INSPETOR FONSECA E A MORTE DO ELEFANTE

Não foi fácil entrar no Gran Circo do Professor Figueroa, depois que fui chamado às pressas para investigar a morte do elefante. Logo na entrada, um grupo de anões evangélicos tentou me converter usando uma edição de bolso da Bíblia e o argumento de que a morte do elefante aliada à alta do dólar era o prenúncio do juízo final. Ao adentrar ao picadeiro, o cenário era dantesco. Um grupo de palhaços existencialistas refletia sobre a impermanência da matéria enquanto duas irmãs siamesas discutiam agressivamente, já que depois daquele crime, uma queria se internar num monastério enquanto a outra estava decidida a virar stripper. No centro do picadeiro, o cadáver paquidérmico jazia indubitavelmente morto, perfurado por doze tiros , que aparentemente, eram os causadores do óbito. Abri caminho entre os palhaços no momento em que um deles afirmava algo como “Deus está morto”, enquanto esguichava água de um daqueles óculos de brinquedo e quando cheguei ao lado daquele imenso corpo, me veio imediatamente a lembrança do meu finado Tio Leopoldo, obeso mórbido, que morreu ao escorregar da balança e bater a cabeça no chão enquanto comemorava a perda de doze quilos em trinta dias depois de uma dieta a base de fibras. Pensei em contar essa história para a mulher barbada na tentativa de puxar um papo já que, desde a minha entrada no circo, ela me lançava olhares libidinosos, mas preferi ir direto ao assunto, aproveitando a aglomeração em volta do cadáver.

-Muito bem, vou perguntar só uma vez: quem foi que matou o elefante?

Normalmente eu uso essa primeira estratégia investigativa. Pergunto em voz alta quem é o assassino na esperança de que ele se apresente de uma vez, pra que todo mundo possa voltar mais cedo pra casa. Raramente essa estratégia dá certo, mas a tentativa nunca me custou nada. Foi quando aquela velha voz soturna se fez ouvir às minhas costas.

-Você continua o mesmo idiota de sempre, Fonseca...

Virei pra trás, e o Trajano, mais uma vez, estava na minha frente. Ele continuava sendo o delegado da nossa divisão, encarregado das investigações criminais preliminares que normalmente não serviam pra nada, mesmo porque tudo o que o Trajano costumava fazer quando chegava ao local de um crime era ficar repetindo o tempo todo “para trás, para trás”, mesmo que não houvesse nenhum curioso por perto. Eu nunca me dei muito bem com o Trajano e as coisas pioraram sensivelmente depois que do episódio da Professora Ruth, sua namorada criminosa que eu fui obrigado a botar na cadeia. Achei, inclusive, que a corporação iria afastá-lo do cargo, principalmente depois que ele baleou dois ex-colegas durante a tentativa de fuga da moça. Na delegacia, no entanto, ele disse que tudo não havia passado de uma brincadeira, e pedindo desculpas, perguntou se as coisas não poderiam continuar como antes. À princípio, a corregedoria relutou, mas quando o Trajano garantiu que a limpeza do banheiro seria sua responsabilidade, ele não somente teve seu emprego de volta como também ganhou a antecipação do dissídio da categoria. Ainda estava fresco em minha memória nosso último diálogo, quando ele disse que me odiava e que queria me matar. Lembro que respondi algo como “tudo bem , mas espero que isso não signifique que a gente não possa ser amigos...”. E agora, os ossos do ofício nos colocavam frente a frente, mais uma vez. Por isso, tentei ser o mais profissional possível e falei, com um ar sereno:

-Trajano, o elefante morreu. Parece que temos aqui um crime da pesada...

