O Fim do Cavalo Sarrafo

O cavalo Sarrafo, um garanhão malandrão, era o mais popular entre os cavalos da vila. Ele era um cara pretão e usava laquê em seu putatopetão. Não tirava seus óculos escuros e sua jaqueta de couro de cobra que arrancou nos dentes da serpente Serpentina, sua inimiga. Mas que agora, virou sua vestimenta. Sarrafo era, ou melhor, é um cara xucro, e vive dando coices. Um cara mau, muito mau. E leva um jeitão de intelectual, mas é que ele não entende direito as coisas que lhe são ditas...

- Hey Sarrafo! Como andas?

- Bom...Eu não sabia que era considerado como rei - diz orgulhoso- Mas ando com as patas seu tolo! Não vê? Como mais poderia andar, infeliz? - diz com um ar de superioridade e desprezo.

- Não, não Sarrafo. Digo... Como vai?

- Como vai? Como vou pra onde? Vou galopando oras. Estúpido!

- Deixe pra lá... Até mais Sarrafo!

- Até mais, Sarrafo? Até mais quantos? Quantos Sarrafos?

Nisto, o cavalo Chico Ferradura vai dando as costas.

- Onde pensa que vai seu Ferradura? Explique. Quantos Sarrafos virão?

- Virão para onde?

- Pra luta... Para uma corrida... Não sei, é tu quem sabes. Tu quem disse:Até mais Farrapos. Quer dizer que muitos cavalões como eu, Sarrafo, virão, não é isso?!

Como já foi escrito lá em cima, Sarrafo é um cara mau, muito mau e xucro, adora uma briga... não importa se é com o cavalo mais franzino ou com o mais fortão, que era ele mesmo, não havia mais belo e forte como ele em toda a região. Já sabendo da fama de Sarrafo, Chico Ferradura decide de uma vez por todas:

- Muitos virão. Muitos, Sarrafo!

- Todos chamam-se Sarrafo também?

- Não... Escutas direito - diz já quase nervoso.

- O quê? Ta me chamando de burro? Que não compreendo o que falas? É isso? - diz levantando a pata traseira, pronto para dar um coice.

- Não quis dizer isso meu Sarrafão!

- Meu Sarrafão? Quer dizer que tu vais ser meu dono, meu empresário nessa justa com todos os Sarrafos que virão?

- De que está falando Sarrafo?

- Tu não disse que sou seu?

- Foi um modo de dizer, meu caro!

- Caro? Eu sou caro? Não sabia disto!

- Não, não. Tu não es caro, foi outro modo de dizer apenas.

- Si, si. Então dono meu, quando virão todos os Sarrafos para a grande luta, ou para a grande corrida?

Já entediado com a conversa, Chico Ferradura decide entrar na de Sarrafo.

- Então! Os 40 Sarrafo virão no domingo. Eles estão dispostos a tirar sua vida.

- Tirar minha vida? Mas como ousam tirar a vida de um rei?

- Rei? Quem é rei, Sarrafo?

- Eu! E olha que eu nem sabia que era rei. Fiquei sabendo hoje.

- E quem lhe disse tal coisa?

- Você! Não lembra? Já chegou me chamando de rei.

- Disse é? Se eu disse, é por que é.

- Então fala para todos os Sarrafo que eu estou disposto a uma luta limpa e justa. E afinal, o que vai ser? Uma partidinha de pôquer, concurso de a mais bela crina, melhores dentes, uma corrida, um jogo de xadrez ...truco? O que vai ser?

- Eu não sei Sarrafo, eu não sei.

- Então, vá e pergunte aos Sarrafo, qual será nossa justa?

Lá está nosso cavalão Sarrafo. Galopeando pelo Brejo da Cruz. Um brejo tão famoso, que até um cara ai, um tal de Chico Buarque fez uma musica sobre. No caminho, encontra a potranca Ursula, que lhe diz aflita:

- Ai, ai, ai, Sarrafo! O Chico ferradura corre risco de vida!

- E daí?

- Ele corre risco de vida!

- Que bom! Quer dizer que tem riscos de viver! Não se preocupe, ele vai morrer algum dia - diz consolando-a.

