um, dois, três, e ela começa a chorar. Eu me aproximo e abraço ela.
– Eu vou. Eu vou. – eu digo tentando acalmá-la.
As mulheres sempre me dominaram com o choro. Nunca consegui suportar, é igual arranhar pratos com um garfo. Primeiro minha irmã com seu namorado valentão. Depois minha mãe e suas enrrascadas com agiotas. E agora, Barbara.
Queria me lembrar da época em que ela era minha esposa. Antes de se tornar a mistura ambulante de minha mãe e minha irmã. Minha esposa Frankeinstein.
Estou olhando pela do meu cúbiculo, vendo vaginas de algodão nas nuvens do lado de fora. Não sou compulsivo por sexo, é mais como uma caça. Me faz sentir bem ter uma coelha, me divertir, e não ter que me preocupar com onde vai o corpo depois da caça. Não é machismo, as mulheres também gostam de sexo sem precisar casar com o babaca. É preciso entender que sexo é hobbie. Casamento é profissão, e nesse quesito eu sou um péssimo e infeliz profissional.
A mastubação é como um tiro ao alvo. Nunca há um corpo de animal caindo. É ilusão. É como colecionar citações de outros e achar que está fazendo algo novo.
Meu patrão chega enquanto procuro uma vagina que começa a ir para o leste.
– Johnathan! – diz ele com sua voz de operador da bolsa. – Precisamos conversar.
Debaixo da minha mesa empurro Suzana com as pernas, tirando a boca dela do meu pau. Me aproximo da mesa, cruzo meus braços sobre ela. Minhas calças estão nos meus pés, minha cueca também.
Eu tenho um espasmo, quase gozando, mas Suzana pára de me masturbar a tempo, quando ouve a voz de Mario vir da porta.
– Cla... – sussuro, engulo em seco. – Claro. Desculpe, tive uma tontura. Sente-se Mario – dou um sorriso amarelo fingido.
Sinto Suzana remover as mãos do meu pau, e novamente eu engasgo, mas Mario está se sentando e não percebe.
Genofobia é medo de sexo, o que minha esposa desenvolveu e Suzana não tem. Mas ela tem medo de perder o emprego. Não sei se está nas clausúlas do contrato de asmissão o item “Pagar Boquete”, como justa causa para demissão, mas sei que Suzana não está afim de descobrir.
– O que foi, Mario?
– Precisamos falar sobre números.
Números. Destesto essas indirestas das empresas, ou escusas polidas para evitar ser direto.
Nunca diga talvez se a resposta é não.
A dúvida e a expectativa dói mais que o não.
– Recebemos ordens da Diretoria – diz Mario, sem conseguir me encarar diretamente nos olhos.
– Para quê, Mario?
– Bem... Sei que somos amigos há anos, mas você precisa entender, são ordens lá de cima. Não pude fazer nada...
Porque não manda trazer as caixas de uma vez Mario?, eu digo, atôno. Mas não é de surpresa, a crise está feia mesmo, é porque Suzana passa as mãos em minhas coxas e eu gozo.
3
Volto com meu carro, com caixas cheias de canetas e papeis. Papeis que eu nem sei para que servem, ou o porque estavam enfiados em minhas gavetas. E uma luminaria. Jogo tudo no lixo. Mas guardo a luminaria. Gosto daquela velha luminaria.
Quando a ficha caí, é como quando caí em um cassino. O êxtase, o medo, a empolgação, mesmo sabendo que vai perder todas as suas moedas, sempre ficamos esperançosos.
Medo do fracasso é atiquifobia, é uma fobia que todos nós temos, mas nem sempre percebemos. Por toda a nossa vida lutamos para ganhar, nunca para vencer, somente com um imenso medo do fracasso. Perder dói. Medo de sentir dor é algifobia, mas não é disso que estou falando.
Fico pensando na cara de Barbara. Barbara não tem cachorros, nem mesmo um poodle. Seu companheiro era o cartão. Meu cartão.
Para alguns seres humanos, perder o crédito é equivalente ao castramento. Para outros é ainda pior. Barbara faz parte desse segundo grupo.
Quando entro em casa, vejo ela animada após meses, atrás de uma prancheta de desenho, rabiscando novos muros. Muros com cercas elétricas.
