O passado liberto da televisão

Quando, certa vez, me deparei com uma tradução muito pouco conhecida de um verso de Baudelaire, que dizia: “Quando o céu cai sobre mim como uma tampa”, confesso que este fato não me foi indiferente. E não sem motivo. A situação na qual vivia estava expressa com exatidão na curta frase desse poeta francês. Há muito tempo que as coisas à minha volta vinham lentamente se modificando, cores se desbotando e perdendo o brilho. As minhas sensações também foram diminuindo de intensidade até se tornarem quase nulas, fazendo do tempo um fluxo uniforme e sem direção. O céu tornara-se um teto. Quando mais novo, costumava me sentir melancólico somente nos dias nublados. Nuvens sempre sufocavam o meu espírito, pois o privavam de contemplar o infinito sugerido pelo azul dos dias belos. Os anos foram passando e o azul gradualmente deixando de trazer qualquer esperança até não se diferenciar em nada dos dias que tanto me deprimiam. Este breve relato parece o resquício de um saudosismo em tempos cujas atenções todas se voltam para o futuro, admito. Mas por uma incapacidade de acompanhar algumas mudanças alguma coisa parece que se perdeu, algo cuja invisível presença conferia uma existência sólida a todas as coisas. Embora a formulação exata que o verso de Baudelaire trazia tenha contribuído para uma tomada de consciência de uma situação, a evidência da crise resultou, antes, de um encontro que ocorreu numa tarde, tarde tão comum quanto qualquer outra. O novo estado de exceção deflagrado serviu de contraponto para realçar uma miséria atuante, que aos poucos, sem que eu mesmo pudesse perceber, gradativamente tornava a tarefa de existir um pesado fardo.

A casa onde moro é a mesma desde os meus cinco anos de idade, a primeira (e talvez a única) grande conquista de minha família recentemente tornada classe média. Não possuo lembrança alguma do que quer que me tenha acontecido antes desse tempo, a não ser o que me foi dito acerca de mim pelos outros. Considero, por esta razão, a sua compra o início de minha vida. (Na origem das coisas ações de natureza política ou comercial: a assinatura de um documento, como um tratado, uma certidão, um contrato, um simples termo de compromisso.) Ao longo dos anos, alguns móveis foram substituídos, ao passo que outros simplesmente mudaram de lugar. Houve até um tempo, há exatos vinte e três anos, que possuíamos um cachorro. Um canil, grande como um quarto, foi construído nos fundos. O cachorro morreu de doença, e sem premeditação de nossa parte a sua morada passou a ser utilizada como depósito de tudo aquilo que a família não queria mais e que ao mesmo tempo não tinha coragem de se desfazer. Aquele velho canil nos fundos do quintal tornou-se, então, um depósito para onde todos os resíduos de minha família nos últimos vinte e tantos anos eram jogados. Aquele velho quarto recebia as velhas coisas das quais não conseguíamos nos desvencilhar, constituindo-se um lugar intermediário entre o que se joga fora e o que se conserva. E foi para lá que, na tarde a que há pouco me referi, resolvi ir.

Não sei a que impulso obedecia, mas quando dei por mim eu estava naquele cemitério de coisas de família repleto de resíduos materiais de outras épocas. O lugar era saturado de passado. Aquele ambiente de memória concentrada ficava mais denso a cada passo que dava rumo ao fundo. Podia-se ver os ínfimos grãos da poeira em verdadeiros lampejos nos finos raios da luz do sol que vazavam pelas frestas do telhado, minúsculas partículas boiando ao sabor dos mínimos movimentos do ar. O cheiro de mofo era forte e as lembranças que vinham à tona se sobrepunham ao que a mim se apresentava. O nosso velho aparelho de som, que um dia ocupou lugar privilegiado de nossa sala, encontrava-se agora perto da entrada, muito sujo, sem a tampa de cima e o com botões do rewind e do pause faltando. Um pouco mais adiante, o meu skate sem uma das rodas. Eu pisava com cuidado. No chão havia cacos de vidro dos cascos de cerveja que usávamos para os churrascos homéricos que fazíamos para os vizinhos daqueles tempos míticos, quando eles ainda moravam lá na rua. Na parede, à esquerda da entrada, uma pilha de revistas Manchete antigas e, ao lado delas, jornais com seus fatos há muito caídos no esquecimento. Não me dei o trabalho de ir olhá-los com mais calma, embora tenha pensado nisso. O que queria mesmo era penetrar mais naquele espaço em que o que já se foi ainda era mantido. Parecia que à medida que avançava em direção à parede o tempo dos utensílios em carcaça retroativamente acompanhava até extrapolar o meu início. Coisas de quando minha mãe ainda era solteira estavam lá, como as pastas com trabalhos seus de faculdade. A parede era o limite. Na sua dobra com o chão, uma foto arranhada de forma tal que não era possível identificar nada, a não ser cores e formas sem relação alguma com qualquer modelo concreto existente, imagem deformada pelo descuido compondo um desenho sem sentido. Ao lado dela, uma fita de vídeo muito empoeirada, suja como todo o resto e sem nome. Da etiqueta só restavam alguns resíduos negros da cola seca.