O picadeiro explodiu em gargalhadas enquanto o Trajano, que estava tentando parar de fumar havia dois minutos, acendeu uma bituca que estava apagada num monte de esterco, recaindo imediatamente. Normalmente eu era avesso à piadas no ambiente de trabalho, mas naquele dia eu me sentia pleno e inspirado, na carona da paixão pela minha nova namorada, uma sueca ninfomaníaca que me fazia ver estrelas, principalmente quando incorporávamos nas nossas peripécias sexuais objetos eletrônicos que ela secretamente importava da Coréia. Numa das primeiras noites, eu tive parte da minha genitália eletrocutada. Depois, conseguimos estabilizar a voltagem dos aparelhos, e naquele momento , nossa relação seguia numa curva ascendente de luxúria e delírios.

-Chega de piadas e vamos ao trabalho, seu palhaço!, gritou o Trajano, sem perceber que os palhaços se sentiram ofendidos e discretamente arregaçavam as imensas mangas com babados. E antes que a coisa ficasse preta, mais uma vez eu me encarreguei de descontrair o ambiente.

-Trajano, sua camisa está suja de café, eu disse, enquanto apontava para o centro do seu peito. E quando o Trajano olhou para baixo, imediatamente, eu lhe desferi um “chubaba” que levou a platéia à loucura.

-Ok, vamos deixar as nossas diferenças de lado, meu caro colega delegado. Traga até aqui o Professor Figueroa, dono do circo. Talvez ele tenha alguma informação valiosa...

Contrariado por receber ordens minhas e talvez mal-humorado por eu ter abaixado suas calças quando ele se virou de costas, Trajano foi buscar o Professor. Minutos depois, o dono do Gran Circo estava à minha frente, junto com a sua esposa, Dona Julieta. O Professor era um tipo obeso como tio Leopoldo e seu comportamento era extremamente suspeito, a começar pelo fato de que ele dizia o tempo todo “não fui eu, não fui eu”, o que depois ele atribuiu à uma crise de flatulência. Do seu lado, sua esposa, igualmente adiposa, chorava descontroladamente.

-Como o senhora descreveria a sua relação com o elefante falecido?, perguntei à Dona Julieta, enquanto lhe oferecia um copo d´agua.

-Éramos amigos! O ciúme do Figueroa é injustificável!

-Eu flagrei essa vagabunda beijando o elefante! - gritou o Professor Figueroa, subitamente acometido por uma crise de emocional.

-Ok! Confesso! Eu beijei! Mas eu beijei achando que o elefante era você!

-Essa quando bebe, vira uma putana!

Imediatamente, o professor Figueroa começou a dar uns tabefes na esposa, mas ninguém interferiu porque, até onde eu soube, tava todo mundo acostumado com aquele tipo de cena. Mesmo assim, eu subi no mastro do picadeiro e disse em altos brados:

-Mais um crime solucionado, meus senhores. Foi um crime passional! Louco de ciúmes, o Professor descarregou sua arma e...

Eu me preparava para receber as boas e velhas palmas de reconhecimento à minha rapidez e perspicácia quando ouvi um estampido e senti uma ardência no meu peito. Ainda tentei concluir o meu discurso, mas minha boca se encheu de sangue e nessa hora eu pensei que a coisa poderia ser um pouco mais séria. De fato, era mesmo. O Trajano tinha me dado um tiro no peito.

-Isso não é pela Ruth, ou pelas piadas infames! O que você fez comigo foi muito pior! Antes de você, eu era somente um delegado medíocre, mas a sua idiotice colocou uma lente de aumento na minha própria incompetência! Você é um deboche de Deus na minha vida!

Caí estatelado no chão e ainda pude ouvir o Trajano gritar por socorro enquanto ele era espancado pelos anões evangélicos e pelos palhaços existencialistas. Fui encaminhado com vida ao hospital, mas faleci na ambulância. Agora, estou na espectativa pra ver como será o meu funeral. Acho que o mínimo que a corregedoria pode fazer é pagar as despesas. Além, é claro, de não aceitar o pedido de desculpas do Trajano.

Leonardo de Faria Cortez
Enviado por Leonardo de Faria Cortez em 27/10/2008
Código do texto: T1250136
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