Incesto

Eis a história do sonho:

“O rei nunca visitava a rainha em seu quarto, e também não a recebia. Os encontros, meramente formais, se davam apenas nas festas da corte. A bebida alcoólica é o demônio para almas despreparadas. Corrompe personalidades frágeis e sensíveis. Naquele dia, comemorava-se mais uma conquista do povo que qualquer outra coisa. E o povo não participava da comemoração, mas era o homenageado – o rei por decreto concedeu aos camponeses mais glebas de terra para o plantio, sem com isso aumentar os impostos - . A festa seguia noite adentro, e o rei, alegre e descontraído pela embriaguez, não era mais dono de seus atos, e num instante de virilidade ergueu o vestido da rainha, cometendo ‘aquilo’ que fizeram em outra noite de gala. Três meses depois dessa noite de surpresas e desventuras, a barriga da rainha começou a dar sinais de que algo a mais acontecera: estava grávida. O rei enfurecido com aquela notícia, que para muitos representa a felicidade, enclausurou a rainha numa das torres do castelo. A infeliz ‘futura-mãe’ vivia às minguas de alimentos e água levados pela governanta da princesa, que a odiava, seguindo todas as instruções do rei. As aparições da rainha em público nunca foram tão freqüentes, e assim, o povo de nada suspeitou, pois sabia dos caprichos da rainha. A gravidez não dura para sempre, e então, desprovida de higiene e cuidados pessoais pariu um lindo menino, e logo em seguida desfaleceu. Seu amante, cavaleiro e protegido do rei, chorou diante de seu corpo frio, mas salvou a criança. Levou-o até um casal de camponeses velhos e honrados que não tinham filhos. Pediu-lhes que criassem aquela criança como se fosse ‘filho do rei’. Porém, a identidade não lhes fora revelada. O próprio cavaleiro se incumbiu de contar a história para o rei, mas não lhe disse a verdade sobre o rebento, que desde aquele dia fora dado como morto para o rei, e inexistente para o mundo. O ciúme conduz a ira e esta ao enfurecer-se comete trágicos crimes. Ao saber do romance de seu ‘cavaleiro protegido’ com a rainha, imediatamente mandou que o algoz o executasse.

O belo ‘príncipe dos camponeses’ recebeu a educação como se fosse um fidalgo. As reservas acumuladas durante anos de solidão familiar, possibilitou ao velho casal contratar os melhores mestres do reino. As letras; as artes; os treinamentos marciais; o uso sublime da espada e escudo; o conhecimento de estratégias de guerra; o exercício constante da equitação qualificou-o como o melhor de todos os cavaleiros juvenis do reino. Sua entrada para o grupo especial de ‘Cavaleiros do Rei’ era apenas uma questão de tempo, e não demorou para que o soberano – enfeitiçado não somente pelas qualidades de cavaleiro, mas impressionado também pela sua beleza - o confirmasse como membro privilegiado da corte. A postura, a educação, a sensibilidade e a beleza natural daquele jovem mexeu com a ‘alma feminina’ do rei, que não encontrou resistência nem dificuldades para se aproximar do novo cavaleiro. A relação incestuosa, embora sem conhecimento do par, fez o rei governar sem escrúpulos e...

Nota do Autor: o sonho a seguir é uma versão da obra, “Hamlet, príncipe da Dinamarca”, de William Shakespeare.

Personagens do sonho:

Cláudio, o rei

Hamlet, a princesa

Fortimbrás, o líder dos pescadores

Polônio, o alto dignitário da corte

Laertes, o filho de Polônio

Horácio, o amigo de Hamlet

Votimand, o cortesão

Cornélio, o cortesão

Rosencrantz, o cortesão

Guildenstern, o cortesão

Marcelo, o mago

Francisco, o soldado

Bernardo, o soldado

Gertrudes, o cavaleiro do rei

Ofélia, a filha de Polônio

Fantasma da mãe de Hamlet

Primeiro ato

Cena 1

Nos muros altos do castelo, os guardas trocam a vigia...

Bernardo: Ainda bem que chegais, pois o frio, o vento e a noite consumiam aos poucos os meus nervos. As ondas continuam nos mesmos fluxos e refluxos de ontem, daí conclui-se que o clima em nada mudou, ou então, misterioso e estratégico, o mar esteja pronto a lançar tempestades nunca antes vistas.

Francisco: As horas noturnas são tão silenciosas que as guardas se tornam ainda mais cautelosas, e as emboscadas mais prudentes.

Bernardo: Deixei que meu temor tomasse conta de minha prudência, e então, esqueci-me de perguntar-vos a senha, que por ora não se faz necessária, visto que chegastes tão próximos a mim sem que eu vos percebesse, que a morte seria minha companheira se fosseis nossos inimigos.

Francisco: Estavas tão concentrado em teus temores, que esqueceste que o tempo não pára, e que cedo ou tarde chegaríamos para render-te.

Bernardo: Despeço-me, entristecido e com remorsos de não ter sido prudente. Devo esta falha ao glorioso rei. Até amanhã, se assim o nosso Bondoso Deus permitir.

(Bernardo sai)

Francisco: Se o reino dependesse da pontualidade de Marcelo para evitar qualquer ataque inimigo, provavelmente seríamos esmagados sem que soubéssemos a identidade adversária.

