Parte 2 - Crônicas de um Homem do Tempo - Capítulo 5821 - O Atentado
"Você não pode me evitar,
Estou aqui para ficar,
Para sempre…"
Puff Daddy - Come With Me
O tiro foi realmente certeiro, o jovem de gravata cor vinho, camisa social e calça cinzenta pensa, observando a bala, parada, flutuando em pleno ar, suspensa em um ponto de seu trajeto, antes ávido de velocidade, sangue e morte.
Ele olha em torno de si e vê o tom azulado, levemente borrado e indefinido das imagens, os olhares estáticos das pessoas, detidos no tempo, como se estivessem imobilizados em uma fotografia antiga. Ele sabe que é o único que pode se mover nas ocasiões em que o tempo pára e o mundo emudece, seguindo seu próprio desejo. Ele também é o único que consegue andar em frente quando o tempo retrocede, e, mesmo desconhecendo a vida das outras pessoas, ele sabe que o caminho do tempo corre em um único sentido para eles, muito diferente do que acontece consigo.
Por que o tempo parava, ou voltava, ou andava devagar, conforme ele desejasse? Por que as imagens ficavam indefinidas, como se estivessem cobertas por uma espécie de neblina pesada, que parecia se originar delas próprias, e por que o ar em seu redor se tornava tão... duro... e era tão mais árduo de se mover nestes momentos? E por que justo ele possuía este poder de deter o tempo e mudar o curso da história?
Não fazia a menor idéia de como isso acontecia. Podia ser uma daquelas coisas de Deus, que não têm explicação, como diziam as outras pessoas. Era um dom supremo, como a arte máxima de um mestre da pintura, da música... ou do assassínio.
Ele volta a prestar atenção na bala imóvel, circundando-a devagar. Levemente azulado, o bólido tem seu trajeto já percorrido cercado por linhas visíveis de ar e som, impelidas para os lados pelo seu deslizar rotativo, mudas e fixas naquele instante em que o futuro não chega e o destino encontra-se em aberto. É uma bela imagem, e, em se observando de certos ângulos, as espirais deixam a impressão de tratar-se de uma escultura, uma ponta de parafuso feita de vento parado, ou, deixando-se guiar pela imaginação, um pinheiro de natal esculpido em gelo transparente.
Algo, que ele também não sabe definir ou explicar, o incita a intrometer-se no curso da história, impedindo que aquele projétil de belo rastro atinja o alvo ao qual está destinado.
E o alvo é um certo homem. Um homem importante, que está destinado a governar este país onde o jovem agora vive. O mesmo homem que ele se põe a admirar, dando meia volta, no alto do palanque, parado, dedo em riste, uma foto impressionante do exato momento em que sua oratória exerce maior efeito na multidão de correligionários que o ovaciona, chapéus lançados para o ar, em eterna ascensão.
Alguém apertou o gatilho da arma de fogo de precisão, um centésimo de segundo atrás, e o jovem viu, em um futuro que virá em breve, o homem mais importante daquele país, naquela época, ter sua cabeça estraçalhada pelo tiro.
Ele também viu a comoção das pessoas, a loucura, o desespero, o fim da esperança, pois aquele homem cujo cérebro espalhara-se pelas roupas dos abismados seguranças e partidários que jaziam em redor do corpo que caía, constituía-se, naquela época, em um marco para seu país.
Sua campanha política para a presidência daquela nação fora excepcionalmente bem sucedida, trazendo fé e esperança às pessoas, em tempos de aflição e fúria, deixando os opositores de joelhos, dúzias de pontos percentuais atrás nas pesquisas. Sua visita parava o comércio. Sua chegada tornava as ruas intransitáveis. Seu punho cerrado elevava os ânimos e sua voz forte representava o clamor de toda uma nação. Seu sorriso e confiança eram a própria personificação de um futuro melhor.
Não, o jovem pensa, um homem assim não merece morrer, enquanto eleva o braço e toca o projétil imóvel, a quase dois metros de altura, girando-o alguns poucos graus sobre seu eixo. Ele já interferiu no movimento de balas paradas antes, e sabe que um artefato com aquele formato, elaborado para seguir sempre em linha reta, perfurando o ar, na velocidade de rotação e de projeção em que se encontra, ao ser deslocado de seu eixo durante uma parada de tempo, encontrará uma série de novas forças bloqueando seu trajeto, logo que o tempo voltar a se deslocar para o futuro, as quais tornarão sua trajetória tão instável quanto se ele tivesse batido em alguma superfície sólida paralela e ricocheteado para longe.
Já havia desviado de tiros destinados a ele mesmo, usando técnica semelhante. A bala perderia velocidade, e seguiria em frente, sem ter, contudo, a mínima chance de acertar o alvo, em virtude ao desvio de seu eixo.
E ele cumpriria sua boa ação do dia... Mesmo não dando muita importância às outras pessoas, de vez em quando, gostava de agir como herói e salvar o dia...
- Política, definitivamente, não é como a pintura, a música ou o assassinato... - disse uma voz abafada e distante, rompendo o silêncio - Mesmo contando com grandes mestres, não é uma arte.
O jovem virou-se olhando em redor, a princípio assustado, ouvindo os estampidos roucos e atrasados dos passos do homem que se aproximava, os quais explodiam em linhas de som levemente azuladas partindo do solo.