Coloco a luminaria de lado, numa mesa perto da prancheta, e tento de falar sobre meu emprego.
Barbara... Barbara, tento eu, mas nada saí. Sua empolgação não me deixa dizer nada.
– Olá, Johnathan – diz ela, sem mover os olhos, presos no desenho que ela está fazendo maravilhosamente.
Barbara já foi uma arquiteta bem sucedida. Não precisava de mim para nada até o aborto. O choque de perder o bebê. Seu primeiro trauma. Tento dizer que não foi culpa dela, mas minhas palavras não trazem calma ou paz a ela.
Quando abortou pela segunda vez, o feto do estuprador, não conseguiu mais se manter no emprego. Na verdade, mal conseguia ficar em casa, controlando sua ansiedade comprando, procurando o que comprar, onde comprar. E até hoje eu podia dar essa vida a ela.
Eu decido que vou aproveitar para agradar Barbara, porém dessa vez sou eu que estou tentando ajudar da forma errada.
Decido que vou agradá-la até meu limite estourar.
Ela me pergunta porque estou mais cedo em casa, o que houve. Seus olhos estão aturdidos. Nunca chego cedo em casa.
Nada, só queria te levar para sair.
E eu a levo ao lugar onde ela se senti mais feliz: No Centro Comercial.
Às vezes eu imagino que esse é o parque de diversões dos adultos. Um parque onde perdemos todos os nossos instintos naturais de sobrevivência, e trocamos ele por outro falso e inventado. Pela vontade de suprir o buraco negro que parece sugar nossas tripas para dentro de nós mesmos.
Quantas vezes não trouxe Barbara para tomar sorvete e comprar brinquedos: pérolas, prata de bali, vestidos, camisetas, camisetes, blusinhas, sapatods, e caixas e mais caixas que ela mal conseguia segurar dentro daquelas enormes sacolas de papel.
Hoje eu tento levar ela ao cinema, mas ela parece encantada com sapatos, mesmo tendo cerca de trinta e cinco pares em casa. Saltos altos, finos, plataforma, agulha, abertos, fechados, de cores variadas. Alguns de cada, eu pago tudo. Por enquanto não me importo com o que irá acontecer.
Tento levar Barbara a uma loja de livros, ela entra como se estivesse em outro planeta, mostro alguns títulos como o “Admirável Mundo Novo”, mas ela não parece segurar um tesouro como eu seguro. Ela decidi que não quer nada daqui.
Agora numa loja de musica, tento mostrar algumas bandas diferentes, mostro um álbum do Pixies, outro do Alabama Hey, outro do Devassa. Ela ouve alguns segundos cada e me olha torto.
Eu digo que sua mente está muito fechada.
Barbara diz: – Seus ouvidos estão surdos desse barulho, querido – pausa. – Vamos ver aquela coleção de primavera?
4
Finjo que vou trabalhar.
Vou a um lugar reservado,
Eu deposito 1mg na colher.
Meu esqueiro, procuro meu esqueiro. Seguro o cabo da colher entre os dentes. Acendo o esqueiro com a mão livre, com a outra mão manuseio a colher, e a coloco sobre as chamas.
Novamente coloco a colher entre os dentes, e seguro o tubo da seringa entre as pernas. Procuro a agulha sobre a pia. Ela cai do lado da privada, e eu me esforço para pegá-la. Meus braços estalam. Meus dedos percorrem o chão, e pego a agulha entre meu indicador e o médio. Então encaixo a agulha na seringa.
Estou apertando meu punho, fazendo veias saltarem. O garrote impede a circulação, e logo uma apêndice roxa salta.
Beth Gibbons com sua voz chorosa diz que ninguém a ama da forma como eu a amo. Ela canta esse trecho enquanto eu sugo o líquido que se formou para dentro da seringa. Bato nas veias saltadas com meus dedos.
A agulha penetra a carne.
Minha doce e amada venda.
Não tenho dúvidas, nem problemas. Nem emprego (bom, esse não tenho mais mesmo). Nem vida. Nas próximas horas estarei fora do gancho. Desconectado. Se tiver chance sonharei acordado. Mas já não funciona tão bem quanto antes.
Nunca se sonha o mesmo sonho duas vezes.
