Por que tardes chuvosas são tristes

Sim, ele estava confinado. Preso e engaiolado; como um frágil pássaro que tem sua liberdade tirada por ter cometido o terrível pecado de ser belo. Mas não, o rapaz não era assim formoso: seu cabelo escuro estava sempre desarrumado, seus olhos castanhos possuíam um ar de desencanto, sua boca grande não trazia nunca um sorriso.

Joaquim estava sentado numa velha cadeira de madeira a olhar pela janela a chuva cair. Fitava cada pingo despencar, cair sobre o solo, e se desfazer, seguido por outra gota, que mantinha aquela rotina. Ele até mesmo podia ouvir cada gota; aquela melancólica sinfonia só era interrompida pela sua lembrança de outrora; o passado não era tão frio e solitário quanto aquela gaiola. Entorpecido por seus pensamentos nostálgicos, pôs-se a lembrar:

- Não vens? Sussurrou ele.

- Estou indo - respondeu ela com um tímido sorriso - Impaciente!?

- Pra te ver, sempre.

Maria Helena, sentindo-se lisonjeada pelo simples galanteio, sorriu novamente. Estendeu sua pequena e delicada mão para o rapaz, e ambos saíram pra um pequeno passeio no bosque.

Naquela tarde sua beleza se excedia: suas mãos eram cobertas por finas luvas brancas de cetim. Seu vestido rosa com detalhes em branco não era vistoso, porém, realçava suas curvas e formas bem definidas. Seu longo cabelo louro estava preso por um chapéu. Sua pele ficaria logo vermelha se não fosse por sua pequena sombrinha que carregava. Seu modo de trajar e seu caminhar não eram nada espalhafatosos; sua beleza era simples, e dizem que aí está a maior das belezas.

Joaquim sentia-se envergonhado por andar ao seu lado; trajava-se formalmente: calça preta e uma singela blusa branca, sobre ela, um colete. Estava também despretensioso, porém, não trazia consigo a beleza que ela emanava. Ele se vestia de um modo demasiadamente simplório.

Mesmo envergonhado se pôs a andar de braços dados com ela: sua timidez era facilmente sufocada pelo êxtase. O Criador, supremo em sua magnanimidade, concedera que um pecador pudesse caminhar ao lado de um de Seus anjos.

O passeio era costumeiro não só ao casal. Todos os moradores dos bairros próximos ao Bosque da Princesa gostavam de passar algumas horas lá quando podiam. O bosque exalava serenidade, era um refúgio, um santuário, onde o mais impiedoso problema era barrado na entrada. Assim todos os que podiam iam até lá repousarem, e deixavam suas caóticas vidas para desfrutarem de algumas horas de prazer.

Ao andarem no meio de grandes e centenárias árvores, ouviam a doce e suave melodia que era entoada pelos pássaros, esquilos e alguns patos que nadavam no lago central.

Joaquim e Maria Helena cumprimentavam os conhecidos, agradavam as crianças... passaram horas revigorantes lá, até que o Sol, já cansado de brilhar, colocava-se a oeste, indo repousar, e dando o último espetáculo, deixando o céu num tom levemente alaranjado.

O tempo havia passado e já era hora para irem embora, quando subitamente uma chuva começa a cair. Gentil e amável, ela rega as árvores e plantas, e obriga o casal a correr para debaixo de um velho carvalho. Olhavam a chuva cair enquanto falavam:

- Obrigada pelo passeio. Diverti-me muito, disse a moça enquanto enxugava com seu lenço o rosto um pouco molhado.

- Não precisas agradecer-me, respondeu ele. Eu lhe peço desculpas; a chuva não tinha sido prevista.

- Não há problema algum, retrucou ela. Na verdade foi um belo presente da natureza fechar o dia assim.

Maria Helena apreciava a beleza taciturna da chuva. Ela se lembrava de sua infância, e se um pingo lhe molhava o rosto, sentia-se viva novamente. Fechou então os olhos e começou a sentir a chuva: o vento docilmente lhe bagunçava o cabelo, o cheiro da terra molhada...

Joaquim pôde então contemplar toda a sua beleza. Devagar, uma centelha começou a queimar dentro dele. Sentiu-se encolerizado. No seu peito ardia o fogo do desejo, a chama da posse, o inferno do ciúme. Naquele exato momento sentiu que ela o pertencia, que seus gestos carinhosos e infantis só poderiam ser dirigidos a ele, que sua alma estava para sempre atada a dele por uma corrente inquebrantável de amor e doença. Sim, doença. Ele a amava tanto que aquilo o fazia doente. A simples e vaga idéia de que poderia um dia vir a perdê-la, desconcertava-o totalmente.