Ao sair daquele lugar maldito, trazia a fita comigo. Verifiquei em seguida que estava com mofo em seu interior. Entrei em casa na esperança de poder limpá-la. Depois de uma ligação a um amigo, aprendi como fazer aquilo. Trinta minutos sob o sol e uma flanela foi o que me foram necessários. O vídeo cassete, guardado no armário da sala, foi instalado na televisão em pouco tempo. Seguindo a recomendação, avancei até o final e rebobinei a fita umas cinco vezes antes de assistir. O que nela estava contido era para mim um mistério cuja verdade viria à tona ao toque do play do aparelho. A expectativa era a mesma que a de uma revelação vinda dos céus ou das profundezas, e cerca de alguns segundos após o início de sua rotação as primeiras imagens e os primeiros sons eram reproduzidos na televisão. A cena era de uma novela. Um homem alerta a mulher de algo ruim. Ela o abraça após receber a notícia de que a sua mãe morrera. A imagem dos dois se aproxima da tela num close. Intervalo comercial. Os anúncios eram da antiga loja Khalil M. Gebara, de uma marca de cotonete, de um absorvente e de um brinquedo de uma grande loja. Após essas cenas, chiado, talvez porque o cabeçote do vídeo tivesse sujado ou porque não havia na fita nada além daquilo a que acabara de assistir. O curioso daqueles poucos instantes fora menos o conteúdo que a forma daquilo que continha na fita. A voz reverberada e as imagens feitas por antigos equipamentos de filmagem, ao mesmo tempo que gastas pelo tempo de abandono nos fundos da vida, retornavam como fantasmas de um passado ainda atuante, trazendo consigo algo de abstrato cujo poder de contaminação de meu estado presente pude sentir a partir daquele momento até as horas que se seguiram — fragmentos de uma época extinta na forma de imagens que se moviam sublinhadas por uma sonoridade cujo eco se assemelhava a gritos vindos das entranhas da terra ou dos limbos do tempo.

Aqueles poucos minutos foram suficientes para deixar escapar do aparelho de reprodução e grudar às paredes da sala, aos sons que vinham da rua e ao cheiro de bife que vinha da cozinha o que por todo esse tempo esteve perdido, não digo simplesmente o passado (não se trata, aqui, de um saudosismo qualquer), mas uma continuidade temporal. Tentando ser preciso, isso é o que foi de fato restituído, operando-se ali uma fusão com o presente. Resultado: já não havia nem futuro nem passado nem presente. Na forma de uma unidade fantástica, os três tempos voltaram a se encontrar: o tempo deixou, naquela tarde, de passar, tornando-se, paradoxalmente, durante algumas poucas horas, eterno.

Que analogia usar para descrever a nova sensação? Os instantes que se seguiram não pareciam suceder uns aos outros. Se assim o fosse, tal sucessão se dava de forma não linear. O deslocamento das coisas a minha volta quando mexia a cabeça continha algo de falso. “Imagens móveis da eternidade” era a descrição feita por Aristóteles do movimento circular que os seres supra lunares (os astros) realizavam. O mesmo diria de tudo que se movia, quando fui à rua, dos transeuntes, das folhas e dos carros. Via neles verdadeiras “imagens móveis da eternidade”. A direção que tomei ao sair do portão de casa rumo ao centro não foi sem propósito. Até que ponto poderia sustentar aquele estado de flutuação? Resistiria à ansiedade do centro da cidade? O estado de absoluta indiferença em que me encontrava nivelava tudo num novo patamar mágico. No trajeto, os pombos que cruzavam o meu caminho demonstravam uma total falta de justificativa para os gestos singulares que executavam, voando ou bicando o chão. Eram todos sublimes na sua reduzida atenção que beirava a cegueira. Os carros que passavam não eram nada além do que se mostravam ser, pontos coloridos que subiam e desciam, sem os seus anos de fabricação ou modelos como característica. Da mesma maneira, as construções na avenida não eram signos de épocas ou períodos quaisquer da cidade. O prédio em construção do outro lado da rua não estava num estado de incompletude e não tendia a se realizar numa forma já acabada. Os elementos da paisagem que meu olhar compreendia eram indiscerníveis ainda sob um outro aspecto, também fundamental: as árvores, as construções, os animais, os carros, as plantas e as pessoas eram todos seres naturais, ou artificiais, pouco importa.

