O adestrador de aves
"Há mais no céu e na terra, Horácio,
do que sonha a tua vã-filosofia."
(Hamlet, Shakespeare)
Toma início este conto com a vinda, que já durava pouco mais de cinco anos, de um jovem que era tanto quanto retraído, mas amigo de todas as famílias da vizinhança e que chamava-se Johann.
"Johann, sem sobrenome", era o que dizia quando apresentava-se ou quando era apresentado.
Descendente de uma rica família circense de magníficos russos, que após uma bem sucedida estréia, desaparecia misteriosamente da face da Terra em Janeiro de 1874.
Seus traços, como em sua genética muito mais alto falava a descendência, eram todos de legítimo russo.
O que devo acrescentar aqui, para um público "nobre" e, diria, "distinto", é que apesar de tão pouca idade (na época em que chegou), dezesseis anos, era marrudo tal qual um touro ou mesmo tal qual um homem feito, e que além de uns longos cabelos ruivos e uma alabastrina pele de meter medo, tinha uns pequenos óculos de muito grau e um sem-número de roupas de cor morta e pesada.
Porém, em meio a isso tudo, trazia um sorriso tão enternecedor, mas tão enternecedor, que abrandaria até mesmo a fúria de um demônio, se a seus negros olhos um aparecesse.
Saiu de casa muito cedo, por aconselhamentos noturnos de sua própria mãe, que era encantadoramente russa e que, estando casada com um dos nossos, muito rústico e de pouca inteligência, sofria as maiores atrocidades.
Saiu, pois, dali prometendo vingança o jovem rapaz.
Após três meses de pensão em pensão, por muita sorte ou azar, surgiu em seu caminho uma senhora de boa condição financeira, muito bonachã e religiosa, que em sua morada de largas janelas e portas, vivia só com seu filho retardado mental e com uma cachorrinha a que se acostumou chamar Tute.
Lá chegando o nosso ruivo moço, praticamente só com a roupa do corpo e uns míseros trocados, construiu às custas de um árduo trabalho, em pouco menos de quatro inacreditáveis meses, um verdadeiro império dentro de um minúsculo quarto, sobre o qual pousarei agora o curioso olhar.
Tudo começava a partir da porta (Claro?! Não! Decididamente, não! Há, afinal de contas, quartos interessantes com portas idiotas!), em cuja espessa madeira desenhavam-se os relevos (por ele mesmo feitos) de um cadavérico rosto de alma torturada.
(Como reagia a isso a boa senhora? Não sei, para ser franco. Johann já lhe pagava muito bem para que mantivesse a farsa em que eram os dois parentes distantes. Imagine-se, pois, a hospedagem!)
As janelas infelizmente não eram de madeira, mas característica interessante: O quarto (na boa ou pior acepção da palavra:) parecia um corredor, de tão estreito que era! E quem lhe chegasse a abrir a tão desconcertante porta, daria praticamente de cara com um largo horizonte.
Antes de prosseguir com a descrição, voltarei um pouco no tempo (para divertir-me até): Quando pela primeira vez pisou no lar-doce-lar daquela não menos doce criatura, ela havia-lhe simplesmente falado em despreocupações quanto a pagamento, que Deus a pagaria no Céu e por aí ia a tal história. Mas ele, embora fosse muito novo, sabia que aquilo tudo não iria durar muito justamente pelas mil e duas mordomias que a sua bem-feitora cedia a seu desventurado filho e à cachorrinha e pelo dinheiro que dispendiosamente gastava com velas para acender às inúmeras imagens de santo que tinha na sala.
Por isso, tratou logo o moço de tornar-se o pintor e principalmente encanador oficial de algumas residências vizinhas.
Afora já ter a consciência de xenofilia por parte da maioria dos brasileiros, fez bom uso de seu sorriso e do ar meio galanteador que, contraditoriamente para alguns, herdou de seu abrutalhado pai.
De repente, foi trabalhar por um expediente como bibliotecário e, mais tarde, como empacotador de supermercado, enquanto sua adorável e quase madre-superior, fingindo dormir com um olho e mantendo bem aberto o outro, notava e anotava tudo isto.
Disse-lhe, então, que as coisas ficavam difíceis e... Johann nem sequer deixou que concluísse o pensamento, foi logo entregando-lhe o dinheiro do pensionato para, depois, negociar educadamente com ela a tênue questão do mentiroso parentesco.