(Entram Marcelo e Horácio)

Francisco: Que a vida do rei não dependa da hora que combinas de chegar, mas mesmo assim, sejas bem-vindo, meu caro Horácio. Vejo que trazes contigo o ‘Senhor dos Espíritos’. Tua presença nesta guarda é tão importante quanto necessária, então, sejas bem-vindo também, Marcelo.

Marcelo: O Todo-Poderoso Lucifér permite a alguns de seus ‘hóspedes’ uma breve visita durante as madrugadas. E então, a tal ‘Senhora’ já surgiu hoje aos seus olhos, meu caro Francisco?

Francisco: Com a Graça de Deus, nem aos olhos nem aos meus ouvidos.

Marcelo: A Graça de Deus não impede que estas almas moribundas vaguem por onde desejam; antes isso valesse como verdade, mas não. Os incrédulos costumam zombar da ciência do enigmático, pois vos digo que não deveriam assim agir, visto que na dúvida é melhor se calar. Espero que não tenha sido fruto de vossas imaginações, o que vos garanto, é comum aos habitantes deste planeta.

Horácio: Vi o que vi, e não sei se o que vi fora realmente o que vi. Não sou digno nem vidente, mas não desdenho jamais destes mistérios, que a mim, creio, não competem entender.

Francisco: A curiosidade é inimiga da prudência, e não sei quanto a vós, mas eu me preocupo com o destino do reino, sendo assim, deixo-vos, e então, sigo o meu trabalho.

Horácio: O bom soldado vigia por seu povo, e nós, prestativos e obedientes, devemos assim proceder, e mais, vigiaremos até mesmo o ar que não nos fala, mas sopra-nos melodias de outros mundos.

Marcelo: Fico contigo, enquanto Francisco vigia outras bandas.

Horácio: Se assim preferes, é melhor que sentemos, pois assim o vento tem menos espaço para resfriar-nos.

(Francisco retorna da ronda)

Francisco: (Pensando) O céu está tão limpo, grandioso e medonho que as estrelas me assustam com seus piscas-piscas constantes. Não, não deve ser as estrelas. Maldito fantasma!

Horácio: A hora é chegada. Por certo se encontra ainda a pedir autorização para vagar nesta parada...

Marcelo: Não ouses dizer mais uma só palavra! Eis o nosso fantasma!

(Entra o fantasma)

Francisco: Se não estivesse morta, eu juraria que esta fisionomia é a de nossa falecida rainha.

Horácio: Marcelo, tu que tens o costume de falar com os espíritos, não te intimides, mesmo que o fantasma seja a nossa rainha, mesmo assim, fales com ela.

Marcelo: (Falando ao fantasma) A tua vida não mais pertence a este mundo. Teus dias por aqui já se findaram, e não podes mais influir nos nossos desígnios, pois a Deus, e apenas a Ele, compete este direito. Entretanto, se estás tão nítida aos nossos olhos, é sinal que somos merecedores de teu crédito, então, fala!

Francisco: Não nos cabe dar-lhe uma lição sobre os seus próprios atos. Fales com menos rigor, pois talvez esteja receosa com este encontro.

(O fantasma vira as costas e ameaça ir embora)

Horácio: Não nos deixe a ‘ver navios’, por favor, eu te implora, fica e ‘mata a nossa sede’.

Marcelo: Eu te ordeno, por Deus, fica! e fale-nos o porque vieste, fala!

(O fantasma se retira)

Francisco: Não te disse para seres mais suave com nossa rainha morta. Teus brados assustaram-na, e foi-se, sem dizer uma palavra sequer. Porque não foste mais complacente com esta pobre alma que vive no inferno?!

Marcelo: Desculpem-me, pois eu me empolguei diante de nossa rainha, pois é nossa rainha, não?

Horácio: Se eu a visse ainda viva diante de seu espelho, juro-vos, que não seria tão semelhante a este fantasma.

Marcelo: Perdoem-me por ter sido tão grosseiro, entretanto, se não é a primeira vez que aparece, creio que não será a última.

Francisco: Também creio, que a tua descortesia apenas contribuiu para adiar um diálogo mais franco com a falecida rainha. No entanto, sabemos que quando os soberanos saem de seus túmulos e retornam aos seus reinos, é mau presságio, e então, digam-me, isto é, se desconfiam de algum acontecimento.

Horácio: Os camponeses reclamam que as taxas aplicadas nas suas colheitas estão insuportáveis, e que não obterão lucro algum nesta safra – o que convenhamos, eles têm razão, pois o rei está abusando de seus direitos sobre a terra - . As festas na corte, que outrora significavam que todo o reino progredia, agora, segundo boatos de alguns nobres mais próximos ao povo, representam apenas fanfarrices do rei. Os cavaleiros mais antigos, dignos e fiéis ao reino, foram dispensados pelo atual comandante, o jovem Gertrudes, que manda e desmanda em todo exército sem ao menos ter um mínimo de humildade. A população está descontente com o soberano e seus caprichos.

Marcelo: Não sei se a rainha retornou para indicar-nos que existe algo de muito lamacento no reino, porém, não posso deixar de concordar com tuas apreciações, visto que são tão evidentes aos nossos olhos quanto a própria aparição que acabamos de ver.