O meu “entorpecimento” não só era resistente à cidade como a absorvia de uma maneira única que dava o testemunho a minha experiência. O que exatamente teria escapado do aparelho de televisão e transformado o universo, desfazendo a sua antiga imagem claustrofóbica sob a qual o meu espírito há muito lutava por se desvencilhar em prol de outra cuja diferença consistia na coincidência dos tempos? Ou será que aquilo que vivenciava não passava de uma espécie de bolha prestes a estourar à forte pressão dos “Outros” ao menor movimento em falso? A cidade se mostrara fraca, impotente de impor algo de si. Antes, era ela tragada. A sua fragilidade frente às imagens da fita revelara-me apenas que a sua realidade não passava de um consentimento confuso entre os que nela transitam. Estando agora do lado de fora, eu não tinha sido restituído a um estado de natureza anterior e originário de onde toda graça deveria emanar de direito. Estava simplesmente fora desse consentimento e eu não mais ouvia o seu murmúrio. A minha plenitude tornara-me surdo aos seus gritos por sobrevivência.

A tarde ia se desenrolando não porque o tempo passava mas porque a luz pouco a pouco ia se alterando. Eis que tudo escurece. O sentimento de eternidade era resistente às transformações. Os postes de luz acendiam dando início à noite, marcando assim a ruptura com o dia, se bem que muito superficial. Um fio contínuo ligava o dia à noite e os dois constituíam um todo. Nada foi alterado no mundo pela diferença instaurada pela nova luz, tão artificial quanto à do sol. Sem modificação de nenhuma espécie sofrida pelo meu espírito, andava pelos quarteirões saboreando o ar. A odor da cidade que embalsamava todos os seus cantos era superior ao dos verões de minha infância e continha algo de celestial. As coisas que compunham o cenário flutuavam no firmamento. Trabalho e sexualidade eram inexistentes na duração daquele intervalo. Digo intervalo porque, mais tarde, quando refleti sobre o que me tinha acontecido, a verdade daqueles instantes pôde aparecer. Uma pausa no fluxo normal das coisas fora engendrada pelo botão play do vídeo, mas aquele estado de exceção era mais frágil do que parecia ser à primeira vista e teve seu fim numa simples visão, cujo efeito foi grande e devastador: a visão da perfeição de uma beleza feminina. Qual uma agulha que fura uma bola cheia de ar ou uma rolha retirada do fundo de uma banheira ou pia, a cena da mulher dona de um corpo com aquele desenho esvaziou todo o mundo, trazendo de volta a divisão entre céu e inferno. O dualismo ôntico naquele instante se instaurara novamente. O corpo rosa se apresentava como a promessa de um paraíso cujo desejo de posse era vão, em razão do qual o que era espetáculo foi rebaixado a puro resto. Tudo era agora nivelado no pior. Como uma presa que em vão se empenha para escapar de seu predador, eu procurava nela algum defeito, a marca de uma celulite na sua bunda redonda, uma varize na perna, para tentar reter o que vinha se perdendo na forma de um esvaziamento. O tempo voltou a se dividir em três: a perda da presença do passado fez novamente do presente um fluxo frenético e linear. Da sua falta de profundidade resultou um futuro sombrio: nem promessa de uma realização com uma finalidade garantida nem um campo com possibilidades infinitas, mas o horizonte dos que rumam em direção ao nada, sem determinação ou convite à criação.

Algum tempo depois, sob forte estado de embriaguez, pensei profundamente naqueles momentos de sensação de uma realidade já morta, de uma eternidade extinta, e pude concluir que a sensação de irrealidade do presente, do vivenciar de um instante no momento em que ele acontece, é desesperadora na medida mesma em que se sabe não existir fundamento algum para as coisas ou de uma razão em que se possa fiar para nortear as ações. A realidade não preexiste, como também não se nos dá quando acontece, mas se forma sempre depois, quando seus fatos já não são mais. O que se perde está perdido e o que há de acontecer também é tão inexistente quanto; o presente, fugidio e inapreensível. Mas não seria a memória uma quarta possibilidade? Ela é a coincidência dos tempos. A memória viva dá a cada instante o seu fundamento. Talvez tenha sido em razão disso que o mundo durante o breve periodo daquela tarde tenha gravitado em torno do eixo “eu”. Mas logo as verdades de minha época recomeçaram a ser sentidas, pois nunca cessam de insistir, e o desmentido de toda a fantasia de minha onipotência, o tema narrado, estava encarnado na visão do sexo oposto que tanto venero, menos pelo prazer das suas qualidades intrínsecas que pela dor de minhas próprias lacunas.

BHChads
Enviado por BHChads em 23/07/2008
Reeditado em 20/05/2009
Código do texto: T1094146
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