O homem que queria vender a alma a Deus.
A distância entre o ânimo e a depressão encurtava-se cada vez mais. O vazio ganhava, a passos largos, mais espaço dentro de si. Não que houvesse carências desassistidas. Não. O que havia eram carências preenchidas com “nada”. Um nada que não era pouca coisa não; “nadas” sofisticados, requintados, da mais alta procedência; porém não saciavam uma fome não identificada.
Até que um dia, ou melhor, uma noite que adentrou a madrugada, resolveu após profundas reflexões, falar com Deus. Queria dar um basta em tudo; estava disposto até a propor um “acordo” com Deus. Com o Diabo não queria conversa dado às suas já conhecidas cláusulas contratuais que rezavam, quero dizer, determinavam uma imposição de fidelidade até a consumação do desejo. Não, não, chega disso. Já basta esses contratos de TV por assinatura.
Não sabia por onde começar. Procurou então fazê-lo através da única idéia que lhe ocorreu: chamá-lo em voz alta. E assim o fez:
— Deus, onde estás? Preciso muito falar com você!
Nada acontecia. Ninguém atendia. Tentou novamente e novamente por várias vezes.
Depois de cansáveis tentativas quando já sentindo-se ridículo e prestes a sucumbir, algo aconteceu. Ouviu uma voz que lhe era familiar dizer-lhe:
— Sim, pode dizer o que tu queres.
A familiaridade da voz procedia pois é claro, era a sua própria!
“Devo estar iniciando o processo de loucura. Estou falando comigo mesmo como se eu fosse Ele?”.
— Você não queria falar comigo? Pois então estou aqui. Vamos lá que não tenho muito tempo. Tenho muita coisa pra fazer.
— Mas você não vive na eternidade? Como pode se preocupar com o tempo?
— Eu vivo na eternidade, mas você não. Portanto pra te dar audiência tive que me submeter às condições em que você vive. Se é que se pode chamar isso de vida.
— Como pode falar assim das condições em que vivo? Afinal foi você que criou este mundo não foi?
— Meu rapaz, você anda muito mal informado. Olha, não vamos estender esse assunto que não é o momento. Me parece que você está querendo me propor algo não está? Vamos lá que esta audiência é rara. Aproveite.
— Bem, tenho uma proposta para lhe fazer.
— Sim, estou ouvindo. Prossiga.
— Estou cansado desta vida sem sentido. Quero ser imortal!
— Ah, Ah, Ah... kkkkkkkkk... essa foi muito boa! Você está de brincadeira não está?
— Não acredito no que estou ouvindo. Você é Deus mesmo ou é “aquele’ disfarçado?
— Tá me estranhando? Acha que eu iria me misturar com aquele mentiroso? Ele é ele e eu sou Deus. Além do que não tenho papas na língua.
— Então, vai me atender ou não? Afinal sou seu filho e ...
— Ôpa, ôpa... quem foi que te disse isso?
— Peraí. Eu fui feito à imagem e semelhança sua.
— Meu caro amigo você não tem se olhado no espelho ultimamente não é mesmo? Acha que eu tenho um filho desse tamanho? E com essas características que nada tem a ver comigo; você deve estar falando de outro deus.
— Você vive, ou melhor, existe em um mundo totalmente bagunçado. Não respeita a ninguém. A começar e terminar por si mesmo. Na verdade não sabe o que quer. É sem rumo e só sabe lembrar da existência de um Deus quando já cometeu as burradas. Olha, cresça e apareça pra falar comigo. Melhor dizendo: Diminua e desapareça por completo e depois renasça sem nenhum resquício dessa natureza corrompida. Somente assim falaremos de Pai pra filho. Mas olha, morra antes de morrer. Depois de morto a única coisa que vai restar é a morte.
— Está bem, está bem, não entendi muito bem mas vou tentar, ok? Ok? OK?
Silêncio absoluto. A madrugada avançou, o dia nasceu através de uma janela.