De Um Sonho

De Um Sonho

Maria passava aquela tarde catalogando livros. Ouvindo Ella Fitzgerald, acompanhada pela orquestra de Duque Ellington, sentiu vontade de tragar e beber. Contudo, se comprometera abandonar os dois vícios malditos. Aos vinte e oito anos queria viver bem mais. Decidira mudar sua vida radicalmente. Acordar na cama de falsos príncipes encantados, de noites exaustivas em sexo sem final feliz, abstivera-se. Despertava agora mais disposta para trabalhar como funcionária pública. Mulher independente, longe do domínio paterno, pretendia existir feito nuvem branca a vagar pelo céu. Precisava ficar pura. Ao abandonar esses chamados pecados da carne, passou a ter um mesmo sonho amiúde. Homem surgia tocando em suntuoso piano de cauda ... Copo de cristal e solitário com flor vermelha enfeitavam o belo instrumento. Quadro pintado a óleo, representando o menino Jesus, destacava-se numa parede. De repente a música se tornava aguda, agudíssima, até quebrar os objetos. A pintura e o pianista se transformavam em pássaros de penas escuras e voavam assustados. Ela acordava com as mãos nos ouvidos como se protegesse os tímpanos. E essas imagens se repetiam igual a um filme inacabado. Após relacionar o trecentésimo décimo sexto livro (O céu e o inferno) de Allan Kardec, ouvindo Mood Indigo, percebeu o telefone a tocar. Quem a procuraria no aparelho fixo, perante a febre de celulares que grassava? Atendeu. A voz do outro lado da linha ordenou: Prepare-se, o momento é hoje! Não esqueça do sonho... e desligou. Que brincadeira de mau gosto era aquela? Poucas pessoas tinham o número discado! E a voz ecoante demonstrava conhecê-la. No entanto, nunca segredara a ninguém o reincidente sonho! Olhou para o relógio de parede e já passavam das vinte e duas horas de um sábado modorrento e chuvoso. A princípio ficou apreensiva, examinou a porta, foi até a janela. Morava no décimo primeiro andar. Acabou por esquecer tamanha idiotice. Depois de uma leve refeição, assistiu a um dvd show e se recolheu ao quarto de dormir. Logo o sono a dominou e o sonho famígero aconteceu. O pianista, nu, virou-se para ela dizendo: meu nome é José. Maria trazia o seu, pendurado numa corrente de ouro, no pescoço. Nudos, ele tomou-a pelas mãos, levando-a em direção de escadaria... Uma cama de casal, forrada de lençóis azuis, exalando lavanda , acolheu seus corpos. José a possuiu com a paixão dos grandes amantes. Entregaram-se a gemidos e orgasmos infindos...

José acordou suado. Surpreendeu-se em não estar no leito de alguém desconhecido. Sentiu gosto amaro na boca, reflexo dos drinques da noite anterior. Era músico. Distraia platéia, às vezes atenta, em ambientes noturnos. Algum parceiro, por certo, o deixara inconsciente em casa. Era afeito às mulheres da vida, após a função. Olhou da cama a bagunça generalizada no pequeno apartamento. A poeira fazia a festa de ácaros. Recordou-se de sonho erótico que o acometeu. Amara a mulher, desconhecida, com um apetite de leão! Acionou o controle remoto do aparelho de CD. A voz suave de Johnny Mathis soou cantando: Maria (do filme West Side Story)... Esse era nome de sua amada. O coma alcoólico que entrava sempre o levava ao mesmo sonho com a mesma pessoa. Tudo parecia real demais! Nunca sentira tesão tão intenso na vida boêmia que vivia. Não associava suas feições a ninguém conhecido. Era domingo. Precisava levantar-se. Havia sol lá fora. O sábado fora chuvoso. Sobre o piano de armário reparou o copo de cristal e o vaso sem flor. Não atinava que puta os presenteara. O quadro do menino Jesus na parede fora a mãe que o colocara para protegê-lo. Passou a pôr as coisas em ordem: livros, discos, dvds, partituras... Espirrou várias vezes. Não podia se dar ao melindre de contrair alergia ou gripe. Necessitava saúde para tocar ao anoitecer. Desistiu de vencer a desordem e foi ao banheiro para limpar-se, escutando desta vez: Hello, Young Lovers...

O tempo passou. Nove meses para sermos exatos. Maria viu-se envolvida numa estranha gravidez. Pensou, no início, ser algo psicológico de fêmea que usara anticoncepcionais. Porém, quando a menstruação passou a não vir se preocupou. O exame de urina constatou a prenhez. Passou a fazer pré-natal. Posteriormente uma ultrassonografia revelou o sexo do bebê: menino. Mas, como tudo aquilo acontecera se não se relacionava com ninguém fazia meses? Bem antes do misterioso telefonema privara-se desse tipo de contato! Os colegas de serviço quiseram saber quem era o felizardo papai. Ela desconversava ser uma produção independente. A suspeita de alguém compromissado da própria repartição fomentou o burburinho por um tempo. Afinal Maria era bonita, assediada... Ela, que jamais pensara em ser mãe, habituou-se à situação. De que jeito ia revelar quem era o pai se ela mesmo não sabia. O rebento seria filho de um sonho? E foi influenciada desses pensamentos que, ao atravessar a rua, desequilibrou-se e caiu. Pesada, não se ergueu de pronto. Alma caridosa veio ao seu socorro. A voz gentil perguntou:

___ Machucou-se? Estou com meu carro perto! Se precisar... Meu nome é José...

Maria olhou-o com surpresa! Constatou que ralara os joelhos na queda e arrebentara a corrente onde trazia o nome. José ajudou-a a erguer-se, recolheu e entregou o cordão para sua dona.

___ Parece que já nos conhecemos, Maria!

___ Também não me és estranho, José!

___ Quando nasce o bebê?

___ Dentro de uma semana...

___ O pai deve estar ansioso... É o primeiro filho?

___ É meu primeiro filho... quanto ao pai... é uma história meio complicada, gaguejou ela...

___ Perdoe pela indiscrição, desculpou-se ele.

___ O menino é fruto de um sonho..., apressou-se em dizer Maria, sorrindo...

E os três seguiram, lado a lado, na direção do carro...

Do livro Baixada Erótica ou Não! -2008-

Pablo Ribeiro

Veja clips do autor no www.youtube.com.br luisalbertodossr