Retornando agora à descrição do quarto de nosso amigo, aí tinha-se o privilégio ou o desprazer de ver as paredes e teto todos pintados de preto. Sendo que neste último, havia, pelo menos dez gaiolas presas por ganchos ("Um projeto ainda", segundo o próprio Johann.) e a um canto, havia dois enormes viveiros ("Desta vez, trabalho"! E que trabalho!). A dois passos da porta, o computador, velho companheiro das noites solitárias, fazia-se presente. Não havia televisão nem um som daqueles de por abaixo uma vizinhança inteira. O computador exercia o trabalho dos dois. Na estante, que figurava ao lado de um não menos impressionante guarda-roupa, cheio de gárgulas medonhos, muitos livros, onde aglomeravam-se os grandes nomes da Matemática, História, Química, Física, Biologia e da Literatura, e a outro canto, improvisada mesa de estudo, onde havia um porta-retrato em cujo espaço destinado ao mesmo cingia a fotografia de uma bela jovem a quem o nosso estranhíssimo amigo carinhosamente chamava "Beatrice".
.......................................................
Fazia-se noite, e embora houvesse Johann um quê de alegria nos sorrisos, por ali já assentava-se o espírito que sempre o atormentou e que agora, principiava a fazer-lhe o mesmo.
Só que, desta vez, as investidas salpicavam sua suposta amada.
RESERVADAMENTE FALA:
– Boas noites!
SORRI:
– boas! what's up?
RESERVADAMENTE FALA:
– Bem, obrigado. E tu, como estás?
SORRI:
– bem, muito bem!
RESERVADAMENTE FALA:
– Espero não estar incomodando.
SURPREENDE-SE:
– como assim?
RESERVADAMENTE FALA:
– Podes muito bem estar ocupado(a)!
SORRI:
– é verdade, mas... ñ estou!
RESERVADAMENTE FALA:
– Menos mal! Adoro exclusividade!
SORRI:
– eu tb!
RESERVADAMENTE SURPREENDE-SE:
– "tb"... O que seria?
SORRI:
– tb quer dizer também! sua primeira vez?
RESERVADAMENTE FALA:
– Não tenhas dúvida!
SURPREENDE-SE:
– engraçado! eu poderia jurar q já teclamos antes!
RESERVADAMENTE ENTUSIASMA-SE:
– Verdade?
SORRI:
– Não tenhas dúvida!
RESERVADAMENTE FALA:
– Perdoa-me a indiscrição, mas por que só "B"?
SORRI:
– é a primeira letra do meu nome.
RESERVADAMENTE SORRI:
– "B" é bem inspirador, sabias?
SORRI:
– deve estar se perguntando se sou homem ou mulher, ñ é?
RESERVADAMENTE FALA:
– Sinceramente, não!
SURPREENDE-SE:
– então, quer dizer q não se importa?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Não te preocupes quanto a isso! Sou paciente!
FALA:
– bom, mas e vc? por que "Doce Vampiro"?
RESERVADAMENTE FALA:
– Porque além de apreciar a vertiginosa voz de Rita Lee, eu sou um!
SURPREENDE-SE:
– o q? um doce vampiro?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Não, um vampiro apenas!
SORRI:
– tá, senhor vampiro! como vai, então, a nossa bela Transilvânia?
RESERVADAMENTE FALA:
– Por que será que a nossa espécie é constantemente relacionada a esse tão rústico lugar?
FALA:
– a Transilvânia é conhecida em quase todo o mundo como a terra do conde Drácula, ñ?
RESERVADAMENTE MURMURA:
– Sim! Eu me esquecia! Maldito Bram Stoker!
FALA:
– já li algo sobre ele!
RESERVADAMENTE SURPREENDE-SE:
– Mesmo? O quê?
FALA:
– pouco, pouquíssimo! só q a mulher dele quis processar os produtores de Nosferatu! é assim mesmo q se escreve?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Sim.
FALA:
– de onde vc é?
RESERVADAMENTE FALA:
– De lugar nenhum! Quando morremos para esta vida, o nosso mundo e família desaparecem!
DESCULPA-SE:
– entendo.
FALA:
– acha mesmo q é um vampiro?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Convictamente! Por quê?
FALA:
– sei lá!
FALA:
– por que, então, ñ escolheu uma cor + adequada para o seu nick?
RESERVADAMENTE FALA:
– Convencionou-se, através dos séculos, que a nossa cor é o vermelho: Ledo engano!
RESERVADAMENTE FALA:
– Preferimos ao perto. Mas... já leste Anne Rice?
FALA:
– só o Entrevista! por q?
RESERVADAMENTE FALA:
– Penso que essa mulher muito sabe sobre nós!
RESERVADAMENTE SORRI:
– Se é que ela não é uma de nós...
