CAIXA ROSA

Naquela madrugada, não conseguindo dormir, Helena, desassossegada, levantou sorrateira, foi até a cômoda, pegou a caixa rosa, aquela feita através da técnica de découpage, presenteada pela amiga Izabel, no seu último aniversário. Levou a caixa até a sala, a emoção tomou conta e um suspiro profundo a exauriu ainda mais, lágrimas sulcaram sua face. Abriu a caixa num ímpeto, no seu rosto, o medo estampava a sua marca distorcida, férrea.

Tirou de dentro algumas lembranças, tais como o colar de perólas falsas, presente do seu primeiro namorado, no dia do baile da formatura da amiga Melissa. Dessa maneira, deixou o silêncio tornar seu cúmplice. Suas mãos resvalavam em objetos inusitados, seus fiéis companheiros. Mas, ao ver o envelope branco, sua cabeça caiu para trás. Ficou imóvel por um longo tempo, amassando o papel em suas mãos, sem, contudo, destruí-lo por completo.

As letras crivadas ali pareciam iluminadas a néon, ela olhava seduzida, arrebatada, o medo enlouquecia suas entranhas, a verdade contida no papel bombeava em seu inconsciente e a fazia rastejar pelo chão encerado da saleta. Sentia-se usurpada. Como aquilo podia estar acontecendo? O seu peito arfava, um gemido ascendia do seu âmago; inóspito, seco, semelhante à aridez incrustada no deserto.

O inferno explorava os recônditos da sua alma e o demônio ganhava terreno naquele redemoinho de sentimentos amedrontadores. A loucura tomava conta e inflamava o seu corpo. Junto, a desesperança comia o pouco de consciência que lhe restava.

Imóvel, esperava que toda aquela situação modificasse, o chão duro parecia carregar o seu corpo úmido. E o visualizava coberto pelas metástases, roendo, desordenadas, evoluindo, infiltrando por cada célula do seu corpo.

Tudo ruía ou roía? Não sabia identificar mais onde começava o papel e terminava o seu corpo, agora, ela era o papel e o papel era ela. Boquiaberta diante desse fato, recuava, investia ,sentia, lia, enfim, as palavras lá escritas estavam grudadas na sua pele ressecada, cheirando a podridão, exalando o perfume da morte.

Que verdade podia ser esta a lhe atormentar? Como suportar ficar frente a frente a essa expressão do pensamento consciente, transubstanciada em uma expressão gráfica tão agressiva? Nesse mesmo instante, abriam-se portas de corredores escuros, sem um único feixe de luz. Entorpecida, ela deixava se anelar naquela escuridão, temendo sentir uma ponta de coragem naquela alma necrosada. Temendo colocar esperança no seu interior, e voltar a questionar; o que agora lhe parecia inquestionável.

Desde que aquele papel chegou a suas mãos, algo nefasto tomou conta da sua vontade de viver. Segundos, minutos, horas, dias? O tempo agora estava parado, o sol agora estava parado! Suas mãos ainda apalpavam o conteúdo da caixa rosa, e inesperadamente sentiu a estranheza de segurar aquele objeto inusitado. De repente, aquele abismo de silêncio, no qual se via envolvida, começou a tomar forma, e aquele estado amorfo se desfez. A sua imaginação correu célere, destrancou lembranças e no seu rosto um tosco sorriso ameaçou se formar. É que ela se percebeu estar sentada embaixo de uma lona colorida, hipnotizada, com as inúmeras atrações que acontecem no picadeiro de um circo.

Músicos, bailarinos, ginastas, amestradores, mágicos e palhaços, isto mesmo, palhaços, com enormes bolas vermelhas no nariz, vestindo roupas frouxonas, coloridas, repletas de bolas, flores, enormes babados, encolhendo o grande colarinho e escondendo o seu rosto risonho, para depois reaparecer fazendo caretas, piscando, tropeçando no seu enorme sapato, soltando ventos esfumaçados, fazendo piruetas, equilibrando em uma corda bamba imaginária, alegre e triste ao mesmo tempo.

Ela ousou colocar aquele objeto inusitado, aquela bola vermelha no nariz, e este contato acirrou em sua memória uma danação inesperada e numa rapidez vertiginosa a imagem de uma maravilhosa troupe de palhaços se concretizou a sua frente: Arrelia, Chincharrão, Figurinha, Piolim, Pimentinha, Henrique, Bozo, Veneno, Torresmo, Pururuca, Piccolino, Carequinha, Doutores da Alegria.

Então, ao abrir os olhos, ela se percebeu gargalhando do seu próprio besteirol. Ela agora estava colada à imagem de um bufão, piruetando em torno dela mesmo, tendo achaques de risos, ouvindo seus próprios chistes. Era inegável o que ela sentia, pareciam longínquas todas as agruras do agrilão, por ela experimentado e atormentado a sua consciência ainda há pouco.

A própria divindade transvertida de alegria controlava os seus impulsos e a incitava a viver. Tornara-se uma bacante sem haver ingerido uma única gota de vinho. Havia completado a metamorfose, deixado de lado os medos, as neuroses deflagradas por aquele malfadado documento. Então rasgou o pedaço escrito: rastreamento de metástase, e o devorou.

Voltara a ser uma criança, nua, sem temores, inocente. Sua vida a partir desse momento não seria levada tão a sério, teria liberdade em fazer escolhas, amaria seus pais, familiares e amigos sem interferir nas suas vidas. Faria da alegria um auxílio para florescer, igual à flor de lótus, branca, imaculada emergindo das águas lamacentas.

A partir desta descoberta ela se tornou a palhaça Espoleta, e levou a alegria aos asilos e instituições filantrópicas da sua cidade. Sem dúvida, ela criaria no seu ser interior o seu próprio futuro.