Meus olhos vêem um campo verde, que brilha como esmeraldas ao sol, onde veados e alces correm, passáros livres de suas gaiolas. Um mar se estende, plácido, como a placenta do mundo, e o vento sussura a voz de Beth Gibbons. Vejo tudo na parede do meu banheiro. É assim que o mundo parece. Pelas próximas horas. Tudo parecerá brilhante, belo e simples. A vida sem mistérios. Nas próximas horas.
5
Já sentiu como se estivesse dentro de um aquário? Frio, aguado, lento, aquoso, derretendo-se a cada minuto, A vida de algumas pessoas se limita a ser o peixinho dourado de alguém. Comendo o quanto lhe estipulam, e rodando em circulos achando que está vislumbrando o mundo todo. Confrantando sua alga plástica como se fosse o maior mistério do universo. Sua imagem na redoma de vidro. Somos reis dentro de nossos aquários.
Algumas pessoas derrubam nosso aquário no chão.
Depois disso, ficamos nos debatendo no chão, indefesos, nos afogando pelo resto de nossas vidas.
Eu nunca fui muito esperto.
Então, Barbara me pôs em seu aquário.
6
Quando o crédito acaba, eu conto a Barbara a verdade. Nossa vida de luxo finda aqui.
Digo que se ela quiser o mesmo padrão de vida terpa que voltar a trabalhar.
Quando um animal sai de seu estado de natureza, trazê-lo de volta se torna uma tarefa realmente árdua. O condicionamento social transforma macacos em robôs, fazendo e refazendo as mesmas coisas todos os dias, da mesma forma que foi realizada no dia anterior. Macacos que se esqueceram como subir em árvores e aprenderam a comprar bananas em pratileiras. Macacos que precisam de outros macacos. Mas macacos solitários.
– O que? – diz Barbara; Seus olhos esboçam um olhar de medo e incredulidade.
Não vou desenhar, penso eu. As pessoas tentaram ensinar aos macacos como voltar a caçar bananas com as próprias mãos, mas macacos não são bons ouvintes. Então robotizaram os macacos. Com corações de lata. Frios.
– Como isso aconteceu?
Cortes na empresa, digo. Crise econômica.
Não estou conseguindo falar direito, estou chapado ainda. Quando fico alto penso em mais coisas que consigo falar.
– Mas você não era...
Era. Sim. Não sou mais.
– Mario disse que não é nada pessoal. – digo.
– Ah! Aquele filho da puta! – diz ela com genuína fúria e ódio vazando de seus olhos, vertendo lágrimas.
As pessoas hoje em dia só se chocam com duas coisas: Notícias da mídia e falta de dinheiro.
As melhores pencas sempre são as que vemos na caixa cintilante, com homenzinhos de gravata.
– Vamos precisar de cortes – digo eu. – Você vai ter que voltar a trabalhar. Não sei por quanto tempo vai durar nossas reservas.
Barbara cai de joelhos e chora, chora dizendo palavras ininteligiveis. Ora maldizendo Mario, ora eu.
– Vamos ter que devolver as câmeras e cancelar as cercas elétricas.
– Ahn? – ela me olha, completamente alterada, como se o mundo estivesse em chamas. A ficha cai, como se eu estivesse dizendo que iríamos desligas os tubos do leito de sua mãe. – Mas como?... O que?
– Não podemos pagar por elas. Nenhuma sequer.
Ela fica atônita, nada mais diz além de: – Vou... Acho que vou... Dormir um pouco.
7
Ligo para Luis Garras, velho amigo meu.
Certos amigos são como bumerangues: por mais longe que estejam, sempre voltam depois de um tempo.
– Garras! – digo eu. – Quanto tempo, meu amigo!
Garras aperta minha mão e dá as duas costumeiras palmadas em meu ombro. Ele está chegando nos quarenta, mas sua aparência é de quase cinqüenta. Garras passou por muitos maus bocados. O crack envelheceu ele.
– Parecia urgente sua ligação. – diz ele, tirando um cigarro do maço e acendendo. Estamos em um café 24 horas.
Eu olho ele e tanta coisa me vem à mente. A faculdade, as drogas, as festas.