Francisco: Se a avaliação de Horácio estiver correta, estamos vigiando um inimigo que somos nós mesmos, e para lutarmos contra esse adversário, bastaria que cometêssemos suicídio em massa. Espero que estejamos redondamente enganados, e que nenhuma desgraça aconteça ao povo deste reino. (O fantasma retorna) Fiqueis quietos! e observeis que os passos são delicados e ainda contém a graça de nossa rainha. Por favor, mãe de todos os filhos deste reino, imploro-te!, que fales a estes honrados servos, o porque desta visita inesperada, mas confesso-te, mesmo que não abras a boca para pronunciar sequer um ‘a’, ainda assim, estou feliz por saber que ainda vives, embora desconheça tua atual moradia. Então, fala-nos, por favor! (O fantasma faz um gesto suave e se aproxima ainda mais) Se tens contigo o destino trágico de teu reino, peço-te que conte-nos os detalhes. (Nesse instante, o pássaro das quatro horas solta o seu canto)

Marcelo: Está indo embora!

(Sai o fantasma)

Horácio: Senti, Francisco, que conseguias acalmar o fantasma, e que a qualquer momento, ainda que esteja longe de eu acreditar, ela nos falaria.

Marcelo: Todas as madrugadas, o pássaro das quatro horas alerta os espíritos errantes que seus momentos nestes recantos se findaram, e que devem regressar imediatamente aos seus locais de ‘descanso’.

Francisco: Se os meus olhos continuam fiéis a mim, sobretudo porque viram coisas nesta guarda que jamais viram, creio que aquelas cores no horizonte são provas que o alvorecer está próximo.

Horácio: Os teus olhos estão tão fiéis a ti quanto os meus estão a mim. Sim, aquela claridade rosada que lá aparece, nada mais é do que os primeiros raios solares. Devemos nos retirar, pois não há mais o porque guardarmos. Digo-vos, que deveríamos relatar o acontecido à princesa Hamlet, que embora tenha sido eternamente rejeitada pela mãe, ainda assim é sua filha, e creio que o fantasma lhe falará. Devemos este favor à nossa estimada princesa, concordam?

Francisco: Concordo!

Marcelo: Por tudo que é sagrado nesta terra, concordo! e sei onde podemos encontrá-la.

Cena 2

Numa das salas do castelo...

Rei Cláudio, Gertrudes, Hamlet, Polônio (conselheiro do rei), Laertes (filho de Polônio), Voltimand e Cornélio (embaixadores do rei)

Rei: Alegrai-vos! Alegrai-vos! o céu está tão azul que convida-nos a apreciá-lo. Mesmo se estivermos trancafiado num quarto com apenas uma pequena janela. O sol convida-nos a passear nos jardins reais, e a namorar cada flor com seus perfumes, que inspiram o amor. Alegrai-vos! meus bons companheiros, pois a vida está acontecendo, e o único dever que todos, inclusive o rei, temos para com ela, é viver.

Polônio: A graça de vossas palavras estimula-nos a correr de braços abertos para a vida. Oh! “Senhor” dos nossos destinos e “Pai” do povo deste reino, por favor, enchei-nos com vossa sabedoria e agraciai-nos com vossa sensibilidade.

Hamlet (à parte): Se as palavras dos “puxa-sacos” fossem levadas à sério, acreditaríamos, realmente, que os poderosos são a casta benigna da sociedade.

Rei: Oh! o povo. Não basta a ele o paternalismo e a liberdade. É como criança que diz: “Eu quero, quero e quero” e , ai-ai! do governante que não lhe der a “teta” que pedem, pois, inicialmente será motivo de conversa “ao pé do ouvido”, para depois, instigados por líderes traidores, conspirarem a “céu aberto” contra o reino. Polônio, meu prestativo e fiel conselheiro, ouviste alguns rumores nas escadarias do palácio sobre uma possível rebelião popular? Os teus ouvidos são aguçados e tens a percepção apurada, então, há ou não uma desordem entre os camponeses?

Polônio: Vossos pensamentos sobrevoam por alturas nunca antes “trafegadas”. Tendes os “olhos”, os “ouvidos”, a “boca”, o “nariz” e todos os sentidos dos “deuses celestes”, e já sentistes, que existe entre o povo, se me permitais a vulgaridade, alguns “baderneiros “desbarbados””, que pretendem desestabilizar o vosso digno governo.

Hamlet (à parte): Os “deuses celestes” a quem este adulador se refere, devem estar irados em seus tronos ao serem comparados com tão “minúsculo ser”, meu pai, o “grande rei dos cavaleiros jovens”.

Gertrudes (pisca para Hamlet)

Rei: Sabes, meu devoto Polônio, os nomes destes impertinentes agitadores?

Polônio: Os ouvidos dos conselheiros de Vossa Majestade têm obrigações que vão desde o mais simples fuxico até a mais miserável das conspirações. Nós, humildes servos e conselheiros de Vossa Majestade, devemos estar atentos, preparados, e então, antecipar, se é que isso é possível, as vossas solicitações com dados previamente disponíveis. Sim, meu glorioso rei, eu os tenho.

Hamlet (à parte): Bastaria que uma mosca passasse próxima ao rei para que este maldito bajulador voasse, e com um só golpe aniquilasse o pobre inseto, todavia, eu gostaria de acompanhar de perto uma insurreição popular. Provavelmente, esta erva-daninha se esconderia atrás de uma cortina.

Hamlet (disfarça e manda beijos para Gertrudes)

Rei: Vamos, então, conte-me quem são estes vermes?

Hamlet (à parte): Vermes! eu sei quem são, pois então, somos todos nós.

