JAIME, HADES E O CANUDINHO

- Da primeira vez foi assim, eu estava correndo com ele na mão e reconheci minha primeira vítima. Era um senhor já de certa idade, usando óculos de grau, daqueles pequenos que se colocam na ponta do nariz. Eu já estava a uma certa distância dele, ele distraído com seu jornal e eu com a arma do crime na mão, não tive dúvidas, corri em sua direção esbarrei com uma certa violência, tinha que ter alguma violência no ato, pelo menos era o que eu pressupunha. Ele se espantou, deixou cair o jornal dobrado na página de cruzadas diretas, ele se desequilibrou também e chegou até a me xingar, não me lembro do que, cravei o objeto nele, larguei-o e corri sem olhar para trás.

- O que o levou a fazer isso?

- Não sei ao certo, me deu vontade! Queria transformar a vida das pessoas de alguma maneira.

- Que maneira de transformar uma vida!

- Da segunda vez foi ainda mais interessante!

- Mais você não voltou ou quis ao menos saber o que aconteceu com o velho?

- Vejo desta maneira, cada um faz a sua parte. Eu fiz a minha.

- E se você não conseguisse “completar o serviço”?

- Pouco me importa. Me interesso pelo ato.

- Então conte o que aconteceu na segunda vez.

- É mesmo, já estava me esquecendo. Era uma mulher, na verdade desta vez eu queria que fosse uma mulher. Tinha escolhido até uma cor especial para ela, talvez isso significasse algo para mim ou para ela, se é que ela iria ter tempo de pensar nisso.

- Como ela estava?

- Sentada em um banco na praia, lendo um romance. Ela tinha exatamente o perfil que eu tinha imaginado. Um encaixe perfeito. Não teve nem muito tempo de esboçar uma reação, apenas me aproximei rápido e sorrateiro, fiz o que tinha que fazer e continuei minha corrida, mas com um sabor de vitória e aquele sorriso no canto dos lábios.

- Você não tem idéia do que você fez não é verdade?

- Para dizer a verdade eu não tenho idéia de onde estamos. E muito menos de quem você é.

- Eu sou Hades, mas continue agora está ficando interessante. Teve uma terceira vez?

- Sim, mas algo deu errado na terceira vez, não sei ao certo o que, mas...

- Continue contando, talvez eu possa lhe ajudar a relembrar.

- Bem, eu estava me sentindo meio incapaz, sabe como é, apenas um velho e uma mulher, confesso que cheguei a cogitar alguma criança, mas seria o cúmulo do absurdo. Ela não entenderia.

- Pelo menos você tem consciência.

- Sempre.

- Então...

- Então resolvi me arriscar, me desafiar. Escolhi um homem que parecia ser uma pessoa comum, mais ou menos uns 40 anos, porte atlético, cabelos grisalhos, tênis de jogging, meias, shorts e camiseta e umas luvinhas pretas de levantar peso. Estava correndo como eu. Eu já havia feito minha escolha, mas quando eu parti para a ação percebi que algo poderia dar errado.

- Agora está ficando realmente excitante.

- Não sei, ele deveria estar transtornado com algo. Senti em seu olhar um ódio, mas era tarde. Eu já havia partido para a abordagem e ele reagiu.

- E você? O que sentiu?

- Como eu me senti? Responda-me você mesmo, você sai de sua casa com a intenção de ajudar, de transformar a vida de uma pessoa e ela te responde com ira, com ódio, com agressão física.

- É a violência das ruas, os tempos modernos.

- São uns animais isso é o que eles são.

- Mas ele chegou a lhe agredir? – Perguntou Hades com um sorriso entre os dentes.

- Se chegou a me agredir? Ele me surrou, até que eu perdesse a consciência. Em plena luz do dia e ninguém para me ajudar!

- E depois?

- Depois eu vim parar aqui. Afinal onde é aqui?

- O inferno.

- E o que é que eu vim fazer no inferno?

- Você está aqui por conseqüência de seus atos.

- É este o destino que merece ter uma pessoa que só pensou a vida toda em ajudar os outros, sempre com boa intenção?

Neste momento um coro formado por um número infindável de vozes, ecoou pelas paredes do recinto. – De boa intenção o inferno está cheio!

- Como eu saio daqui?

- Isso vai depender de você, meu caro Jaime.

- Na verdade você deve ser o ...

- Diabo, se você prefere assim, eu já me acostumei.

- Você não é tão feio quanto lhe pintam. – Exclamou Jaime em tom de brincadeira.

- A beleza está nos olhos de quem vê. – Respondeu Hades de pronto.

Jaime já começava a se distanciar, quando tomado por curiosidade se virou e perguntou.

- Se eu realmente morri, estou realmente no inferno e você é realmente Hades, porque me fez contar toda a história se já a conhecia pelos fatos?

- Gosto de ouvir as versões. E se quer saber minha opinião, na sua versão você parece muito mais criminoso do que realmente é.

Jaime agora já mais conformado com a sua situação se distanciava quando desta vez fora interrompido por um chamado de Hades.

- Você gostaria de saber o que aconteceu com suas “vítimas”?

- Sim.

- O senhor, que você preferiu chamar de velho, continuou lhe xingando meio que resmungando, gesticulado e dando negativas com a cabeça, recolheu o jornal e o canudinho, ajeitou os óculos, deu-o como um louco e jogou o canudo na lixeira a poucos passos.

- Não se poderia esperar muito de um velho resmungão fazendo palavras cruzadas na orla da praia. No mínimo ele deve ter perdido as calças jogando damas e resolveu descontar em mim. Mas e a mulher?

- Essa você acertou em cheio.

- Sério? Me conta como foi!

- Ela tinha acabado de brigar com o namorado de muitos anos e desmarcar a data do noivado. Se enfiou num romance “Julia” se sentindo o pior dos seres humanos. Quando ela reparou no canudinho cor-de-rosa caindo sobre seu livro, ela pensou que fosse o noivo. Viu você correndo já ao longe, fechou o livro pensativa usando o canudo como marcador. Após ler “e foram felizes para sempre” pegou o telefone, se desculpou, declarou juras de amor e eles devem estar se casando neste momento.

- Eu sabia que poderia ajudar alguém, só não entendi por que me aconteceu aquilo na terceira vez.

- Eu detesto amarelo! – Proclamou Hades estendendo a mão direita com luva preta de levantar peso, o canudo sobre ela.