– Desculpa, Luis, é que não tinha mais ninguém. – me viro para a garçonete e peço café. – Café? – Garras diz que sim, e peço mais um à garçonete.
Espero o café chegar. Estamos sentados naqueles bancos acolchoados, um de frente para o outro. Há saleiro e açucareiros nas mesas. Mas o lugar está quase vazio, há somente alguns junkies cheirando do outro lado. Nesse bairro isso é comum. Mais comum que você imagina. Eles estão falando de Sex Pistols.
– É sobre meu emprego – eu digo, olhando para minha xícara de café, depositando açucar nela, e mexendo com a colher.
Garras me oferece um cigarro. Eu digo que parei. Que semana passada foi o ultimo. Mas em menos de um minuto estou tragando um. Ele toma bastante café em um só gole.
– O que houve? Sua mulher descobriu sobre Suzana?
Eu dou risada. Não, não, eu digo. Algo pior.
Ele faz uma careta rindo. Garras nunca levou a vida a sério realmente. Para ele trabalho é coisa para quem não tem coisa melhor pra fazer além de puxar o saco esperando por um salário maior.
– Mario...
– Como vai Mario? Ainda comendo a garota do xeróx?
Garlhamos junto. Linda, do xeróx é a garota mais estranha que nós já vimos na vida.
– Vai bem, engordou pra caralho. Quase teve um enfarto esses tempos. Mas vai bem. – eu digo, tragando. – Foi coisa da Diretoria.
– Ah, a crise? – acerta ele logo de primeira. – Eu também fui demitido, estou fumando esse cigarro com a grana do meu seguro desemprego.
Seguro desemprego é a melhor saída para drogados. Enchem mais o saco quanto possível, aí o patrão prefere demitir por justa causa que manter o cara na empresa. Garras sempre ia chapado quando trabalhávamos num escritório de contabilidade.
– É. Acertou.
– E Barbara, como reagiu?
– Como se eu tivesse amputado o clitóris dela.
Garras ri, lembramos das nossas piadas de humor negro da época da adolescência. Ao tornar a ver ele lembramos de nossas vidas. Da idiotice que era, até a merda que virou agora.
Os macacos tem a memória curta, é necessário outros macacos para fazê-los lembrarem que eles jogaram sua vida no lixo. Porque em geral o outro macaco fez o mesmo.
– Mulheres como a sua se masturbam com o cartão de crédito cara, sempre disse que aquela louca iria te dar trabalho.
Eu ri. Porque é Garras.
Sabe, as palavras podem ser exatamente as mesmas, mas tudo depende de quem ouve, e de quem fala. A piada de Garras poderia ser o maior insulto vindo de outra pessoa. Mas vindo de um amigo essas coisas são sempre piadas.
A vida é a maior das piadas, dizia sempre ele. Se você não conseguir fazer piada da sua própria condição então é na certa alguém incapaz de perceber sua própria imbecilidade.
– Não tenho certeza, mas não duvido.
– Mais café – pede Garras.
– Você se lembra daqueles tempos? – eu pergunto.
– Porra, mas é claro! Foi do caralho aquela época. Pena que depois fomos obrigados a tomarmos conta do nosso próprio rabo.
– Voltaria no tempo se pudesse viver aquilo tudo de novo?
– Só se fosse pra nunca me casar com aquela vaca!
Ambos parecemos dois chapados.
Luis olha para os dois lados, e me diz:
– Quer saber, vamos cancelar os cafés? Quero te mostrar um lugar. Tá afim?
Eu afim? Minha vida está um lixo, o que eu poderia perder?
– Claro – eu digo. – Vamos embora daqui.
Entro no velho carro de Garras, que ronca como um dragão devia roncar se tivesse apnéia. Acusticofobia é medo de ruídos altos, é o que eu sinto ao ouvir aquele carburador, como se estivesse pronto a explodir a qualquer minuto. Mas o que morrer significava agora? Menos que nada. Eu não tenho traumatofobia. Esse carro poderia colidir-se contra um caminhão, e mesmo assim, acho que não reagiria.
– Não é muito longe – informa Garras. – Sei que vai gostar.
– Prévia?
– Só quando chegar lá – diz, e dá os dois tapinhas em meu ombro.
