Fila do Teatro

O casal chega numa fila para comprar ingressos para uma peça teatral e depois de um minuto ele diz:

— Que demora, poderíamos ter ficado em casa!

— Querido, não percebe que acabamos de chegar.

— Percebi sim, só que eu já deveria estar sentado na minha poltrona esperando que a peça comece no horário estipulado.

— As coisas não precisam ser da maneira que você quer.

Um fato inusitado acaba de acontecer, o que deixará o homem inconformado.

— Senhores espectadores, infelizmente a peça não acontecerá, pois os atores estão em greve.

— Assim tão de repente? – estranhou o homem ranzinza.

— Que azar hein querido, só porque é a primeira vez que você vem ao teatro.

— Se tivesse ficado em casa vendo TV isso não aconteceria, lá não há greve.

— São coisas bem diferentes, se os atores entraram em greve é porque não estão recebendo o suficiente, ou seja, muitas pessoas não vão ao teatro, pois preferem suas casas e os cinemas.

— Problema deles, não meu.

— De fato, mas agora ficamos com uma opção a menos para diversão.

— Está enganada, se eles não vão interpretar então nós iremos.

— Do que está falando?

— A partir de agora você é Dorotéia e eu Jonas.

— Posso ser a Petúnia? – interveio uma moça da fila.

— Claro! Precisa de uma rival para Dorotéia.

— E eu Pantaleão? – disse outro moço da fila.

— Arranje outro nome, esse já foi muito usado.

— Como sabe disso? – perguntou a parceira do agora diretor, idealizador, roteirista, será que técnico de som também?

— Oras sabendo, alguém deve dito pra mim. E você decore suas falas.

— E onde estão?

— Como assim onde estão? A fala não vem da boca? Então tudo que você tem que falar sairá da sua boca.

Depois dessa resposta, a atriz de Dorotéia não se dá nem ao trabalho de retrucar.

— Já decidiu seu personagem? Você será o antagonista, e, por favor, escolha algo mais original.

— Romeu?

— Ótimo! Você sempre será lembrado por este nome e muitos vão usá-lo, ou não. Acho que não falta mais nada, podemos começar?

— E a gente? – protestou o casal que está no primeiro lugar da fila.

— Vocês continuarão sendo o que são: espectadores! Agora silêncio! – disse o mais novo diretor, ator, produtor e enganador do teatro regional de seu bairro que pretende pedir silêncio quando são seis horas da noite e diante da grande avenida: passam dois carros na frente deles, um de cada lado da via.

Primeiro Ato da peça EU TE QUERO, MAS ELE TAMBÉM TE QUER. VOCÊ NÃO ME QUER, MAS ELA ME QUER.

— Eu te quero Dorotéia!

— Problema seu – disse a mais nova atriz e nas horas vagas é gerente de uma empresa privada que fabrica pias, torneiras e claro, descargas.

— Querida! Colabore, por favor.

— Eu não sei o que falar!

— Preste atenção no título da peça que os nossos espectadores, patrocinadores, e por que não co-diretores, co-produtores escreveram na parede da entrada do teatro.

— OK!

— Vamos recomeçar!

— Eu te quero Dorotéia!

— Você não me quer.

— Claro que quero!

— Mas você não me quer!

— Dorotéia, por que falas assim?

— É o que está escrito na parede!

— Pelas barbas de Shakespeare!

— E por acaso ele tinha barba? – perguntou um dos espectadores.

— Platéia é pra assistir, não pra falar e queira você ou não, mas ele tinha, e se não tinha, a partir de hoje tem. Agora, minha adorada mulher, interprete Dorotéia.

— Dorotéia eu te quero!

— Não te quero eu.

— Por que falou ao contrário?

— Foi você quem começou!

— Cena um, tomada quatro, Ação! – disse o rapaz da suposta platéia.

— Você deve estar no lugar errado, meu caro. Vamos logo, que eu quero terminar isso ainda hoje.

— Eu te quero Dorotéia.

— Mas eu não te quero Jonas.

Silêncio na calçada, quer dizer, palco.

— Cadê a atriz que faz a Petúnia? – perguntou o criador da mega produção.

— Foi comprar um refrigerante. – disse o ator que interpreta Romeu.

— Ali está ela – apontou Dorotéia.

— Que bonito hein mocinha, ausentando-se de cena.

— ‘tava com sede.

— Agora entre em cena e fale o que tem que falar.

— Eu te quero Dorotéia.

