-O VELÓRIO -


Quando o telefone tocou pela quinta vez, Verinha atendeu com um misto de sono, má vontade e péssimo humor. Não eram boas notícias, a estranha simplesmente avisou que Caio estava morto e seria enterrado às dezessete horas.
Antes que ela conseguisse perguntar alguma coisa, a ligação terminou com o ruído típico. Discou o número do celular do ex- namorado e um parente confirmou a notícia: Caio sofreu um infarto fulminante dois dias atrás. Como costumava desaparecer, as pessoas não ficaram preocupadas nem estranharam a ausência.  No terceiro dia, a faxineira encontrou o corpo e avisou a família. Velório no São João Batista.
Verinha e Caio haviam tido um relacionamento tumultuado há dois anos. Terminaram meio brigados e nunca mais se encontraram. A mulher sentiu raiva, depois de tanto tempo era o pior convite que podia receber. Decidiu comparecer, estava curiosa: Quem mais iria ao cemitério? Quantas outras teriam sido informadas? Decerto haveria confusão.
 Verinha adorava um tumulto. Aliás, foi por isso que terminaram o romance. Vera com ciúmes não via hora nem lugar. Armava o maior barraco e virava mesas e cadeiras.
Caio tinha um senso de humor peculiar. Fixação pela morte e cerimônias de adeus. Nas mesas de bar, depois de algumas cervejinhas, o funeral era o assunto preferido. Visualiza em detalhes, imaginava até a cor do terno e flores. A mórbida brincadeira,  sempre terminava em protestos e discussões.

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----SAUDADES ETERNAS---


Era um homem tão organizado e metódico que havia deixado uma pasta com todos os documentos necessários para a cremação. Cheques assinados, relatório de todas as finanças e uma lista de recomendações. A  ex-esposa recebia os pêsames dos vizinhos e tomava todas as decisões para a cerimônia. Discretamente analisava o apartamento calculando o valor do imóvel.
Não recebeu muito bem a incumbência de seguir os desejos do morto:
-  Até depois de morto, esta história de chamar um monte de mulheres para o velório. Não sou palhaça, não vou ligar para este bando de vagabundas.

A mãe de Caio até então, calada e sofrendo a perda do filho, lançou um olhar crucial para a nora. Os irmãos do falecido encararam a viúva oficial aguardando uma decisão.
Lucinda sentiu que não era hora de iniciar uma briga em família. A partilha dos bens e o inventário, com certeza trariam a recompensa.
A capela do cemitério São João Batista parecia pequena para tantas coroas de flores. Eram da empresa, dos amigos da São Clemente onde o morto residia  e de muitas amigas. 
Lucinda vestida de preto, cara fechada, lia as mensagens nos arranjos com evidente desconforto: Saudade eterna  da  Jú, Toda a dor do mundo da Teresinha, Amor eterno da sua Aninha, Com amor e carinho da sua Lú...
Sentiu  ganas de destruir cada flor e picar em mil pedacinhos aquelas declarações.
Vez por outra dava pequenos chutes nas bases de madeira tentando derrubar as aberrações. Os parentes e amigos íntimos ocuparam as cadeiras próximas ao ataúde. Lucinda recusou as honras da cabeceira e preferiu um lugar discreto.
As mulheres  começaram a chegar assim que a capela foi liberada. Aproximavam-se do caixão, tocavam a mão do defunto, beijavam a testa fria e acariciam o rosto entre suspiros. Altas, baixas, gordas, magras, mocinhas e de idade avançada.
Vieram  de toda parte da cidade, algumas pareciam verdadeiramente tristes. Todas tinham uma história para contar, uma lembrança de farras e festas: Caio era generoso, divertido, doido por um rabo de saia e uma cachacinha. 
Falava as palavras certas na hora exata. Caio era um querido e ia deixar saudades.
A família  permaneceu  alheia ao burburinho. Apenas o pai de Caio vez por outra lançava olhares e ria disfarçadamente. 
Alguns parentes não conseguiam entrar : - Gente demais, lotação completa- Um primo engraçadinho  fazia piadas, oferecendo senhas aos que tentavam aproximar-se da capela.
 As horas passavam lentamente e Lucinda ''a viúva oficial'',  cada vez mais irritada. Havia bolsa de aposta entre os amigos da empresa onde Caio trabalhava, especulava-se a gota d’água:

- Acho que ela está mirando a lourinha saliente, a dos peitos de fora- João,  velho amigo de repartição,  estava animadíssimo cercado de mulheres. 
Dividia com outro colega a tarefa de consolar as moças. Obviamente oferecia o cartão de visitas para todas.
As vozes foram aumentando gradativamente e aos poucos nem parecia um velório. Antigas namoradas conversavam com as recentes sobre o falecido. Compararam datas, lugares, dias de festas e feriados. Coincidências de tempo e espaço apontaram as evidentes  traições.
A confusão começou a esquentar o ambiente abafado, o cheiro de velas e flores causava mal estar e tontura. Houve ameaças de desmaio e a discussão tomou vulto. A  mais exaltada era uma vizinha baixinha, equilibrando-se nos saltos altíssimos.

Vez por outra esquecia a mini-saia curtinha e deixava as calcinhas à mostra:-  Safado, ainda mandou chamar este monte de ordinárias. Já foi tarde, deve estar comemorando nos quintos do inferno.
- Olha colega, mais respeito com o falecido- A mulata de cabelo afro cheio de penduricalhos,  decidiu dar um ‘’chega pra lá ‘’na abusada.
- Defendendo o patrão? Aposto que  tinham um caso, sempre desconfiei desta sua petulância.
 A diarista não gostou da provocação e partiu para cima da baixinha. Foi o mesmo que acender um palito de fósforo no paiol de pólvora. Gritinhos e puxões de cabelo, uma rasgando a blusa da outra, bolsa voando por todos os lados e o morto abandonado.
Os seguranças  expulsaram as brigonas e as demais desistiram de participar do velório. Apenas a família e poucos parentes permaneceram aguardando a bênção do padre. Lucinda exultava, mais duas horas e o teatro chegaria ao fim. Olhou atentamente  a cara do ex marido. 
O morto mantinha o sorrisinho cínico de sempre, era a imagem da tranquilidade.
Faltava uma hora para levarem o corpo quando a mulher entrou com ares de dona da situação. 
Muito bem vestida e perfumada. Coberta de  jóias e oculta pelo  imenso óculos escuros. No silêncio apenas o som dos saltos ressoavam pela câmara.
Cumprimentou com um aceno os familiares e fez o sinal da cruz, colocou uma rosa vermelha nas mãos de Caio e beijou a ponta da mantilha.
Não era jovem nem bonita, diferente das outras, a estranha  incomodava com o jeito arrogante e decidido. Lucinda aproximou-se do ex sogro:

- O senhor pode me dizer quem é esta mulher? – O idoso fez cara de desentendido e ficou calado.
A viúva sentiu todos os olhares em suas costas, educadamente aproximou-se da outra:

- Com licença, a senhora entrou no velório, colocou  flor na mão do meu marido e vai saindo sem maiores explicações? - A outra torceu a boca e fez cara de enojada:
- Tenho meus direitos. Já me despedi e estou indo embora. Não quero confusão.
- Despedidas. Hoje todas as vadias do Rio de Janeiro bateram ponto neste velório.
A mulher tirou os óculos e encarou Lucinda com muita calma:

-  Se tem uma vadia aqui é você.   Nunca trabalhou e sempre viveu de pensão.
-  Bem informada, amiga da família, namorada oficial?
- Não. Quase vinte anos juntos, sabe como é, tenho meus direitos.  Sou tão viúva quanto você.
-  Vinte anos... Voce disse vinte anos? Vou te mostrar os vinte anos?!
Finalmente Lucinda encontrou o alvo para toda a raiva acumulada. Um forte soco  mandou os óculos pelos ares, atracaram-se rolando pelo chão como duas Fúrias. 

Os demais ocupantes das capelas vizinhas, cansados de tanto tumulto resolveram intervir. A direção do cemitério mandou lacrar  a urna e encerrar o velório. 
A cremação só seria assistida pelos pais do morto e ponto final.
Caio teve o último desejo satisfeito, ainda que aos trancos e barrancos. Que descanse em paz!



Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 13/10/2008
Reeditado em 28/10/2008
Código do texto: T1226093
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