Algumas pessoas trocam as fobias por compulsões. Alguns tem medo de morrer, outros de sofrer dor. Mas algumas pessoas, como Garras, tem vontade disso. A todo o momento. Mas ele não é um suícida, ao menos não convencional. Ele diz que se você não se matar, a vida te matará por você. Você só escolhe quem vai ceifar. Ele diz que se matar é mostrar o dedo médio para Deus.
– E a Barbara, superou aquele trauma bizarro?
– Genofobia? – perguntou eu.
– Essa merda mesmo.
– Não, não. Andei comendo a Suzana da Contabilidade. Mas ela é sei lá... Magrela demais.
– Eu estava trepando com a Aline das Relações Publicas. Mas é muito fria sabe. Essa porra de cristianismo está deixando as mulheres muito frigidas. Nunca trepei tão bem quando com a Daiane, secretária do Wellington. Uma atéia, não vê pecado em nada, quase me mata.
– Eu nunca peguei uma. – digo, um tanto triste. Barbara é religiosa demais. Nunca saimos do papai-e-mamãe.
O carro de Garras desembrenhou por uma ruela quase menor que a dimensão do carro. Seguia pulando, atropelando latas de lixo cheias de comida podre, e só ouviamos os gatos ariscos a miarem nos tetos.
Depois essa rua foi se abrindo, no que parecia um condominio fechado. Fumamos mais alguns cigarros, e logo Garras parou num canto, onde haviam mais alguns outros veículos estacionados.
– É aqui.
– Sombrio – digo para ele, olhando para o lugar de cima a baixo. Parece um velho casarão, um cortiço divido em várias partes. Escuro, quase sem iluminação.
Fechamos a porta, e chegamos parto do portão, onde há um cara fumando maconha. Dá pra saber pelo cheiro. Difere da nicotina.
Garras olha pra mim seriamente. Depois olha para todos os lados como um paranóico.
– Olha, o que você ver aqui, não pode contar pra ninguém! É tipo, um segredo tá?
– Tudo bem – digo eu sem nem mesmo pensar, atordoado pela curiosidade.
Ele diz qualquer merda para o cara no portão e ele abre as portas.
Quando entramos ele diz:
– Você não tem nome aqui cara, aqui você não é ninguém.
Eu não sou ninguém ultimamente mesmo, penso eu. Queria me lembrar da ultima vez que fui alguém.
Nós entramos.
8
Do lado de dentro, nada mais que uma casa velha.
Mas numa sala ao lado há luzes tremulantes, parecem velas acesas.
Garras me leva até lá.
Um homem velho nu e gordo segura uma arma, ele está de frente a outro cara nu. Ele segura a arma com força contra a tempora do cara. E esse está impassível. Como se estivesse drogado. O que provavelmente estava.
– Você sabe o que quer? – indaga o velho ao cara mais novo.
– Não. – e o velho lhe desce uma coronhada na orelha fazendo a orelha do cara sangrar.
– O que você quer?
– Não sei! – diz o cara ainda impassível.
Outra coronhada na tempora. O cara cai para o lado, mas logo volta à sua posição de joelhos.
– Então é melhor começar a pensar. – diz o velho e lhe dá um tapa na cara. – Porque ninguém vai pensar por você seu merda. O mundo não vai jogar uma porra de idéia na sua cabeça. Comece a pensar.
– Sim. Vou pensar.
– Saia daqui!
Quando o cara nu desaparece, o velho se vira para nós.
– Garras, meu caro.
– William. – diz Garras cordeal.
Não sei que merda se segue ali, mas parece um ritual satânico daqueles filmes B dos anos 80. Eu olho tudo com espanto e deslumbre.
– Quer participar? – pergunta Garras pra mim.
– Isso é tipo um jogo? Ou algo assim?
– Sim – diz o velho William. – É um jogo sobre sua vida. Dispa-se.
Sem ver muita saída em minha vida, obedeço, arranco tudo de meu corpo, e fico somente eu e meu espirito ali naquele quarto obscuro, com um velho nu e meu melhor amigo me olhando. Meu corpo marcado de estrias, cabelos grisalhos, barriga murcha. O que sobrou de mim? Meu corpo não é mais o mesmo. Mas meu corpo não importa, meu espírito está ferido. Qualquer coisa me parece racional naquela hora.