- Não!

- Não o que?

- Está morrendo, Sarrafo!

- O que? Morrendo?

- Sim! Está tão mal, tão acabado. Acho que não dura nem até domingo!

Farrapo pensa: Eu?! Morrendo! Mas como, quando, onde...?! Estou tão bem, tão sadio, tão forte. Por que ela diz que estou mal, acabado... e que não duro nem até domingo...

- É, é isso Sarrafo!

- Mas...tem certeza?

- Absoluta, Sarrafo. Vai morrer!

- OH dios mío! Mas por que yo? Yo no quiero more, soy tao joven.

- Se eu fosse você, iria dar um ultimo adeus ao Chico Ferradura!

- Sim, é verdade! Ele pensa que estarei aqui no domingo para a grande justa, tenho que avisa-lo que não estarei mais aqui.

- É, faz isso Sarrafo.

Sarrafo vai a cocheira de Chico Ferradura, e este lhe diz:

- Chico... já sabes o que vai acontecer? - diz seco.

- Sim, eu já sei Sarrafo!

- Eu sinto muitíssimo!

- Ora! Não há com o que se preocupar.

- Mas domingo era o dia da grande luta contra os 40 Sarrafos. E não dará mais... eu sinto muito!

- O que...

- Diga para os 40 Sarrafos que não dará mais! Domingo nunca chegará!

E sai, Sarrafo. Sempre com seu grande porte, deseja apenas alguns capins para comer.

No meio dos capins, Sarrafo encontra a Dona Borboleta, e esta lhe diz:

- Sarrafo! Tudo bem?

- Não Dona Borboleta, eu estou para morrer!

- O que? Em plena segunda-feira!? Mas você está tão bem, tão forte...

- Eu também acho, mas...

- Não, não, não. Deve ser um engano!

- Eu também acho!

- Não se engane, tu não morrerás.

Sarrafo acreditou em Dona Borboleta, pois essa era muito sábia.

Então, convencido de que não haveria de morrer, pois estava muito sadio, chegou-se perto da cocheira da fofoqueira Carmensita, onde haviam umas iguarias de capins raros. Ouvindo a conversa das comadres, Carmensita e Vera, fofocam sobre a doença de um humano. Mas Sarrafo chega no meio da conversa.

- Nossa! Quando começa a ficar com manchas vermelhas pelo corpo, é quando a doença está tão avançada, que só lhe durarão uns 5 dias de vida.

- Nossa, comadre!

- É. Coitado dele!

- Quando começar a vermelhar a pele, a morte esta próxima.

Ouvindo isso, Sarrafo se distrai e come uma erva venenosa (mas esta apenas mata os humanos, não os animais, nos cavalos pode apenas ocasionar alguns enxatemas) . E sem perceber, volta aos capins.

A caminho da praça, Sarrafo encontra um laguinho, onde neste, vai saciar sua sede. O laguinho estava tão tranqüilo, que Sarrafo olhava para sua imagem refletida e pensava: Não há cavalo mais belo. Nunca haverá. Eu sou demais, realmente demais. Lindo. Absolutamente lindo... - Como pode-se ler, Sarrafo deveria chamar-se Narciso... Ele se ama.

Bebe a água. Esta se acalma, voltando a refletir sua imagem. Quando de repente:

- Hiahiahiahia. (caro leitor,este deve se entender como o relincho desesperador de Sarrafo). Meu rosto, meu lindo rosto está manchado. E o que são essas bolinhas vermelhas em mim? Oh, my god! I cant believe! Oh, my face, my little face. So beautiful, so amazing...

Carlos Bebedeira, um cavalão velho, que adora uma pinga, (ele mesmo a fabrica em um alambique no fundo de sua cocheira, mas não espalhem, ele não paga imposto. Os porcos são capaz de denuncia-lo),

vem chegando e ouve os lamentos de Sarrafo.

- Oh cabra! Que isso, chorando? Cavalo que é cavalo macho não chora!

- Carlos, mi amigo! Estoy a espera de la muerte!

- Olha aqui cabra! Já estou cansado dessa sua frescura de ficar falando em outras línguas! Fale na minha, peste!