Gertrudes (disfarça e mostra zona erógena a Hamlet)

Polônio: O campo produz bons e maus frutos, e mais, é comum que estas frutas podres contaminem todo o pomar. Porém, a mosca que contaminou o primeiro fruto deixa neste os seus ovos. Meu poderoso rei, já disponho dos nomes destes “frutos bichados”.

Hamlet (à parte): Oh! “inseto-humano”, és a pior qualidade de mosca que existe na natureza.

Hamlet (abaixa-se e mostra os seios a Gertrudes)

Rei: Me afliges com tanto discurso. (Hamlet ri) Digas logo os nomes!

Polônio: Claro! meu glorioso rei. Os desnaturados, infames, mau agradecidos e traidores se resumem em apenas um: Fortimbrás, pescador e líder dos pescadores.

Rei: As idéias mais que progressistas deste maldito “desbarbado”, sempre me deixaram com as “barbas em molho”. “Ao rei o que é do rei e ao povo o que é do povo”, lembro-me bem destas palavras proferidas por aquele “pescadorzinho”, naquele discurso em praça pública, quando comemorávamos a última temporada de pesca de salmão. Sou a mãe (Hamlet ri) que estes miseráveis jamais tiveram, e me entreguei todo (Hamlet ri) ao meu povo. Gostaria de vê-los governados por tantos tiranos que conheço, e aí sim, seriam apenas vassalos do reino. A “maldição da liberdade” está prestes a encenar mais um capítulo da infindável novela da vida humana. Voltimand e Cornélio, notáveis pacificadores e diplomatas eméritos, tendes o dever de conter as avançadas deste pescador. Ireis até ele e, disfarçados do mais bondoso caráter (Hamlet ri), procurareis os motivos que o levam a se levantar contra o reino. Aconselhareis a este Fortimbrás que a paz sempre será a única companheira fiel de todos nós.

Gertrudes (mostra novamente zona erógena a Hamlet)

Voltimand: Falaremos em nome de Vossa Majestade ao “pescadorzinho” Fortimbrás. E, modéstia à parte, visto que fomos escolhidos por Vossa Majestade, colocaremos o pescador no seu devido barco.

(Laertes percebe os sinais de Hamlet e Gertrudes)

Rei: Somos crentes em vossas capacidades, até breve! (Saem Voltimand e Cornélio) Laertes, tua presença na corte é sempre vinda de bons presságios. Tua estada no estrangeiro deixa um vácuo no palácio, então, o que queres? Sabes que deste coração régio terás sempre o que desejares. O reino é um eterno devedor da dedicação de teu pai. Peças!

(Hamlet faz gestos obscenos a Laertes)

Laertes: Rei dos reis, a vossa bondade para comigo é algo que jamais esquecerei, pois a nós homens honrados cabe apenas a fidelidade e gratidão. Conhecer outras culturas e me aprimorar na arte bélica para servir ao reino, é o mínimo com que posso retribuir a vossa imensa bondade. Peço-vos que me autorize a viajar para outros mundos distantes, e que ao regressar com mais conhecimentos que quando parti, sirva-vos ainda com mais devoção.

Rei: Não cabe a mim permitir ou não a tua partida. Teu pai consente esta viagem, então, Polônio, autoriza-o?

(Laertes não reage aos gestos de Hamlet, apenas sofre)

Gertrudes (à parte): É tão belo quanto servil este pobre Laertes, todavia, nunca se furta dessas viagens. Guardo apreço por ele.

Polônio: O que é a vontade do pai senão fazer as vontades dos filhos? Convivo com a ausência de Laertes apenas pela sua vontade, mas sigo o desígnio de todos os pais, então, que parta!

Hamlet (à parte): Se não o conhecesse como o conheço, choraria ao ouvir estas tristes palavras, mas...

Rei: O viajante sabe o melhor dia para partir, então, Laertes decidas tu mesmo o quando desejas partir. Hamlet, minha filha...

Hamlet (à parte): Às vezes, o rei se esquece, e lembra que sou sua filha.

Rei: Observo-te, e confesso-te que estou preocupado contigo. Andas daqui para lá e de lá para cá como se não soubesse o destino a seguir. Estás perturbada?

Hamlet: Meu pai, se assim posso vos chamar, os passos de uma mulher nem sempre são comandados por ela. A natureza nos escolheu como sua procuradora, e mais, nos impôs esta condição, pois não escolhemos representá-la. Às vezes vou a um lugar sem saber o porque e como chegar, mas vou... e, quando percebo onde estou, enfureço-me com minha irmã gêmea, e retorno.

Gertrudes: Hamlet, encantadora princesa, todos sabemos que és filha única...

Hamlet: Gertrudes, fiel (Hamlet ri) cavaleiro do rei, tua observação é tão verdadeira quanto a devoção que tens pelo rei, todavia, nós não somos apenas carne, ossos, sangue e espírito. Um universo ainda desconhecido acompanha-nos nesta jornada terrestre, e então, sem mais saber sobre este universo, e mais, querendo ardorosamente a presença de uma irmã, chamo este desconhecido de irmã gêmea.

Rei: Se não bastasse o teu comportamento alucinado e delirante, ainda transitas neste mundo sem fronteiras de nossa mente. Tuas freqüentes clausuras, mesmo contra a minha vontade (Hamlet ri), colocam-te frente a frente com as paredes de teu quarto, e sem ter a quem falar, falas contigo mesma, e pior, sozinha.