“Posse, posse. Ela é minha. Sua alma me pertence”, dizia para si mesmo. A cólera e o fogo em seu peito já não apenas ardia, mas sim, explodia; como se uma dezena de vulcões despertassem todos no mesmo instante.

Suas mãos trepidavam, as pernas já não estavam firmes como antes. Sua testa pingava suor e em seu peito um misto de amor, doença e cólera. A sandice lhe tomava conta totalmente. “Deus! Ajuda-me! Se fui eu feito a imagem e semelhança de Ti, mostrai para mim a saída desse turbilhão. Explica-me o que sinto para que possa controlar-me.”

Seu coração já não batia tão forte. A firmeza estava voltando vagarosamente as suas pernas. Fechou os olhos e respirou fundo. Abriu-os e viu em suas mãos o canivete que ele usara meses atrás para desenhar um mal-feito coração naquele mesmo centenário carvalho, com o seu nome e o de sua amada dentro dele. Naquele mesmo lugar foi que meses atrás ele a beijou pela primeira vez, ainda se lembrava da meiga colisão de sua boca com os pequenos e delicados lábios dela, ainda podia sentir o gosto de seu beijo. Fora ali que as primeiras promessas de amor eterno tinham sido feitas. Ali foi onde ela disse que para sempre seria dele. Ali ele estava pronto para fazê-la cumprir a promessa. Sua mão não mais trepidava; nela ele olhava o canivete cerrado, firme.

A meiga garota abriu seus olhos, com um sorriso nos lábios foi lhe dirigir a palavra quando parou atônita. Aquela macabra cena paralisou-a: os olhos dele estavam brilhando com um fogo intenso. Eles eram tão penetrantes, tão cruéis, tão... assassinos.

Sua boca foi tapada por uma das mãos do seu namorado apaixonado, o pavor tomou-lhe conta e antes que pudesse esboçar qualquer reação sentiu sobre seus delicados pezinhos uma torrente vermelho vivo cair.

O grito foi contido, ou nem sequer fez algum esforço para sair. Apesar de não ser uma tarde fria, o pequeno corpo da garota tremia como se estivesse nua em uma tempestade de inverno. A vida saia para fora dela; como rios procuram incessantemente o mar, o sangue saía sem parar pelo buraco causado pela estocada do canivete. Houve então outro golpe, tão forte, tão profundo, tão letal quanto o primeiro. O namorado, doente pelo gérmen da paixão, não parou de golpear o corpo da amada que agora já sem vida caída no chão molhado. Não parou até totalizar sete ferimentos. Sete que na bíblia significa inteireza celestial, mas não havia nada de divino naquela cena.

O sangue misturava-se com a terra e a água, formando uma imensa poça de cor indescritível. Alguns pingos de chuva caiam sobre o rosto da pobre menina, tentando fazer com que se sentisse viva novamente, mas nem a natureza tem o poder para ir contra aquilo que o homem destrói.

“Acabou. A promessa está cumprida. Nunca ela será de ninguém, nunca ela sorrirá para mais ninguém”, pensou Joaquim, que no fim sentia-se aliviado por ter acabado com aquele fogo. O que não lhe vinha na mente, pois estava cegado pela loucura, é que ele também nunca mais sentiria o prazer de vê-la feliz. E qual tinha sido o crime imperdoável que ela cometera? Esse castigo se dava por Maria Helena ser bela, e portar-se belamente. Por amar incondicionalmente um rapaz, que lhe retribuía o amor à sua maneira.

Ele estava pronto para se juntar definitivamente à amada: tiraria sua vida ali. A morte selaria o compromisso que aceitaram, ficariam juntos para sempre.

Pegou então novamente o canivete, estava pronto para ferir-se quando foi contido por dois guardas que rondavam o parque.

Ele foi desarmado e imobilizado pelos homens que ficaram horrorizados com aquela cena pavorosa.

Ao lembrar do seu passado ele sabia que tinha sido feliz, que antes não estava preso em uma clinica psiquiátrica com um alienista. Pelo menos Maria Helena seria eternamente dele, e a lembrança disso fazia com que suportasse aquelas tristes tardes chuvosas.