- Si, si... estou morrendo Carlão! Não vê meu corpo? Todo vermelho! São os sinais da morte!

- Mas, chorar por isso?

- Mas não vê? Vou morrer! Meu corpo vai ser enterrado e comido. Não, comigo não!

- Pode ser queimado, tostado, assado, frito, ensopado, virar churrasco, ou um bife a cavalo... Quem sabe?!

- Bife a cava... Deixe isso pra lá! Mas eu também não quero ser queimado!

- Mumificado, empalhado, mandar seu corpo pra o colocar em um pote com formol na USP, congelar até que se ache a cura, mandar pra lua... Tu quem escolhe.

- A verdade é que eu não quero morrer!

- Ah, seu covarde! Ta com medo de morrer e ir para o inferno, né?!

- Não! Se eu morresse, para o céu de certo ia!

Caros leitores. Observe agora, ou melhor, leia agora, quanta genialidade se esconde por trás de um pobre e arruaceiro cavalão beberrão. Notais que às vezes, ao observar transeuntes, percebemos vossas roupas, vossos modos, vossa beleza, mas deixamos de lado sua capacidade intelectual...

- Sarrafo! O que de certo sabes?

- Bom... que sou belo, magnífico, genial...e um par de coisas...

- A única coisa que de certo sabemos, e por fim, algum dia teremos, é ela! Magnificência tu és, a morte. Mas morte, termo inexistente, és algo que nunca acontece. A morte de certo serias para mim, apenas mais um estagio da grande e inacabável vida.

- Mas como assim? Tu ta louco? Exagerou na dose do seu fuminho hoje?

- Tu es um tolo! Dizei-me. Que são aqueles espíritos que vê de noite?

- Ah, refere-se a isso?

- Sim, sim.

- São as almas penadas que vagam por ai.

- Na verdade, Sarrafo, é simplesmente uma outra vida, o outro estagio que me refiro. Nós, animais, temos uma visão muito apurada, e podemos ver outras dimensões. Não somos como os humanos, que como dizia KRISHNA: O ser material está sujeito a 4 imperfeições... e uma delas refere-se a isso. Um ser humano não pode ver nem muito perto nem muito longe, ou, não pode ouvir nem muito alto, nem muito baixo... como o homem pode compreender o ilimitado se seus sentidos são limitados?

- Bom! Eu não sei.

- Quando tua matéria morrer, pois ouça bem, somente sua matéria morre, sua alma voltará ao lugar inicial. Apenas recomeçará uma nova vida, ou continuará a antiga, pois de certo foi interrompida para que ti aqui reencarnasse, para evoluir.

- Mas eu não sei como é do outro lado. Tenho medo!

- Saibas que pior que aqui não haverá de ser. A vida material é sofrimento. Como diz essa famosa frase: "O sofrimento nos lembra do corpo".

- Será mesmo?

- Certamente que sim!

- Creio em ti. Estou pronto para a morte, agora. Que ela venha. E venha logo!

- Então, pare com essa choradeira. Vou-me indo-me. E seja macho!

- Adeus Carlos Bebedeira! Creio eu que este será nosso ultimo encontro!

Chega domingo!

E todos da vila estão reunidos no enterro de Sarrafo!

É, caros leitores. Sarrafo colocou na cabeça que iria morrer, que acabou morrendo mesmo! E tudo por não entender o que lhe dizem!

E Chico Ferradura, um cara velho, passa bem! Em breve casar-se-á com Ursula! A potranca do começo da historia!

A Dona Borboleta foi morta. Um dos 40 Farrapos pisou nela!

(é...eles realmente existiam/...risos...)

Carlos Bebedeira, agora, filosofa no xilindró, foi pego pela policia, por fabricar cachaça e não pagar imposto. Tudo por causa dos malditos porcos que o denunciaram. Mas eu falei pra vocês, leitores, que não era pra espalhar a do alambique... Cretinos vocês! Mas aos que nada disseram, vos peço desculpas.

Ana Júlia Marcato
Enviado por Ana Júlia Marcato em 03/11/2008
Reeditado em 03/06/2012
Código do texto: T1262529
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