Morte e Libertação

Não chovia nem ventava , tampouco fazia sol. O tempo estava parado porque era assim que deveria estar naquele dia.

Pela primeira vez ela entendia o que significava liberdade. Depois de uma vida inteira de desespero ela podia se dar ao luxo de rir sem parecer falso.

A morte para ela tinha um sabor doce. Pouco importava os parentes (sempre eles), não adiantava fingir. Não queria mais , já tinha fingido durante a vida inteira. Fingir seria ir contra aquele momento sublime.

Sim ela já sentia aquele sentimento macabro em seu corpo .Quase como uma tatuagem.

Então ela riu...., e riu como se nunca tivesse rido antes . Era um riso incontido e controlado , doído e gostoso, livre ,honesto e sem compaixão.

Enquanto ela ria , os homens levavam o caixão com o defunto.

O morto não tinha mais que 50 anos . Quando vivo chamava a atenção das moças da cidade e de outras cidades também. Quantas cidades ela não saberia contar.

Não poderia enumerar os casos amorosos que o marido tivera. Nem queria .Agora era livre. Ela não precisava mais dele nem ele dela.

E ao pensar essas coisas ia rindo sem se importar com o olhar dos outros. Alguns de piedade , outros até de desprezo.

Não queria pensar como seria sua vida agora , isso seria até uma heresia .

Ela só queria rir. E rindo acompanhava o cortejo até o cemitério municipal .

Eu é claro não podia entender , nem queria. Do alto dos meus 6 anos eu não fazia parte daquilo .Para mim era tudo uma confusão dos adultos.

Minha mãe apertou minha mão , olhei para ela. Havia um brilho novo em todo seu corpo. Ela continuava rindo e os outros continuavam a olhar espantados.

Nesse dia ao vê-la assim tão livre pela primeira vez e ao mesmo tempo tão frágil, me senti livre e grande também. Tive uma dolorosa sensação de poder . Agora era eu quem consolava e protegia, agora percebia o que minha mãe tinha escondido por medo. Nós duas estávamos finalmente livres.

Sim , os adultos são muito frágeis. Com apenas 6 anos este foi o meu primeiro contato com com essa dolorosa e libertadora idéia.

E ela continuava rindo... e eu ri também.

Rafaela Haygertt
Enviado por Rafaela Haygertt em 29/09/2008
Reeditado em 30/09/2008
Código do texto: T1202663
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