Ele foi condenado a viver outra vez

A rotina…já a sabia de cor em salteado, todos os segundos, minutos horas, dias, anos, até que tudo acabasse e ele ficasse em paz.

De manhã…como descrever o peso das manhãs e que se iria prolongar interminavelmente? De manhã, acordar bem cedo depois de já ter tido os sonhos ou pesadelos por ele sobejamente conhecidos. Depois…tomar banho, fazer a barba, comer o mesmo pequeno-almoço enquanto ouvia as mesmas notícias. Depois o trabalho, onde cometeria os mesmos erros, teria a mesma atitude condenável perante alguns colegas, criaria o mesmo mau ambiente, e por ai fora dia a dia até ao fim.

Quando saísse, encontraria aquela velha amiga que ele sabia gostar dele, mas que desprezava por uma pequena e insignificante falha de personalidade, ignorando-a, embora soubesse agora que ela era a mulher da sua vida, e que com ela tudo poderia ser diferente, podia ser imensamente feliz, mas não podia nem devia fazer nada de facto.

Depois, bem depois iria em excesso de velocidade depois de ter bebido demasiado, a policia interviria e ficaria sem carta uma data de anos…Ele tinha o conhecimento à priori de tal, mas era-lhe vedada a hipótese de qualquer tipo de interferência pois se ousasse tal…

Sabia também todos os acontecimentos do mundo durante anos que uma alma pode abarcar, sabia os resultados desportivos, os números dos diferentes jogos de sorte, tendo em si o potencial de ganhar mais dinheiro do que poderia gastar em várias vidas, sabia, sabia…mas desesperadamente nada podia fazer para alterar a sua linha do destino, senão…

Um dia no futuro deu consigo num Tribunal Existencial, perante alguns juízes de semblante carregado e determinados perante os factos irrefutáveis e incontestáveis: estava ali tudo, nalgumas milhares de páginas da mais pura e imaculada verdade -ele tinha vivido oitenta e cinco anos que desperdiçara pura e simplesmente. Muitos tinham vivido menos, mas haviam preenchido a respectiva existência com inúmeros actos e atitudes louváveis, ao passo que ele…Passara ao lado de infindáveis oportunidades, desperdiçando-as umas atrás das outras…A nível social era aquilo que se poderia considerar um autêntico pesadelo, ou o sonho para qualquer advogado de acusação Existencial. Até a saúde de ferro que lhe deram à nascença ele minou com o rol mais variado que se possa imaginar de disparates, desprezando esse quase dom genético que o poderia ter levado até aos cento e tal anos, sendo mesmo uma sorte ter chegado aos oitenta…E o pior era ele ter consciência plena de tal…De nada valia o arrependimento mostrado na hora capital, as oportunidades de gerações tinham-se esgotado, sendo por isso dada a pena máxima, sem hipótese de recurso, pena que o também colocaria em permanente estado condicional: se ousasse interferir tudo começaria de novo até ao final dos tempos:

Ele foi condenado a viver outra vez

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