E tudo isso, acredite-se ou não, se dava em um curto e inexorabilíssimo espaço de tempo:
RESERVADAMENTE SORRI:
– Enfim (e caindo de seus longos dedos da mão direita algumas cinzas do cigarro que elegantemente tragava, prosseguiu:), tecle algo sobre você.
FLERTA:
– oi, amor! a fim de tc?
SURPREENDE-SE:
– ñ leu (depois de uns dez segundos:) a pergunta q uma tal de Walkíria lhe fez?
RESERVADAMENTE FALA:
– Não.
SURPREENDE-SE:
– Por q?
RESERVADAMENTE FALA:
– Porque não importa!
DESCULPA-SE:
– e por q?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Exclusividade, lembras-te?
SORRI:
– pôxa! confesso agora q fiquei lisonjeada!
RESERVADAMENTE SORRI:
– E eu, contente por saber, afinal, que és uma dama!
RESERVADAMENTE SORRI:
– ooooops! rsrsrs
RESERVADAMENTE SORRI:
– onde paramos?
RESERVADAMENTE, FALA:
– Pedia para que tu comentasses algo acerca de ti mesma.
RESERVADAMENTE SORRI:
– bem, eu sou uma garota q, aos 16 anos, adora ouvir música, sair pra dançar e assistir a um bom filme! sou ainda sonhadora, romântica e, como toda ariana que se preze, curiosa, curiosa ao extremo!
RESERVADAMENTE SORRI:
– e aí, satisfeito?
RESERVADAMENTE FALA:
– Francamente, não.
RESERVADAMENTE SURPREENDE-SE:
– q + quer saber? se já tenho filhos?
RESERVADAMENTE FALA:
– Não! Se quer ser vampirizada!
RESERVADAMENTE SORRI:
– olha, é uma proposta tentadora, mas a gente mal se conhece!
RESERVADAMENTE SORRI:
– É verdade!
RESERVADAMENTE FALA:
– Quanto a mim, o que posso afirmar é que ainda aprecio música e gosto de sair à noite!
RESERVADAMENTE SORRI:
– a propósito, o q faz um vampiro sentado em frente a um computador enquanto corre a noite feito um corcel desenfreado?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Bonito! Seria um poema?
RESERVADAMENTE FALA:
– vê se ñ enrola, tá?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Está bem! Afora já haver a evidência de não me alimentar só de humanos, há um momento em nossa Eternidade em que nos permitimos conversar com nossas tradicionais presas!
RESERVADAMENTE MURMURA:
– dentes q falam?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Se assim o desejares...
RESERVADAMENTE MURMURA:
– sei, ñ! um vampiro q, em vez de sair por aí fazendo umas vítimas, fica de bate-papo num computador!
RESERVADAMENTE SORRI:
– Ora, cara mia, quando o telefone surgiu pela primeira vez nós "tb" o usamos, sabias?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Que mal pode haver nisso?
RESERVADAMENTE DESCULPA-SE:
– é, tem razão!
RESERVADAMENTE DESCULPA-SE:
– mudando de assunto, achei um tanto interessante o comentário q fez a respeito de Anne Rice!
RESERVADAMENTE FALA:
– Sim, é verdade!
RESERVADAMENTE MURMURA:
– Vou contar-te aqui um segredo, posso?
RESERVADAMENTE ENTUSIASMA-SE:
– pode, não! deve!!
RESERVADAMENTE MURMURA:
– Há vampiros e escravos de vampiros que escrevem inúmeras histórias só para que toda a Humanidade creia que não passamos de mera ficção de loucos!
RESERVADAMENTE SURPREENDE-SE:
– Deus meu! e o q são os autores de todos os relatos de caráter documental existentes?
RESERVADAMENTE FALA:
– Fantoches, minha amiga! Reles e pútridos fantoches!
RESERVADAMENTE SURPREENDE-SE:
– ñ seriam caçadores de vampiros?
RESERVADAMENTE FALA:
– Esses que eram, em sua incontestável maioria, falsos religiosos? Não!
RESERVADAMENTE SORRI:
– certo! e (Já havia uma nota de incontido nervosismo no teclar daqueles finos dedos:) q escritores figurariam no rol desses escravos de vampiros?
RESERVADAMENTE FALA:
– Bürger, Samuel T. Coleridge, Heirich A. Ossefelder, Charles Baudelaire...
RESERVADAMENTE FALA:
– tá legal! e quem seriam, no caso, os vampiros?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Realmente imaginei que não fosses perguntar!
RESERVADAMENTE FALA:
– vamo lá! vc me deixou curiosa agora!
RESERVADAMENTE FALA:
– Pois bem! Polidori, a nossa caríssima Anne Rice (Embora não tenha eu muita certeza!), George Gordon...
