O Atentado do Cabide

Flávia estava frustrada e desanimada com vida. Ela estava meio boba, pensativa. Atormentadamente desorienta. Tanta adjetivação não é o suficiente para descrever qual era o seu real estado.

Há algum tempo que ela guarda um segredo. Seu marido, Nicolas Nakata, percebeu uma diferença em sua personalidade, mas ainda não comentou nada com ela. Talvez pela correria do dia-a-dia.

Todo mundo tem um limite, ninguém agüenta viver atormentado por muito tempo, nem Flávia. Mas ao invés de contar o que estava acontecendo a alguém, ela apenas aumentou a gravidade da situação cometendo um assassinato.

Sujar as mãos com sangue, não é a melhor forma de se aliviar de um tormento, mas para Flávia, que era egocêntrica ao extremo, o sofrimento alheio não lhe importava. Ela era uma típica hipócrita movida pelo seu ego.

O crime ocorreu em uma manhã nublada de quinta-feira, quando Nicolas já havia saído para trabalhar. A arma usada foi um cabide metálico.

O assassinato foi rápido e mais doloroso para Flávia do que para a vítima. Ela introduziu o cabide a primeira vez, e foi o necessário para matá-lo, mas não para ver o seu corpo. Tanto ela como a vítima agora estavam cobertos por sangue. Sangue que escorria pelo sofá azul e chegava ao chão branco. As cores formavam a bandeira da França distorcida. Na segunda tentativa de ver o corpo ela acaba se machucando, o que aumenta ainda mais a quantidade de sangue. O corpo aparece, pequeno e quieto. Pobre criança, morta injustamente, sem culpa nenhuma! Onde fica o seu livre arbítrio? Talvez Deus estivesse ocupado demais tentando fazer com que um homem do povo, um verdadeiro molusco com um tentáculo deficiente se tornasse o presidente da república. Pobrezinho ele não teve oportunidade de estudar. Nem a criança nem o molusco. Ou talvez Deus estivesse mandando mensagens para algum apresentador de TV, dizendo para jogar aviõezinhos de dinheiro para sua platéia de alienados. Ou ainda por cima Deus tivesse que aumentar o salário de alguns políticos, aqueles homens honestos que lutam pelos direitos dos cidadãos. Ah... Como Deus é ocupado.

Após perceber o que fez, Flávia chorou sobre o cadáver agora pálido. Suas lágrimas não eram de arrependimento, mas de dor. Ela ficou deitada no sofá por um tempo, apenas olhando para o teto de forro. A madeira era cheia de manchas negras que pareciam olhos que observavam o seu crime.

Trinta minutos se passaram e ela continuava imóvel no mesmo lugar. Sua respiração era de alguém assustado. Com algum custo ela se levantou. Soltou gemidos que parecia o choro de um cachorro. Foi difícil ficar em pé, ela estava tonta. Pensou que ia desabar em alguns momentos, mas resistiu.

Ela pegou o pequenino corpo com suas próprias mãos e o ensacou. Foi até a porta da cozinha com o corpo no saco. Abriu a porta e saiu para os fundos da casa. Boby, o cachorro, tentou morder o saco, mas foi repreendido pela dona que continuava a choramingar.

Ela cavou um buraco no fundo do quintal enquanto o corpo esperava pendurado no varal de roupas. Ainda dentro do saco, o corpo atraia a atenção de Boby. Após aberto o pequeno buraco Flávia enterrou o corpo. Mas o que ela não percebeu foi que não estava sozinha ali. Havia mais alguém. Não estava no mesmo quintal, mas muito próximo dali.

Quando Nicolas chegou em casa levou um susto, pois sua esposa estava algemada sendo levada pela polícia.

— O que está acontecendo aqui?

— Para trás — disse uma policial, empurrando-o pela cintura.

Uma roda de pessoas — vizinhos curiosos — estava formada ao redor da casa.

— Eu sou o marido dela, me deixa passar! — retrucou Nicolas.

— Marido!? Mas o marido dela já está aqui.

Sem entender, Nicolas passou correndo pela policial, mas não alcançou sua esposa, ela acabara de ser levada por uma viatura.

Ele entrou dentro da sala de sua casa e viu dois policiais conversando com um homem negro, alto e magro, que parecia o Samuel L. Jackson, mas em uma versão atleta. Todos estavam em pé.

Nicolas interveio a conversa quando o menecma do Samuel L. Jackson acabava de confessar para ao policias ser o amante de Flávia. Nicolas demorou um pouco, mas entendeu o que o outro falara. Ficou ali paralisado, apenas olhando a cena. Ele não se alterou. Não pelo fato de ele também ter uma amante, mas no momento ele queria saber o que acontecera com a sua esposa.

...

...

— Aborto! — dissera o policial mais velho.

— Aborto!? Mas eu nem sabia que ela estava grávida! Como?

O amante de Flávia continuava em silêncio. O policial continuo:

— Bom, recebemos uma denuncia anônima de que sua mulher estava enterrando um feto no fundo do seu quintal e ao chegarmos aqui encontramos um buraco aberto no local. Não havia corpo algum. Foi quando o seu cachorro apareceu com uma cabeça na boca. Recolhemos o liquido estomacal do seu cão e lá estava todo o resto do feto.

Nicolas continuou paralisado. Sentia vontade de sair dali e ir direto para um banheiro vomitar, mas tentava controlar a sua náusea.

O policial mais novo disse:

— A objeto do crime foi encontrado sobre o sofá. O pessoal da perícia ainda vai analisar o local.

Nicolas olhou para o sofá azul, e lá estava um cabide todo ensangüentado. O estado do sofá era um pouco pior, nunca mais voltaria a cor original.

Nicolas ficou abismado com a irracionalidade da esposa. E indagou:

— Mas porque ela faria isso?

— Provavelmente ela teve medo de ter um filho negro ao invés de um oriental. — respondeu secamente o negro.

O negro que se chamava Amadeu, virou as costas e foi embora. O policial mais jovem comentou:

— Parece irônico. A dois dia atrás a sua esposa não seria presa. A lei que impõe a prisão a mulheres que comentem aborto, entrou em vigor essa semana.

Nicolas olhou bem nos olhos do policial, e não escondeu as suas lágrimas. O policial deu seus pêsames.

No fim do dia, Nicolas estava sem esposa e não queria mais saber da amante. Agora ele é que estava frustrado e desanimado. Ele nem ligou para o Amadeu, Nicolas e Flávia mantinham um relacionamento aberto. O que mais incomodava Nicolas era o fato de saber que sua esposa assassinou friamente um bebê que podia ser filho seu. Ou não. Independente disso, ela matou um ser humano. E teve uma coisa que Amadeu não contou nem a Nicolas nem a Flávia. Amadeu era estéril.