INSPETOR FONSECA E A MORTE DO BOFE

Cheguei ao local do crime, o banheiro masculino de um bar GLS, tarde demais, uma vez que a vítima já tinha sido assassinada. Depois de dominada a frustração, fui verificar o cadáver, que aparentemente estava morto. Mesmo assim, cutuquei-lhe a barriga, ainda na esperança de que ele se levantasse e gritasse algo como “surpresa”, mas, infelizmente, nada aconteceu. À minha volta, uma horda de homens fantasiados como os integrantes do Village People se aproximavam perigosamente da minha retaguarda. Alguns choravam, gritando coisas como “me belisca forte, Mona!”, enquanto outros telefonavam pras suas mães de celulares revestidos de bichinhos de pelúcia. Foi nessa hora que, às minhas costas, uma voz soturna me causou sobressalto.

-Não adianta. Eu mesmo fiquei durante alguns minutos fazendo cosquinhas nos pés da vítima. Se ela não estivesse morta, certamente teria dado alguma risada.

Virei-me e dei de cara com o delegado Trajano, velho conhecido de outras empreitadas criminalísticas. Trajano era um tipo asqueroso, que sempre estava comendo alguma coisa ao mesmo tempo em que mascava um palito de dente e fumava um cigarro. Fumante inveterado, Trajano era conhecido por nunca tirar o cigarro da boca, mesmo em situações inapropriadas como durante suas aulas de ioga e na hora de escovar os dentes. Minha relação com o Trajano andava abalada desde que investigações sobre denúncias de corrupção policial o apontaram como o principal articulador de uma rede de propinas que visava encobrir o tráfico ilegal de lingeries. Chamado a depor no inquérito, eu acabei confessando no meu testemunho que, de fato, há muito tempo eu suspeitava que ele usava sutiã, o que se confirmou no dia em que saímos juntos pra jogar squach e trocamos de roupa um na frente do outro no vestiário. Um dia, no corredor da corregedoria, o Trajano tentou me bater com um macaco elétrico, o que perdoei, talvez por me sentir um pouco culpado pelo fato de estar namorando na época a sua filha única de dezessete anos, embora a menina ainda não soubesse disso.

-Esse homem levou doze facadas, disse Trajano, dando uma tragada profunda no seu cigarro ao mesmo tempo em que abocanhava um hot-dog com batata palha, sem maionese.

-Doze facadas, concordei. Creio que podemos descartar a hipótese do suicídio.

Senti olhares de admiração sendo lançados à minha pessoa pela legião de homens presentes. Inclusive, alguém alisou a minha nádega esquerda antes que eu pudesse impedir. Minha fama no departamento havia se consolidado ao longo de todos aqueles anos devido a minha perspicácia e senso apurado de observação. Eu ainda estava deitado nos louros da glória por ter solucionado o misterioso caso da velha avarenta da Rua Treze, típico caso de duplo homicídio onde a vítima foi morta duas vezes porque o assassino não queria correr o risco de ter que voltar no dia seguinte pra terminar um serviço mal feito. Abri espaço por entre os presentes, ouvindo coisas como “poderoso” e “necessário” e tentei encontrar o melhor ângulo pra fotografar a cena do crime. Infelizmente, constatei consternado que havia esquecido a minha câmera digital em casa e receoso de que o Trajano pudesse espalhar por aí que eu sou um investigador relapso, coloquei meu bloquinho de anotações na altura da vista e fiquei fazendo “clic” com a boca de maneira discreta. Acho que meu truque funcionou. Inclusive porque um dos frequentadores do bar chegou do meu lado e sussurrou algo como "me fotografa?" no meu ouvido. Foi quando eu identifiquei algo estranho no corpo:

-Espere! Esse homem está sem as calças!, disparei, rápido como uma Magnum nove milímetros.

O banheiro ficou tomado pelo alvoroço. Todos se acotovelavam pra verificar o objeto da minha descoberta e no meio da confusão, passaram a mão a minha bunda de novo, dessa vez na nádega direita. Trajano ficou tão puto por não ter reparado num detalhe tão relevante às investigações, que depois de tragar a salsicha, acabou engolindo o seu cigarro.