Hamlet: Meu rei, as vossas preocupações (Hamlet ri) me causam espanto e medo. Acostumei-me a viver cercada de móveis velhos e paredes mofadas. Os livros, companheiros dos solitários, conduzem-me para todos os lugares conhecidos, e mais, com o auxílio destes prestimosos magos, são freqüentes as minhas viagens a mundos desconhecidos. Imaginação que se alia à ilusão. Gertrudes, és “devorador” de livros, ou não?

Gertrudes: Hamlet, belíssima princesa, o meu amor pela leitura é mais que um simples fascínio, talvez até por querer ser mais que sou, e sobretudo, por vir de classe tão inferior. Aprecio, como bem o sabeis, da leitura das histórias dos cavaleiros (Hamlet ri pois sabe que Gertrudes mente, visto que este lê os mais picantes poemas), e nelas enriqueço o conhecimento sobre as aventuras destes homens memoráveis.

Rei (zangado): Hamlet, as leituras de Gertrudes não vêm ao caso. Falo, e insisto que estou preocupado com tua conduta, pois a mim como pai, e antes como rei, cabe o dever de conduzir-te ao mundo conhecido, a este em que todos vivemos.

Hamlet: Procurarei, Vossa Majestade e meu pai, caminhar por caminhos onde os olhos que me observam, possam satisfazer-se por ver uma dama da corte viver normalmente.

Rei: Que Deus acompanhe os teus passos.

(Saem todos menos Hamlet)

Hamlet: Preocupado e aborrecido comigo, mas porque? O desprezo é a maior de todas as torturas, e as seqüelas que deixa é tão venenosa para o algoz quanto para o torturado. Neste maldito reino sou apenas a lembrança da rainha, e me esconder de todos, como fez com ela, é parte de seu governo. Este glorioso rei, como diz o puxa-saco do Polônio, é o mais déspota de todos os tiranos, entretanto, seu reinado tem a marca do liberalismo, e por trás dessa liberdade se esconde a sua tirania. Agrada-me saber que existe no meio de tantos alienados um líder, e que se distingue por discernir o que é do povo e o que é do rei. Poderia me aliar a este bravo pescador, mas o que faria eu para ajudá-lo? Enfim, minha “loucura” desperta interesses de olhos que jamais me olharam, e sei, estes olhares não têm boas intenções para comigo, e mais, esta preocupação vulgar e descabida tem propósitos outros que os aparente. A simulação é a realidade que todos vêm, e por trás dela existe a verdade. O que é mais sórdido e mórbido: esconder a verdade ou mostrar a mentira?

(Entram Marcelo, Horácio e Francisco)

Marcelo: Vida prodigiosa à princesa!

Horácio: Glória e paz à princesa!

Francisco: Flores do campo à princesa!

Hamlet (a todos): Como viestes até mim?

Marcelo: Disseram-nos que Vossa Senhoria estava nesta sala, e deixaram-nos entrar, apenas isso.

Hamlet (a todos): Creio, então, que os olhos que durante toda a vida me isolaram no quarto, agora, sem saber o “real” motivo, me libera para o mundo. Não é estranho!? Mas, me desculpais por não retribuir as vossas gentilezas de saudação. As vossas presenças diante de mim são mais que agradáveis, pois são verdadeiras, e isso logo se vê quando se olha para vossos olhos, que sinto estarem apreensivos, ou não?

Marcelo: Presente do nosso futuro, as vossas observações são sempre agraciadas de sensibilidade. Sois, e bem sabeis que é verdade, a nossa esperança.

Hamlet: Marcelo, não estás aqui, como sei que Horácio e Francisco também não o estão, para descrever as minhas virtudes e os meus defeitos. É claro, visto que não sou habituada a receber atenção alguma da realeza, que me lisonjeias com estes elogios, mas vamos ao que interessa, e então, porque tanta ansiedade?

Francisco: Princesa, não é a ansiedade que nos traz até vossa presença, mas, medo acompanhado de preocupação, o que poderia acarretar ansiedade, mas não, estamos apenas amedrontados e preocupados.

Hamlet: Francisco, a tua presença neste palácio é mais que bem-vinda, e não saberia como agradecer-te pela visita, mas conte-me, porque viste, e a quem ou a que se deve esta ansiedade, ou melhor, este medo e preocupação?

Francisco: É a rainha, Senhora...

Hamlet: A rainha, minha mãe, está morta e enterrada como cristã, mas, como pode uma mulher que faleceu a tantos anos deixar três valorosos soldados tão apavorados, e me desculpeis, mas tão ansiosos?

Marcelo: Vossa Senhoria bem o sabeis que transito pelo mundo dos espíritos, e...

Hamlet: Sei, e gostaria também de transitar nestas ilusões, mas...

Marcelo: Tendes a visão aguçada, e podeis ver, com algum treinamento, imagens que jamais imaginastes existir. Vossa mãe era uma mulher maravilhosa e ninguém poderia esquecê-la se a visse ao menos uma vez...

Hamlet: Conheceste minha mãe?

Marcelo: Poucos a conheceram, porém, os magos são sempre bem-vindos na corte, e certa vez a rainha me pediu que lesse a sua belíssima mão...

Hamlet: Foram tão poucos os momentos que passei com ela, que não consigo me lembrar de sua face. Mas, conta-me mais...