— Mas eu não te quero Jonas.

— Eu te quero Jonas – disse Petúnia que logo em seguida aspirou pelo canudinho o refrigerante.

— Até que essa Dorotéia não é coisa ruim.

— Oh Romeu eu te quero muito – disse Dorotéia.

De diretor, ator, contra-regra, maquiador ele se tornou lutador de “tai chi jitsu” e partiu pra cima de Romeu e deu-lhe um soco.

— E se eu tivesse a espada de Lancelot te cortaria em pedaços.

Todos se amontoaram e separaram os brigões.

— Quero cinco mil reais por essa minha atuação – pediu a atriz de Petúnia depois da briga.

— Mas você só falou uma frase.

— Tem tanto ator e atriz de cinema americano que ganha o triplo só pra dizer: Bullshit!

— Não tenho esse dinheiro pra te pagar.

— Então eu vou entrar em greve.

— Greve de uma pessoa só?

— Nós dois também vamos entrar! – disse o casal espectador e ex-patrocinadores.

— Mas vocês são da platéia.

— Está muito enganado, nós estamos interpretando espectadores, o que é bem diferente de ser reais espectadores.

— Ah é?

— É sim, queremos um novo piso salarial, direito a férias, direito a duas viagens para as ilhas gregas a bordo de transatlântico.

— Ei, tudo bem que tudo isso é ficção, mas não precisa forçar a amizade. Menos, menos, ok?

— Querido, a peça já acabou?

— Sim, você já pode voltar a ser quem era.

— Acabei de me lembrar que amanhã tenho reunião sobre uma nova tecnologia de descargas, acho que vai ser uma merda. Tem como voltar a ser a Dorotéia, é tão fácil.

— Infelizmente acabou.

— Mas querido!

— Acabou, acabou, acabou, aaaaacabou e se eu falar acabouuuuu? Qual ficaria melhor numa ópera?

Neste momento aparece um policial e o mesmo diz;

— È impressão minha ou estão fazendo arruaça em via pública, e como meu primeiro ato como policial: eu os declaro presos, têm o direito de ficar calados, qualquer coisa que disserem pode ser usado contra vocês no tribunal. Será que falei certo? Pediram pra eu decorar isso.

— Você não está na América.

— Não!?

— Me enganaram!!! – gritou e saiu correndo. Minutos depois aparece um carro do Manicômio municipal e a pergunta é um tanto quanto óbvia que eles nem se deram ao trabalho de fazer e muito menos eu de escrever.

Todos se entreolharam e o ex-diretor, ex-ator, ex-roteirista disse:

— Foi um prazer contracenar com vocês e até nunca mais.

— Querido, aonde você vai?

— Pra casa!

— Esqueceu que temos uma peça pra encenar?

— Peça? Está doida?

— Não acredito que você não tomou seu medicamento. Acorda, faltam dois minutos para entrarmos em cena.

— Quer dizer que eu sou ator de verdade e você também? Então você não trabalha numa empresa privada que fabrica pias, torneiras e descargas.

— Bela imaginação, guarde essa idéia pro próximo trabalho. Agora vamos – disse ela puxando-o pelo braço até o palco.

— Esqueci minha fala!

— Improvisa, lembra que o diretor falou: a fala vem da boca, então abra e fale.

Os dois atores entram na terceira cena do segundo ato em que ele é um inquisidor e ela uma bruxa condenada a morrer, quando chega a vez de ele falar, ele diz:

— Eu te quero Dorotéia.

A platéia que esperava a condenação, fica paralisada até que alguém ri solitário, mas que causa uma reação geral e todos riem. As cortinas se fecham. O ator é demitido na hora, ela como esposa fiel também o acompanha e desistem dessa idéia maluca de ser ator.

FIM

Mas afinal quem é mais louco? Este sujeito ou quem escreveu? De qualquer forma consegui entrar na história, aproveitar enquanto o manicômio não me pega. Bem que aquele moço que me inspirou era estranho. Como pode reclamar da demora da fila um minuto depois de chegar. Eu posso estar errado sobre ele, mas tenho certeza que a companheira dele trabalha numa empresa privada que fabrica pias, torneiras e descargas, pois eu mesmo a vi lá no manicômio conversando com os caras de branco.

Ass: Eu, 52 de setembro de 8002 ou 22 de Outubro de 2800 d.C

25/09/08

Miguel Rodrigues
Enviado por Miguel Rodrigues em 25/09/2008
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