Imediatamente reconheceu o fenômeno, respirou fundo e fez uma careta, revirando os olhos para o alto. Não era sempre que apreciava a aparição da forma material de sua própria consciência, interrompendo seus assuntos.
- A política está mais para o comércio e a negociação, o que em nada lembra a arte... Olá. Pelo visto, você anda metendo seu nariz onde não é chamado de novo.
O jovem fez meia volta para encarar a si mesmo, bem mais próximo do que dava a entender a voz, vindo do futuro.
Olhou-se como quem vê a própria imagem em um vídeo. Barba por fazer, seu reflexo trajava a mesma gravata cor vinho, camisa social e calça cinzenta, tudo isso parcialmente coberto por um sobretudo de um marrom que beirava o cinza.
- E não é o que SEMPRE fazemos? O que você quer? - perguntou, ouvindo o ecoar lento da própria voz e vendo a projeção desta remexer o ar denso.
- O que nós queremos - disse seu segundo eu, parando debaixo da bala imóvel e examinando-a com um interesse genuíno, com a voz repercutindo depois da fala, como em uma dublagem em um filme de péssima qualidade. - Nós... eu e você, queremos que aquele homem morra.
- O quê? - a voz do jovem esculpe o ar, e ele eleva os ombros, exaltado, apontando para o alvo no topo do palanque. - Queremos que aquele homem morra?
- Sim, queremos - disse a voz tardia de sua cópia.
- Aquele homem... ele representa a esperança de toda a nação no fut...
- AQUELE homem representará o fim dos tempos!
Agredido na face pelos golpes de ar visíveis produzidos pela exclamação de sua contraparte, o jovem baixa o braço, indeciso quanto ao que dizer.
Por fim, após instantes em que o tempo não passa, ele pergunta: - o que você sabe?
- O suficiente - responde o outro, caminhando lentamente, sem rumo, olhando para os lados. - Ele fará coisas boas, decerto... E fará coisas ruins. E, tanto ele quanto outras pessoas farão coisas péssimas, e o mundo inteiro pagará por isso. Inclusive eu... e você...
O jovem baixa a cabeça. Ele conhece a voz que vem do futuro, bem como a voz do passado, e tem consciência de que jamais mentiria para si mesmo, exceto em casos em que isso lhe fosse benéfico, mutuamente, a toda e qualquer de suas diversas encarnações. Súbito, ele se lembra do que fez. - Mas... eu já mudei a trajetória da bala!
- Eu sei! - Seu outro eu responde, posicionando-se a seu lado e colocando a mão em seu ombro, empurrando-o sutilmente para frente. - O tiro já se perdeu.
- O homem vai ficar vivo, então... - o jovem se exalta, mas logo se torna mais calmo, franzindo o cenho. - Imagino que vocês tenham algum outro plano.
- Sempre temos, meu caro. Cedo ou tarde, antes ou depois, sempre encontramos alguma saída. Venha comigo, e eu lhe explico a história toda pelo caminho. Acontece que, com a renúncia do vice-presidente, após a morte do candidato e a eleição, um de seus assessores vai acabar assumindo o cargo, através de joguetes políticos e armações, coisas que sempre acontecem, e sei de fontes fidedignas que este novo presidente vai jogar o país em uma situação de insatisfação que vai culminar em guerra civil...
- Então... quer dizer que o candidato ainda vai morrer?
- Claro. Estamos a postos para que isso aconteça.
- E... a bala que eu desviei...?
- Irá exatamente para a cabeça deste tal assessor. Morte instantânea. A boa ação do dia que se concretiza, e que vai culminar em um período de precaução política, paz armada temporária ou algo que o valha. O que importa é que, com tal desfecho, poderemos cuidar de nossos negócios sem termos que enfrentar maiores problemas. Você sabe que SEMPRE deve confiar em si mesmo...
O jovem sorri, e continua caminhando e ouvindo seu outro eu do futuro, enquanto ambos seguem para longe do público.
De repente, a cena avança. As auras somem e as imagens assumem suas verdadeiras cores, tornando a se movimentar. Os ruídos estacionados voltam a repercutir, explodindo em um furioso mar de sons. Duas cabeças explodem, no topo do palanque, e a platéia do comício enlouquece em pânico, instaurando uma correria frenética. Cercados pela multidão de correligionários, o candidato à presidência e um de seus assessores caem, este último alvejado por uma bala vinda da direita, ao passo que a cabeça do primeiro voa para trás, atingida por um tiro vindo de cima.
Pessoas sacam armas, sem saber para onde atirar. Outras simplesmente desmaiam. Outras ainda berram umas com as outras. A comoção as assalta, a loucura, o desespero, o fim da esperança. O tumulto prospera e a polícia surge para evitar o caos, seguida por uma ambulância cujas sirenes soam estridentes.
Próximo dali, em dois pontos distintos, escondidos respectivamente em um prédio à direita e em outro à esquerda do palanque de comício, dois homens jovens e absolutamente iguais, vestidos cada qual com as mesmas gravatas cor vinho, camisas sociais brancas e calças cinzentas, desmontam suas armas de precisão, encaixotando-as dentro de malas idênticas, e somem, para nunca mais serem vistos.