Francisco: Há pouco tempo a guarda noturna foi intensificada, pois existe rumores de uma possível rebelião popular, e como: “onde há fumaça há fogo”, estamos com os olhos bem abertos. As sombras que a madrugada produz não são apenas de corpos vivos e escondidos. Há duas noites que um espectro, e agora afirmo mais que ontem que é verdadeiramente um fantasma, e mais, que o espectro a que me refiro não é ninguém mais que vossa mãe, visto que Marcelo a conhecia, e também a viu.

Hamlet: Sei que vós não me enganaríeis com histórias sem propósito. Onde aconteceu esta visão?

Horácio: Anteontem, eu e Francisco, fomos surpreendidos com o espectro, mas julgamos ser apenas uma miragem, embora o tenhamos visto cada um com seu par de olhos. Resolvemos contar a Marcelo sobre a aparição, e ele, colocou-se à nossa disposição para averiguar o acontecido com seus próprios olhos, que sabemos ser mais aguçados que os nossos para visões do outro mundo. E lá estava a rainha na plataforma - reconhecida por Marcelo - , a aparecer novamente...

Hamlet: Vós conseguistes falar com o espectro?

Marcelo: O espanto, a soberbia e o horário nos impediram este diálogo. Porém, acreditamos que a rainha deseja revelar algum segredo, e então, decidimos vos contar esta estranha história. As mães continuam mães até depois de morrer, e pensamos que queira apenas a vós revelar o que sabe.

Hamlet: Confio em vossos relatos, e serei prudente, e convosco estarei à guarda nesta noite. Falarei à rainha e descobrirei se existe algum segredo a ser revelado. Agradeço-vos pela confiança em mim depositada. Sois fiéis e honrados, o que não consigo observar dentro desta maldita corte.

Francisco-Horácio-Marcelo: Que Deus esteja convosco!

Hamlet: Que a presença Dele esteja sempre em vossos corações! (Saem Horácio, Francisco e Marcelo) Ver, falar, ouvir, menos tocar em minha mãe. Falará como rainha ou como mãe? Trará o leite que jamais me amamentou ou mostrará a face da qual não me lembro? Tenho que conter a ansiedade e, calmamente e normalmente esperar por esta noite.

(Sai)

Cena 3

Nos aposentos de Ofélia

Laertes despede-se de sua irmã

Laertes: É tão perigoso deixar-te desprotegida em meio a esta alcatéia de lobos famintos. Receio, e sei que sou indigno por isso, que estarás ainda mais exposta sem a minha presença. Maldita personalidade vulgar e cigana, mas o que fazer? meus pensamentos são como aves migratórias, que voam pra lá e revoam pra cá, num enigma permanente de num verão não encontrar o alimento necessário. Adeus, minha querida irmã, e que Deus esteja sempre contigo.

Ofélia: Meu doce e amado irmão, a tua preocupação não é necessária, pois embora transpareça que sou ingênua e indefesa, o que caracteriza a minoria das donzelas da corte, não o sou, e mais, tenho armas que ninguém conhece, ou, melhor, nem desconfiam que possuo, mas garanto-te, as possuo reservadas e guardadas a sete chaves.

Laertes: Ofélia... Ofélia... Ofélia... o amor cega até mesmo aos cegos, então, o que se dirá de uma belíssima donzela como a que és. Teus ouvidos, e não digo os teus olhos pra não encabular-te, estão recheados de promessas e lirismo, e sei, aconselhado por meu instinto de homem, que teus desejos estão tão ardentes e esperançosos, que bastarão mais alguns versos decorados, para caíres como presa fácil, na armadilha deste oportunista, Gertrudes. Desgraçado!

Ofélia: Teus conselhos me ofendem, e embora saiba que venham acompanhados de carinho e proteção, me ofendem, pois se, meus ouvidos e olhos têm atenção especial para Gertrudes, os dele, morrem de amor por mim, e não são apenas versos decorados, não, os que me declamam são seus, e claro, agora meus.

Laertes: Ofélia, minha inocente e ingênua irmã, estes versos declamados por Gertrudes a ti, podem ou não ser deste impostor (Ofélia fica horrorizada), mas os gestos obscenos que acabo de ver na sala dos troféus do rei, nosso glorioso soberano, e que Deus o conserve para sempre, não foram de alguém que pensa em entregar o seu amor apenas a ti. Não.

Ofélia: Que gestos impudicos viste, meu irmão? Fala! (Entra Polônio, alvoroçado)

Polônio: Anda, Laertes! tua lerdeza atrasa a todos, anda! Que fazes, e o que é impudico, minha filha?

Laertes: Pai, dizia a Ofélia que a caça também deve estar preparada, pois o caçador sempre se prepara. (Polônio olha para Laertes sem saber do que se trata)

Ofélia: Sinto-me insultada ao ser colocada como uma simples presa de um caçador, que segundo Laertes, se trata de um despudorado e desqualificado. Como!? (Polônio olha para Laertes ainda mais perplexo)

Polônio: Não há mais tempo para questões pudicas ou impudicas. Teus companheiros de viagem esperam-te para embarcar. Não há mais tempo a perder. Vá! e que Deus te abençoe. Quanto a quem e o que fazem a Ofélia, isso eu te garanto, deixes a cargo de teu pai, então, vá!

Laertes: (Com algumas lágrimas nos olhos) Deixarei a ti, meu pai, pois sei que resolverás esta questão, sem mais, despeço-me, e adeus! (Sai Laertes)

Polônio: (Com ares de quem já se esqueceu da partida de Laertes) Diga-me, a quem Laertes se referia? e o que são estes gestos obscenos? Fala!