-Quem foi a última pessoa a ter contato com esse homem?, perguntei.

-Eu, bofe...

Imediatamente o garçom da espelunca se apresentou. Um sujeito de cabelo descolorido, esquálido e tísico, que durante todo o depoimento, inexplicavelmente ficou tentando alcançar o próprio cotovelo com a língua, obviamente sem sucesso.

-Eu fui ao banheiro, bofe, como sempre faço todos os dias, principalmente quando estou apertado. Foi quando eu vi um sujeito com uma aparência terrível e repulsiva. Seus cabelos estavam desgrenhados e seu olhar transparecia desespero e solidão. Ao mesmo tempo, existia naquela figura algo sedutor e enigmático, o que muito me atraiu. Caminhei na sua direção e aparentemente, ele correspondeu à minha iniciativa. Foi só quando eu bati com a testa no espelho é que percebi que na verdade eu estava diante do meu reflexo.

-Entendo. E daí?

-Foi quando esse homem, que agora está morto, me abordou, perguntando qual era o número do meu manequim.

-Por acaso você reparou se ele estava usando calças?

-Eu sempre reparo se um homem está usando calças, mesmo porque minha mãe é costureira, mas curiosamente, nesse caso, eu não posso afirmar com precisão.

-E essa calça, é sua?

-Claro que é. Não reparou como ela me cai bem?

-Talvez caia melhor depois que a sua mãe fizer a barra.

-O que que o senhor está insinuando?

-Senhores, prendam esse garçom. Foi ele que matou esse homem!, afirmei, triunfante.

Todos os homens começaram a se comportar histericamente e no meio da confusão passaram a mão na minha bunda de novo. Dessa vez, eu me virei rapidamente e constatei, horrorizado, que quem tava me bolinando o tempo todo era o Trajano. Resolvi ignorar o fato bizarro pra responder à pergunta que era feita aos gritos, enquanto plumas e lantejoulas voavam pelo ambiente: como eu havia solucionado o crime?

-A motivação do crime foi a vaidade, senhores e... senhores. O fascínio do garçom pela sua própria imagem é característico de um comportamento psicótico narcisista. A vítima, um sujeito corpulento, de quadris largos e dorso fino provavelmente era um sujeito que nunca ficava satisfeito com suas calças.

-O Darci tava sempre reclamando do caimento das suas calças!, confirmou um homem discreto, de mais ou menos um metro e noventa, peludo e que vestia cinta-liga cor de framboesa.

-Quando o finado Darci reparou nas calças do garçom - continuei- eles decidiram , numa troca de olhares, ir até o banheiro, na tentativa de estabelecer uma típica troca pantalônica. O garçom, aparentemente, ficou satisfeito com o modelo, principalmente porque a sua mãe costureira poderia fazer os eventuais ajustes pra que a peça lhe servisse perfeitamente. A vítima , no entanto, não gostou de saber que a braguilha da sua nova calça não iria fechar com facilidade e, após se despir, quis imediatamente desfazer o acordo. Entorpecido pela própria vaidade, o garçom recusou-se. Uma luta corporal violenta aconteceu, finda a qual, o garçom sacou a faca outrora destinada a cortar o pato, desferindo os doze golpes que, ao que tudo indica, causaram o óbito!

-Está bem, eu confesso!, gritou o garçom. Nunca uma semi-bag me caiu tão bem! Eu mataria pra continuar vestindo essas calças! E matei mesmo!

Na saída, enquanto o corpo era encaminhado para o IML e o garçom era preso, o Trajano me puxou de lado e disse que admirava meu trabalho e que gostaria de acabar com os mal-entendidos existentes entre nós dois. Eu disse que tudo bem e aí ele ofereceu o seu apartamento pra gente tomar uma bebida. E foi nessa hora que eu saí correndo a toda velocidade.

Leonardo de Faria Cortez
Enviado por Leonardo de Faria Cortez em 27/10/2008
Código do texto: T1250149
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