O Mendigo da Rua 15

É domingo de páscoa, e grande parte da população não está trabalhando. Entre todos esses está o mendigo da rua quinze, que por sinal, não tem emprego, não família, não tem ovos da páscoa, não nome e muito menos sobrenome. Ele não tem nada.

Mesmo no domingo de páscoa, o mendigo está deitado na calçada, com um pedaço de pano velho pra se cobrir e uma bola de jornais com os classificados do mês passado pra apoiar a sua cabeça.

Pela calçada passa médico, passa lixeiro, passa arquiteto, passa padre, passa gato, passa cachorro, passa rato e barata, mas isso já não importa, o mendigo já não liga mais para quem passa e vice-versa.

O mendigo continua deitado na calçada, cheio de moscas, fedendo, sujo, rejeitado e esquecido. Sua latinha de dinheiro tem cinco centavos e um chiclete de hortelã mascado. A uns dois metros a sua esquerda, um poste exala um odor horrível de urina. Mas o mendigo nem percebe.

Triste é o olhar desse mendigo, que é seco e imóvel, como o de um peixe de açougue.

Uma senhora passa pela calçada e deixa cair um crucifixo, que se desprendeu do seu rosário. O objeto divino fica na beira do pano cujo mendigo se cobre. O objeto fica entre a velha e o mendigo, esperando ser apanhado, mas o fedor causa tanta repugnância na velha que ela deixa o seu crucifixo pra trás, e vai embora o mais rápido possível.

O mendigo nem mexe no crucifixo, deixa-o ali, quieto e parado. Em toda sua vida, o mendigo da rua quinze nunca foi digno de um ato divino, milagre ou coisa parecida. Talvez agora seja. Quem sabe?

A noite chega logo, e o mendigo nem percebe. Sua irracionalidade animalesca se firmou de vez, pois o mendigo está dormindo e já não sente frio nem fome.

Os dias vão passando, e a rotina do mendigo é a mesma. É o mesmo pano velho, o mesmo fedor, as mesmas moscas, e na maioria das vezes, as mesmas pessoas que passam pela calçada.

Pois exatamente oito dias após a páscoa, a rotina do mendigo mudou de uma forma extraordinária.

Nesse dia uma linda mulher cruzou seu caminho. Uma mulher branca, de olhos azuis, alta, corpo definido e com um ótimo gosto voltado para literatura brasileira, filmes cults e orquestra sinfônica. Mas a polêmica de seus filmes saiu das telas de cinema, e caiu sobre si mesma, pois um fato inimaginável marcou a sua vida de uma forma inesquecível. Um fato que podia ter como fundo musical alguma das sinfonias de Beethoven, não a Sonata do Luar, mas algo mais forte, violento e estrondoso, como a 5ª ou a 9ª sinfonia.

Pois no dia 18 de abril de 2005, a vida do mendigo —que ninguém sabe o nome— e a de Julie Fernandes Camões —a mulher de corpo definido— entraram literalmente em atrito.

Julie estava andando rapidamente pela calçada, quando tropeçou e caiu em cima do mendigo, percebendo que ali havia um ser humano, que por sinal, estava morto desde o domingo de páscoa.

Julie nunca mais esqueceu do dia em que a putrefação de um cadáver indigente penetrou os poros de sua pele.

Os seres humanos fazem escolhas a partir de suas atitudes. Cair sobre um defunto em decomposição, seria essa a escolha de Julie?