A menina

A menina sobrava alegria. O presentinho de natal, que lhe deram, era o máximo de se expressar: uma bonequinha desaveludada, riscadinha, de pano, toda-encantável. Os outros presentes se afiguraram escusados, de inútil parecer, os olhos nem focavam método. Mas a bonequinha, - ah! -, sim, extração de felicidades, na roupinha vermelho-verde. O contentamento até se chegara escandaloso, de muitos risos, entre o quarto, depois a sala, e as coisas e lugares. Nós quase que poderíamos fotografar a beleza da menina brincando, no seu modelito de amor enfeitado.

Nunca que se sabia sofrer, sozinha, com a boneca, estando. A meninice, nela, se efetuara, categoricamente; descuidadamente, ela não sabia envelhecer mais. Todos os verbos eram feitos de pano, a pura seda, e perfeitamente alinháveis. O sério caso. O gesto de ajeitar o vestidinho, inquietava, desconcertava noções. Aquilo que nunca lhe ocorrera, nem nunca se viu. O passado era bom. De certa forma, ela se sentia incoerente, com as pessoas olhando, a retratando, obedecendo com os olhos aos seus movimentos cegos de criança. O medo se fez? Sim, se dizia.

Debruçaram-lhe pavores, de repente. Os olhos regalados, num correr, o chão, depois tudo, de repente, tudo, o chão, até o que se não via, no imediato, nas circunstâncias exatas, exprimíveis, de todos os olhos observáveis. Era o de oh. A metade da coisa se fazia horrores, a outra era um continuado de movimentos leves, parciais, que cortavam as faces das pessoas, diabadas - em tudo ela sentia o infausto. Aí'stá o eco do espírito degolado, interditado, não-gritado, aquilo sempre afetado. A menina saudadeava cheiros gastos. A bonequinha, na felicidade inversa, afigurou-se-lhe hedionda, horrosa, de uns olhos sangrentos e violentos. Ela quis porque quis dissipar, mas os outros, olhavam, nas mãos, a boneca - ai, credo! - pela janelinha do apartamento. O informe tomou conta do seu coração palpável, pequenino, no grande medir do medo. Era o de se correr para sempre, num inventado voar disparatado. Mas, não: ficou quieta, imóvel, com o silêncio nas mãos.

Mas não que podia entender, jamais. Seria de ser, daqui em diante, que todos os brinquedos seriam doentes, enormes, maus? O que não sabia, e esforçava-se para entender, apressadamente. Ela se espavoria mais e mais. Estava de ser para sempre.

Os pais, portanto, deram ordem sensata. A menina precisava ir deitar-se; brincasse mais amanhã, depois da escola - não, que estava de férias, eles não sabiam? - , depois das tarefas. A mãe era mais cuidadosa, recolheu o macaquinho, o legos, tudo amontoou no cantinho, do lado da casinha cor-de-rosa, já desbotada, quase feia. O pai, um tanto indiferente, já preparava-se em deitar.

É que, por que, tudo isso, então, ela sentia?

- Mãe, disse, joga embora, a boneca. E levantou, correu, para mais não ver.

Ela estacou na porta do banheiro, deixou-se, mais uma vez, se medir quieta, intranqüila no por-dentro. O que estava no interior do banheiro, era enorme. O vaso, a pia, as coisas pareciam grandes demais para ela. Entrou, entrando. Pôs-se a chorar, com os olhos mornos, lacrimosos, numa intensidade crescente e necessária, consertando as pausas com soluços trágicos. A vida não se fazia, acontecia. A repugnância.

Mas o pai podia, ainda, salvá-la da não-aceitação; a mãe também. Retornar ao estado anterior, o da euforia, quando era impossível sofrer, ter nojo, ver as coisas completas, no seu regorjizo íntimo. Como? Não que sabia, nem fazia idéia - ela só sentia essa possibilidade. Pai era homem ocupadíssimo, ágil, já envelhecido, mas um tanto espaçado de amor. Faltara-lhe um sopro de poesia, na sua vida, com todos. Podia se dizer que sofria quieto. Sabia corrigir, sabia ser honesto, mas não sabia as maiores coisas, que ela já concluíra ainda em criança, com o dedinho indicador apontando para lá, no alto, sobre todos os adultos; a mãe, também, nem era tanta, só para os afazeres, meio sisuda, clausurável, tediosa de todos os assuntos. Dava-lhe o banho ríspido, resmungosa:

- Aqui, e aqui, se lava...quieta, esfrega, coisa - soprava fumaças.

- Ah, mãe, que dói...

Ela era odiosa, ou, pelo menos, nos últimos dias, parecia mais odiosa, maior, imensamente fria. O pai também vinha diferente, tanto que fugia, parece, das obrigações. Eles, os dois, brigavam? Sim, podia ser. Mas isso não tinha muita importância, pois ela já desconfiava de muitas hostilidades entre os homens, entre os casais, até entre as crianças. O mundo se esfarelava. Uma manifestação de inimizade invadira-lhe o pensamento, agudamente; tudo e a todos, conhecia. Os homens se entendiam por hipocrisia; com seu pai, sua mãe, não era diferente. O presentinho fora dado à ela com uma tristeza nos olhos, pelos dois. O Natal, às vezes, sofria.

Ela continuava parada, no banheiro.

Enfim, a mãe apareceu para salvá-la com todos os cuidados maternos. Ela parecia querer vomitar, a bonequinha, encardida, no seu pensamentozinho - de terror! Sofria o estável, o asco, as tremedeiras permanentes. A mãe pegou pelo bracinho, ergueu-a, levou para a sala, depositou no sofá, como uma mercadoria. Instantes, passara. Voltou, sentou. Ela trazia um trapo branco nas mãos, e começou grosseiramente a passar na cara da menina, esfregando sem jeito, enxugando as lagrimazinhas, estupidamente. Isso era ser mãe, era ser cuidadosa, esmerar os filhos assim, sempre, os pais? Era um desajeito, um erro de família, um atropelo que evocava a relação mãe e filha; não estava certo, não era assim, não podia ser assim! a menina sabia em algum lugar recôndito, instável, e longe, no núcleo de sua personalidade menor. Secou, passou. A mãe quis deitar. Mas a bonequinha continuava a questioná-la, era perturbável ao extremo.

De repente, ela estava deitada no escuro, agarrando vácuos, impensável e extática: uma maravilha má. Os brinquedos? Estavam ali? De certo que sim. Rompera em gritos enormes, cortando a noite; todos acordavam, vinham ver o que acontecia. A luz, a claridade, o fusco nos olhos, o rosto tão conhecido dos pais, assustados. Calara-se profundamente. O pai perguntou "que foi?". A mãe perguntou "que foi?" Não fora nada, nunca era nada - só esses espasmos. Deram-lhe água doce. Respirou-se mau, pausadamente. Cobriram o corpinho, e foram-se. A luz, novamente, apagada. O escuro ficto de novo.

A menina adormecia às extremas dores, envolvia sonhos de pedra, suspirava extasiada, naquela cama enorme, naquele mundo enorme de muitos homens e brinquedos enormes.

Fernando Marini
Enviado por Fernando Marini em 08/09/2008
Reeditado em 21/09/2008
Código do texto: T1166946