Papéis Picados

Papéis Picados

Jogando papéis picados pela casa toda, sem nem perceber o que fazia...

Ficando horas ociosas, olhando um ponto invisível, sem se mexer...

Fazendo suas “obrigações” (como as chamava), sem prestar atenção...

- Mãe, onde está o meu blusão do colégio?

- Querida, você viu a minha gravata azul?

- Patroa, acabou a Cândida!

- Mãe, me leva no judô?

- Amor, dá para apressar esse jantar?

Esquecendo o feijão no fogo, quase queimando...

Dirigindo automaticamente, quase batendo numa van da Ponte Orca...

Continuando a picar papeizinhos e a jogá-los pela casa toda, quase não percebendo...

(Ninguém notava que ela estava pedindo socorro, acuda, estou afundando, indo não sei para onde, nem por quê.)

- Patroa, preciso sair mais cedo!

- Querida, minhas meias estão desparceiradas.

(E ninguém notava nada. No filme do Jack Nicholson e da Meryl Streep, esqueceu o nome, só lembra os atores, isso foi o começo do fim do casamento, só que era o marido que misturava os pares de meias.)

- Mãe, posso ir na casa da Milu?

- Mãe, vou jogar bola com o Beto.

(E ela, quando poderia ir à casa de outra Milu qualquer, ou jogar bola, ou baralho, em casa de alguém?)

- Patroa , de onde vêm esses papér que canso de varrê?

(Ninguém notava que era ela, ela era, ninguém parecia saber sequer que ela estava ali, cortando legumes, fazendo comida, olhando o nada, assistindo à televisão sem ver, olhava, olhava, mas não via...)

Continuava fingindo ser ela mesma, cada vez mais alheia a tudo, zanzando pela casa sem parar...

E o número de papeizinhos cortados, jogados pela casa toda, aumentando, aumentando...

E a faxineira reclamando:

_ - Num dô conta desse serviço, é papér qui num acaba mais.

E os filhos continuando, pedindo (_Mãe, me faz um lanchinho), insistindo (_Mãe...Mãe...), andando, falando, saindo mais do que entrando...

E o marido cada vez mais se ausentando de casa, chegando tarde, sem a beijar...

E ela entrando cada vez mais para dentro de si mesma, fechando-se, arrumando como que uma casa só sua, onde não tivesse sentido picar papéis, nem tentar entender os outros.

-Querida, onde está você?

-Patroa, cadê a senhora?

- Mãe, cadê você? Tô cum pressa. Pai, onde ela foi?

- Num sei onde a patroa se meteu.

- Querida, deixe de brincadeira, apareça!

- Mãe!...

-Mãe!...

Mas, nada dela...Só os papéis picados espalhados pela casa toda.

Ninguém a vira.

Sumira.

Desaparecera.

(E ninguém notou um caracol preguiçoso, ensimesmado, levando consigo a sua casa, lentamente, arrastando-se e arrastando sua solidão pelo jardim ermo e escuro.)

Magali Crescini
Enviado por Magali Crescini em 20/10/2008
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