RESERVADAMENTE ENTUSIASMA-SE:
– peraí, peraí! George Gordon e Lord Byron ñ são a mesma pessoa?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Exato!
RESERVADAMENTE ENTUSIASMA-SE:
– Mas ele ñ morreu lutando contra os turcos na Grécia?
RESERVADAMENTE RI:
– Morreu, foi?! Já ouviste falar-se, alguma vez, em Highlander, minha querida?
RESERVADAMENTE FALA:
– o imortal?
RESERVADAMENTE FALA:
– Sim! Aquele que a esse personagem deu vida é, com certeza, um de nós!
RESERVADAMENTE DESCULPA-SE:
– ñ acredito!
RESERVADAMENTE SORRI:
– Que fazer?
RESERVADAMENTE FALA:
– seja verdadeiro! me dê uma prova disso!!
RESERVADAMENTE SORRI:
– Muito bem...
Sucederam-se, pois, instantes de aflição por parte da ingênua criança que, já atordoada, ficou a pedir sempre que seu "interlocutor" respondesse-lhe aos sôfregos chamados.
A noite, como é de se esperar em dias de Verão, seguia o seu lento passo, deixando que a lua melancolicamente clareasse todo o espaço sobre o qual adejava. As ruas, apesar de não se fazer tão tarde, estavam todas desertas. As árvores do bairro, banhadas por uma palidez funérea, davam umas sombras tão lúgubres, que eram mil vezes piores que este seu infeliz aspecto. E as casas finalmente, as casas... quase todas elas, resguardadas e fechadas com suas poderosas janelas e portas com grade, faziam-se apenas vítimas de tais sombras, enquanto outras duas, que de si tomavam determinada distância, ainda lutavam contra esta imposição noturna.
Datava ainda a primeira dessas belas residências do clássico período de nossa arquitetura, embora ambas fossem de andar. A segunda, nada, comum. Mantinha, porém, como a outra, em seu primeiríssimo e único andar, suas largas janelas abertas.
Mandava, a estas horas, o tempo um grave sopro de inusitada gelidez, apesar de ser Verão. E as árvores todas ramalhavam de tal maneira, que parecia dali se aproximar uma verdadeira tempestade.
Enquanto isso, cada vez mais e mais assustada com os ares bestiais que lhe havia imputado o misterioso vampiro, a menina, agora pensava em fechar a janela (mesmo antes de abandonar o seu computador).
Andava, pois, após tomada a difícil decisão em direção ao primeiro de seus objetivos. Tremulavam as pernas... Não! O corpo todo parecia fazê-lo! As mãos, frias, inquietas, esfregavam-se. Até que, chegando a seu destino, sem olhar sequer para o lado de fora da casa, demorava e muito a achar o lacre de seu rico tesouro. E as frias mãos já tateavam com tamanha ansiedade, que os olhos pareciam lacrimejar, embora ela os comprimisse tanto.
De repente, em meio a todo aquele fogo e frio, ruflavam as brancas asas de uma coruja que, de pronto, pousava na incrementada janela.
Quase desfalecida a nossa mocinha, a afastar-se, de leve, de tão inesperada figura, até que sentava, por fim, para o seu velho computador ficando de perfil na mesma e já desgastada cadeira.
Passado um minuto exato de cena tão digna de um filme trash, a menina, como às vezes acontece com todo mundo, revoltava-se, apesar do medo ainda borbulhar em suas veias.
Voltava-se ele, então, para a tela do computador:
RESERVADAMENTE SURPREENDE-SE:
– ué! por q não me mandou um morcego o senhor vampiro?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Olha, se um morcego houvesse entrado em teu quarto, indubtavelmente o eco de teu grito me chegaria aos ouvidos!
RESERVADAMENTE SURPREENDE-SE:
– Então, quer dizer q, de certo modo, vc está aqui perto?
RESERVADAMENTE SORRI:
– Quem sabe...
A moça, quase que sem pensar, pulava da cadeira, desligava, de imediato, o computador, fechava, sem seguida, a janela (após, claro, ter tangido a coruja), trancava a porta e enrolava-se toda em um extenso lençol de seda.
Em vista disso, esboçava apenas um sorriso o intitulado vampiro, dizendo:
– Não te preocupes, minha querida... Outras noites virão!
Porém, de súbito, pareceu captar, através de uma das lentes de seus óculos o reflexo de uma quase fluídica série de vultos próxima à imensa janela de seu quarto.
Virava-se, pois, o meticuloso rapaz, sobressaltado, conseguindo ver, com incrível expressão de terror e asco, não só um, três ou dez vultos, mas a cabeça de sua bela coruja branca inteiramente decepada.
a 17/07/01