Ofélia: (Com lágrimas nos olhos e soluçando) Laertes... se referia... a possíveis trocas... de gestos obscenos... entre a princesa Hamlet... e o cavaleiro Gertrudes. Eu não acredito, meu pai. Não acredito! (O choro aumenta ainda mais ao terminar)

Polônio: (Encostando a cabeça de Ofélia em seu ombro direito) Minha inocente criança. Não creias que como te vejo, outros também a vêem, não. Cresceste, e te tornaste uma belíssima donzela, e estas, vítimas de suas próprias inocências, são cortejadas, aduladas e por fim, molestadas por todos os tipos de canalhas. Se teu irmão, um viajante sem juízo, se apercebeu de algo que poderá te prejudicar, e isso, certamente, viu com olhos de homem, devemos dar-lhe crédito, pois se preocupa com tua conduta.

Ofélia: (Separada de Polônio por dois passos) Meu querido pai, sei do zelo que Laertes tem para comigo, porém, Gertrudes...

Polônio: (irritadíssimo) O que tem este maldito plebeu? Eu o mato!

Ofélia: (Com os olhos baixos)Eu dizia, meu pai, que o cavaleiro Gertrudes me diz coisas, e estas coisas, garanto-te, são ditas com muito respeito e carinho, e mais, declara-se perdidamente apaixonado por mim. Às vezes, confesso-te, inclino-me a acreditar nas belas palavras que me diz, entretanto, devido ao recato a que fui educada, me resguardo, e sei conduzir essas possíveis investidas com alguns “nãos”, e mais nada.

Polônio: (Respirando mais aliviado) Este cavaleiro, que hoje é um dos “braços direitos” do poderoso rei, e que entrou sabemos lá por qual porta, é insinuante, galanteador, e sobretudo, belo. Todas as damas da corte, inclusive as casadas, o cortejam, e ele, inspirado por sua condição de plebeu, ainda que hoje ostente um dos postos mais importantes do reino, gaba-se todo, e retribui com estes gestos obscenos, aos quais se referiu Laertes, a todas essas damas vulgares, e também obscenas da corte. Mas, a quem Gertrudes desferia tais gestos?

Ofélia: (vira-se de costas ao pai) À princesa Hamlet...

Polônio: (Tão feroz quanto um leão esfomeado) Desgraçado! eu sabia... aquela cara de menina ingênua, embora extravagante, nunca me enganou, e aquele cavaleiro sem escrúpulos se apercebeu disso, é claro! Desgraçado! Contarei ao rei...

Ofélia: (Aos gritos) Não! não! e não! Prometa-me que não dirás nada ao rei... prometa-me, meu pai!

Polônio: Puxando os poucos fios de cabelo que restam na cabeça) Prometo-te! mas, também me prometerás que ficarás bem longe deste despudorado, prometa-me!

Ofélia: (Deitada de bruços na cama, e soluçando) Prometo-te! Prometo-te! Prometo-te!

(Polônio sai do quarto, enfurecido)

Cena 4

Na parte mais alta dos muros do castelo

Hamlet, Horácio e Marcelo

Hamlet: A nudez deveria ser o nosso vestuário. Torturar o corpo, impedindo-o, por inteiro, de saborear o frescor do ar da madrugada é uma heresia aos nossos próprios direitos como seres humanos. Marcelo, meu caro mago, quantos cultos clandestinos não estão ocorrendo, agora! e buscando nas misteriosas planícies do enigmático, um contato que os coloquem frente a frente, com o que tantos chamam de irreal. Não estou nem céu, nem terra, e embora os olhos radicais de tantos me vêem como uma alucinada, em nada o sou. Entretanto, não contesto estes olhares impiedosos e reais, pois jamais seria capaz de agraciá-los com atitudes normais, visto que não suporto tais olhares.

Marcelo: Hamlet, doce princesa, há cidades espirituais habitadas por almas de olhos enormes, porém, nada é visto; noutras, extremamente ruidosas, residem espíritos dotados de orelhas imensas, mas, nada ouvem; há ainda aquelas onde todos possuem bocas que não deixam espaço para mais nenhum sentido, entretanto, nada conseguem falar, ou seja, são mudas. (ouvem-se gritos pederásticos) O mundo desconhecido... (mais gritos sodômicos)

Hamlet (rindo): Existe espaço no mundo espiritual para orgias? afinal, os anjos não têm sexo. E os “diabinhos” ?

Horácio (apreensivo e cauteloso): Esses gritos alucinantes me arrepiam, e embora procure distração “contando estrelas” , meus pêlos ficam todos eriçados.

Hamlet (ainda rindo): Se teus pêlos se eriçam por desconhecer as razões de tantos gritos pederásticos vindos do aposento do rei, o que serão destes pobres pêlos que protegem esta pobre princesa? Gertrudes, o nome do grito que acompanha o grito do rei, ainda consegue encontrar energia para outras orgias.

Horácio: Silêncio! (Ouvem gritos de revolta) Há dias estes gritos ecoam em meus ouvidos, e o que posso fazer senão ouvi-los? pois, a cada grito erótico, respondem com gritos revoltosos. Jamais neste reino se viu sangue derramado entre os seus habitantes. E, agora...

Marcelo: Os gritos de farra e estes gritos de rebelião me parecem ser os motivos pelos quais o espectro da rainha quer tanto vos falar.