O velho coloca a arma em minha testa e diz:
– Você sabe o que quer?
– Voltar a viver – eu digo.
O velho gargalha.
– Porque?
– Queria poder viver tudo de novo.
– Para repetir os mesmo erros e se tornar isso que você é agora. Você tem vergonha de você mesmo não tem?
– Sim – eu digo, sincero.
– O que faz pensar que você pode voltar a viver, se você destruiu a sua vida. Você não tem escolha nem chance. Tudo daqui em diante só vai piorar, nada vai melhorar pra você.
– Mas...
– O que você quer?
Eu já disse seu idiota, penso eu.
– Quero voltar...
E a coronhada parece um martelo contra minha orelha, sinto o sangue quente descendo contra meu rosto.
– O que você mais ama na sua vida?
– Eu amo... – paro para pensar, e percebo que não amei verdadeiramente nada em minha vida. Nem minha família. Nem nada do que eu fiz, percebi meu coração cheio de ódio.
– Feche o círculo – ordena William para Garras. E ele trás as velas para perto de nós. Logo estou suando. Sinto o calor das chamas queimarem lentamente meu corpo. Sinto a dor.
– Porque você vive?
– Porque... Tenho medo de morrer.
– Porque tem medo de morrer? – sua pergunta vem como uma onda vertiginosa junto com o calor.
Porque um macaco robotizado quer viver? Para procurar pencas melhores. Talvez.
– Qual o sentido da sua vida?
– Não tem sentido.
E ele começa a perguntar cada vez mais rápido, e o calor é como um interrogatório no inferno.
– Porque você está aqui.
– Não sei.
Coronhada no meu nariz, sangue escorre por ambas narinas.
– Porque veio até aqui se tem uma vida te esperando?
– Não sei!
Tapas na minha caras, bofetadas dos dois lados.
– É vitima da crise?
– Sou.
– Quer se vingar?
– Não! – digo eu. – Não foi culpa deles.
– Você acha que eles se importam com você? Acha mesmo que eles te cortaram por falta de dinheiro ou porque as pessoas querem o seu lugar?
– Eu acho... Não...
Tapas e mais tapas. Coronhada na minha nuca.
Minha cabeça dói como se eu tivesse tomado uma ressaca. Eu transpiro por todos os orifícios de meu corpo.
– Se pudesse, viveria tudo de novo? Sabendo que sua vida iria se tornar de qualquer forma igual está agora?
– Mas eu faria diferente se tivesse outra chance.
– A vida de todos acaba assim. Não há futuro.
– Mas... Mas...
– Olhe pra mim... Eu era um sociologo rico. Olhe para mim droga! – diz ele me dando tapas, porque tento olhar para outro lado. No tórax ele tem marcas de cirurgia. – Meu coração não funciona mais. Irei morrer dentro de dois meses. Não importa como, você irá morrer. Todos vamos. Mas eu não quero esperar.
Agora entendo o porque Garras dizia que se matar era mostrar o dedo médio para Deus.
O velho enfia a mão nas cicatrizes recentes, e arranca carne dele mesmo, enfiando profundamente, mostrando o seu mais verdadeiro interior.
Tudo acaba aqui. Ele me diz.
Nada está para começar.
Tudo acaba aqui.
É tudo questão de tempo.
Eu saio correndo de lá. Totalmente atordoado. As palavras dele ressoam em minha cabeça. Eu corro. Corro até não poder mais. Volto para minha casa.
9
Certa vez Nietzsche disse: “Quanta verdade pode um homem suportar?”
Eu não sei. Mas sei que eu não pude suportar muita.
Mas para ser sincero, eu já estava de saco cheio.
Eu deixei todo o dinheiro que restou ao lado da cama de Barbara, e a minha apólice de seguro de 300 mil reais. Espero que isso a faça feliz.
Um presente de seu peixinho dourado.
Mas no fundo, acho que não importa o quanto façamos, nunca é demais.
Coloco a arma em minha tempora.
Sou um macaco engaiolado por um sistema que eu não entendo.
Mas não importa.
Me preparo.
Eu quero sair da minha gaiola, e apanhar bananas com minhas próprias mãos.
Aperto o gatilho.