Não Somos Heróis

Quando eu percebi ser um lixo existencial tinha 16.

Nunca dei lugar para os mais velhos no ônibus, eu estava pagando afinal.

Eu nunca fui herói, e não queria ser, e nunca vi motivos para querer.

Quando eu percebi que todos eram iguais a mim tinha 23 e tomava thorazine para controlar meus distúrbios psicóticos e cloridrato de paroxetina para minha ansiedade.

Quando você perde a fé no mundo você não vê a hora de morrer.

Perde a paciência de tanto esperar.

Quanto completei 26 anos perdi minha virgindade e senti como se tivessem assoprado meu pênis ao contrario. Esperava sentir o alívio que tanto falavam, mas tudo que eu sentia era que minha ansiedade só voltara crescer, e que se alguma vez diminuíra fora somente nos segundos de ápice seguido da ejaculação.

Aos 27 contemplei algo que poderia chamar de um ato divino, e se eu não fosse um ateu tão puto com a vida, talvez tivesse me tornado num crente insolente dono do céu, mas achei obra do mero acaso.

Parecia uma boneca voando lá do décimo quinto. Caiu sobre um monte de lixo no caminhão que passava. Ouvi nas semanas seguintes que um pai se suicidara e que um bebê fora encontrado com o braço quebrado num aterro sanitário, mas que já passava bem. Mas não importava ter presenciado, minha inércia continuava. Eu queria era ver a ação.

Aos 27 anos tive minha primeira briga de verdade. Foi por causa de uma banda de rock. Eu discutia veemente com um cara sobre ela e esse cara não gostou nada dos meus comentários sobre o lixo sonoro da banda dele, e acertou um cruzado em meu olho, deixando-o em questão de poucos minutos amarelo-azulado. Parecia uma berinjela ao chegar em casa. Eu quebrei o nariz dele em dois lugares diferentes e chutei o estômago dele até ele berrar para parar.

Fiquei sentado num canto, sentindo a dor consumir minha face. Parecia me sentir vivo, mas sabia que era mentira. No fim das contas era só um agente químico agindo em meu corpo. Nem a dor era real. Não passava de impulsos eletromagnéticos.

Eu não podia esperar muito da minha vida. Meus pais tinham morrido, não tinha irmãos, parentes ou qualquer perspectiva.

Eu nunca fui herói.

O thorazine consumia toda a minha vontade de viver ou de orar para o senhor Jesus. O cloridrato de paroxetina inibia meu medo do mundo real, de tal forma que eu atravessava a rua sem olhar para os lados. Eu não tinha medo de nada.

A vantagem de não se ter medo é que você nunca acha que nada vai acontecer. Quando realmente não acontece parece natural e lógico.

Aos 29 comprei um carro usado. Comprei também um toca fitas e uma K7 dos Kinks. Eu queria sair de noite e lembrar como era a língua maliciosa do vento noturno.

Queria que os deuses pagãos me abençoassem.

Desejava que Juno sacramentasse minha união com alguém. Naquele momento qualquer um me serviria. Qualquer pessoa que me tirasse da caverna que eu mesmo construira ao meu redor. Que me lembrasse pra que servia a vida. Como se vive?

Aos 30 matei uma pessoa. Quer dizer foi sem querer. Mas eu não consegui voltar para prestar socorros, e pela primeira vez em minha vida eu tive um medo enorme. Mas não reagi. Não agi. E ela morreu. Pobre Katty, apenas dezessete.

Não somos heróis.

Quando precisamos ter super-poderes nos acovardamos e nos escondemos. Tão mais cômodo. Tão mais falso e fácil. Porque encrencar toda a minha vida se posso deixa-la lá na estrada, sem ninguém saber? Ninguém além de minha consciência masoquista, para me atormentar por noites, e dia, e tardes, e qualquer outra hora que eu esteja respirando. Às vezes sonho que vejo o rosto da Katty antes de atropela-la. Mesmo tendo visto ela somente em fotos de jornais. Mas hoje ele é a memória mais viva em minha mente.

Aos 34 eu desenvolvi câncer na próstata. Um jeito engraçado de morrer, não esperava ao menos que fosse isso, um câncer de pele ou doença congênita. Ou talvez um seqüestro onde não teriam ninguém para quem pedir resgate. Ou a justiça divina. Eu morrendo debaixo de um ônibus, e minha entranhas saindo pela boca, ouvidos e pelo rabo. Minha espinha fazendo "quelshhhhh" e depois "crackt". E finalmente eu morreria redimido ou alguma besteira do tipo.

Mas não, eu não morro, nem de forma heróica, nem de forma banal. Simplesmente pareço ir contra as expectativas. Queria morrer de uma vez, sei que o dinheiro que investem em mim poderia estar sendo usado na educação de estudantes com a idade Katty.

Quando você desenvolve uma relação profunda como a minha e da Katty vocês acabam se tornando amigos. Você acaba fazendo confidências.

Aos 42 eu sou internado em uma ala psiquiátrica, aparentemente com meu câncer curado. Quando ouviram eu conversando com a finada Katty, acharam que eu finalmente tinha perdido o juízo. E sou um merda tão grande que nem consigo confessar e queimar e fritar numa cadeira elétrica. Não, ao invés disso prefiro ficar escondido, porque no fundo, e na superfície também, sou um grande covarde. Não posso dizer por todos. Mas não somos heróis.

Você nunca irá se lembrar das coisas que seu pai lhe ensinou,

você nunca irá usar o que sua mãe te ensinou. Amor ao próximo? Todas essas bobagens? Coisa de heróis de verdade. Nós, digo, se você for como eu, não terá coragem de devorar o próximo, e irá deixar que o tempo consuma lentamente tudo o que tem de bom na sua vida. Não existe nada tão forte que tempo e tristeza não possam atuar juntos.

Não sei porque pessoas como Katty morrem, e bostas como eu vivem. Sei somente que deixamos essas vidas esvaírem-se e prendemos as nossas mundanas e chatas vidas. Talvez, eu não seja tão mal afinal. Penso no que livrei Katty.

Formaturas. Concursos. Empregos. Demissões. Decepções. Vida.

Não, não somos heróis...

...Mas de certa forma, também não somos vilões.

Gabriel Dominato
Enviado por Gabriel Dominato em 21/08/2008
Reeditado em 21/08/2008
Código do texto: T1138489
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