Epitáfio
Tudo começou com as cinzas de um cigarro.
Era véspera de ano novo. Meu primeiro cigarro. Queimei ele, mas não consegui tragar, eu tinha dezesseis mas ainda não sabia tragar. Por volta do terceiro comecei a conseguir. A nicotina entrou em meu sistema como um trem-bala. Minhas pernas tremularam, e eu cai sentado no chão, com o cigarro entre meu indicador e médio. Só havia me sentido assim depois da primeira trepada. É como se naquele momento eu parecesse ser feito de manteiga. É um puta sensação para se sentir no dia 31 de dezembro, enquanto seus pais acham que você está na casa de uns amigos ouvindo musica, eles estão te ensinando a fumar. Eu não culpo eles, a curiosidade foi minha. Afinal a vida é uma merda curta demais para deixar de se experimentar essas porcarias. Dizem que o cigarro pode diminuir até dez anos da sua vida, mas o que serão dez anos quando eu estiver velho como um maracujá.
A nossa geração não liga muito para o futuro, somos um tanto inconseqüentes, não é porque não queiramos viver, simplesmente somos uma geração experimentalista. Não quero fazer apologia à merda do tabaco, é mesmo uma droga cara. Não te faz nada além de um barato curto, embora bastante prazeroso.
Eram aproximadamente 23:46 quando um amigo nosso chegou com um outro cigarro. Estávamos eu, Laila, Cristina, Marcos e agora David que acabara de chegar. Esse tinha um cheiro diferente. Ele veio rindo, e disse: "Traga aí véio". Nos meus dezesseis anos, era um tanto complicado, eu era um esquisito, eles iriam me deixar fora do grupo se eu não tragasse, mas eu não sabia muito bem o que era aquele cigarro que cheirava algum tipo de flor.
Fumei, como se fosse um cigarro qualquer. Alguns poucos minutos depois todos nós havíamos tragado ao menos um pouco daquele cigarro caseiro. Aí Laila disse: "Ontem um cara disse que queria que eu fosse o chuchu dele". E mesmo não entendo bem a piada, ri, ri pra caralho, como nunca tinha rido antes. E todo o resto do grupo quase chorou de rir. "Chuchu hahahaha" riam todos.
Aí David passou uma garrafa de cerveja pro Marcos, ele tomou um grande gole no gargalo e arrotou bem alto. Pessoas que passavam na praça onde estávamos sentados olharam torto pra nós. Rimos a doidado. David disse: "Seus quadrados!"... E rimos mais ainda, apontando pro casal que passava.
Eu fui me aproximar de Laila, mas perdi a força nas pernas pela leve tontura e cai em cima dela, caindo na grama da praça. Ela riu e todos os outros pularam em cima da gente. E nós ficamos lá, deitados olhando pro céu. Enquanto todo o mundo passava olhando a gente torto.
David dizia: "Vocês vão fazer o que agora que acabou a merda do 2º grau?", a gente pensou, mas ninguém soube responder realmente. Ninguém tinha a mínima idéia.
Marcos me passou a garrafa, e eu virei ela, devo ter tomado umas 100mls de uma só vez. Arrotei feito um porco também. David riu até peidar, aí todo mundo riu alto de novo.
Eu deitado em cima de Laila, senti um desejo incontrolável de sugar os lábios dela, de meter a minha língua até onde ela alcançasse na garganta dela. Ela olhou bem fundo pra mim, então beijei ela, com toda vontade e desejo que tinha há quase dois anos. Ela levou minhas mãos até os seios dela, os quais acariciei como se fossem dois frutos raros. E continuei beijando-a como se fosse a mulher mais linda do mundo, e naquela época eu realmente achava isso.
Eu não tinha visto, mas Marcos já beijava Cristina há tempos. David como era gay só ficava rindo da nossa cara de idiotas.
Ao longe, falando de algum lugar ouvimos uma pessoal que parecia mais chapado que nós berrarem: "quatro... três... dois... um" E ploct, ploct, um monte de champanhas sendo estouradas. Ficamos todos os cinco deitados na grama, virados agora com a cara para o céu. E os fogos começaram a estourar. E na nossa visão turva os fogos pareciam explosões debaixo d'gua.
Fui embora com a Laila, e Marcos, David e a Cristina foram para o albergue deles. Nessa noite, eu e a Laila transamos feito loucos. Não lembramos que havia camisinhas, nem doenças. Nem nada. Foi sexo a madruga inteira, despreocupado. Ardente e apaixonado, ao menos para mim.
Cada um foi para uma universidade.
Mas combinamos de nos encontrarmos aqui no fim da faculdade. Nós cinco. Os cinco.
Mas cerca de seis meses depois recebi uma carta da Laila dizendo que precisava falar comigo, então fui até São Paulo, na USP, e vi que ela estava com uma barriga um pouco grande. A gente não precisou conversar muito. Acho que a gente se amava.
Nos casamos na primavera, minha mãe aprovou, os pais dela nem tanto. Eu larguei a faculdade pra poder sustentar o bebê. Tudo ia bem de certa forma. Mas o pai dela expulsou ela de casa quando descobriu sobre a heroína. Quis levá-la pra morar comigo, mas minha mãe não aceitou, então sai de casa por vontade própria.
Foi ai que reencontrei David, e entrei no mesmo ramo que ele. O dinheiro começou a entrar muito rápido, me assustou de início. Mas ao menos o bebê que estava pra nascer teria uma ótima vida.
31 de dezembro.
Não fomos ver a queima de fogos. Fomos ao velório de David. Ele veio alcoolizado até Londrina no dia 30. Soubemos da notícia na virada da madrugada. Seu ultimo desejo era ser cremado.
Estávamos eu e Laila com nosso bebê de um mês. Marcos viera, mas Cristina estava internada numa clinica pra dependentes, a mãe dela colocara ela lá depois que ela teve O.D. no início da primavera.
Ficamos lá, sentados em sofás vermelhos. E o pior de tudo é que os pais de David não queriam por "Tonight, tonight" para se despedir-se de David, o que ele deixara no testamento.
Quando todos estavam distraídos, eu, Laila e Marcos, roubamos a urna onde estavam os restos de David, e fugimos. Fomos até a cidade vizinha, Maringá. E dentro do lugar favorito de nosso amigo falecido, começamos a despejar suas cinzas, e no som do carro de Marcos tocava: "Você nunca pode partir sem deixar uma parte da sua juventude... O impossível é possível nesta noite... Nesta noite.
E tudo acabou com cinzas.