Horácio (alguns morcegos enormes sobrevoam a plataforma): Malditos! animais noturnos que maculam as madrugadas sugando o sangue de inofensivos animais. Há rumores de que são cadáveres que nunca aceitaram a morte, e após uma longa batalha com os soldados de Lucifér, retornaram à terra para viverem de sangue, o alimento da vida.

Hamlet: E então, a que horas os restos de minha mãe aparecem? Estamos a ouvir gritos de todas as espécies, e até alguns animais que nunca se mostram durante o dia, por aqui resolveram transitar, e nada! absolutamente nada da rainha.

Marcelo: Aquela estrela (aponta o Planeta Vênus) não morrerá no horizonte (cessam todos os gritos) antes que o espectro de vossa mãe, a grande rainha, surja dentre as nuvens espirituais. (o espectro aparece a vinte passos dos três)

Hamlet (agora, emocionada, e falando ao espectro): não é a distância que me impede conhecer-vos. A vossa face, ainda que irreconhecível pelos passos que nos separam, tem um quê familiar, e não posso dizer-vos que esta emoção tem raízes que provém de vosso ventre, não, sou virgem, enquanto visões espirituais, e isso é que me emociona. Venha! Venha para mais perto! Se sois quem acreditamos que sois, venha! pois desejo conhecer-vos. ( o espectro faz alusão a se aproximar, mas não sai do lugar). Venha!

O espectro (à parte): É incrível como cresceu a minha filha!

Hamlet (falando ao espectro): Qual nuvem trouxera nos seus assentos tão formosa criatura? Vossa face está pálida e sem vida, e mesmo alva como a mais virgem das neves, ainda assim, sois bela! Se sois quem acreditamos que sois, venha!

Marcelo (certo que é a rainha): Não há dúvida alguma de quem se trata, e para isso bastaria conhecê-la por apenas uma vez. É certo! eis a nossa soberana, ainda viva, embora habitante de outro reino... (o espectro, emocionado, faz sinais para que Hamlet se aproxime)

Horácio (trêmulo, porém, sem medo): Vejam! Vejam! Vossa Majestade faz sinais para que Hamlet se aproxime. Era verdade! a rainha desejava realmente falar à nossa princesa, vossa filha. Agora, nem o mais estrondoso dos uivos me assustaria, e a minha espada combateria a quantos guerreiros viessem interferir este momento. (o espectro acena novamente, e parece impaciente com tanta indecisão)

Hamlet (aos prantos, dirige-se até o espectro): Espere-me! Aí irei para ouvir-vos...

Marcelo (pernas trêmulas, e voz enroscada): Nem se chamasse por todos os magos, de todas as esferas, presenciaria visão tão clara e surpreendente. A quem pertence este reino a quem a nossa rainha presta contas? Pois sei que esta face pálida é tão devedora quanto sei que me chamo Marcelo.

Horácio (pernas trêmulas, quase sem voz e preocupado com a princesa): Sei que vi o que vejo, e o que vejo é tão verdadeiro que nada me faz pensar o contrário, mas, e se esse espectro estiver nos enganando, e, assim que a princesa estiver bem próxima a ele, então, possuidor de todos os truques do inesperado, se converter no mais tenebroso dos monstros?

Marcelo (ainda as pernas trêmulas, embora, agora, com a voz severa): Ora! Marcelo. Aos diabos com estes teus tormentos...

Cena 5

A doze passos de Marcelo e Horácio

Espectro e Hamlet

Hamlet: A uma menina de três anos, aprisionada, e esquecida por todos, não seria possível distinguir nem a própria face. Todavia, o coração que bate regularmente e irriga o corpo com as células da vida, reconheceria, ao menos as células, àquela a quem deixou-se transportar-nos por tão longo período. Sei, és a rainha, minha mãe... (ainda em prantos)

Espectro (aparentemente, aflito): As tuas células ainda são as minhas células. Estiveste, por toda tua vida, entregue ao vazio de pais vazios. Tenho pressa! O tempo é meu inimigo, e meu verdugo. Tenho pressa!

Hamlet: Ainda que desaparecesses neste instante, mesmo assim, meu coração solitário e desprotegido, pulsaria como nunca pulsou. Cuspamos neste teu miserável vigia...

Espectro (ainda, aflito): Pago as dívidas que fiz em vida. Nem mais nem menos, e sim, a medida exata. Todavia, não estou aqui para falar-te sobre minha pena, que é justa, mas sobre teu pai, o rei...

Hamlet (impaciente, e sem lágrimas): O rei!? o que fez meu pai... (Hamlet parece saber de algo, mas mesmo assim, está surpresa)

Espectro (voz acelerada): Tinhas apenas três anos quando, por mero acaso, descuido e embriaguez, fiquei grávida...

Hamlet (visivelmente, espantada): Grávida!? Como!?

Espectro (ainda, a voz acelerada): O rei, teu pai, ao saber da gravidez, me prendeu numa das torres do castelo. Ali, confinada a sete chaves, passei o resto dos meus sete meses de vida. A cama resumia-se num colchão de palhas de milho, e fazia as necessidades fisiológicas numa pequena bacia de porcelana, que era trocada uma vez a cada dois dias. A alimentação era servida sem higiene alguma, e eu comia, pois queria viver, e trazer ao mundo aquele filho que crescia, e crescia...

Hamlet (irritadíssima): Maldito! Maldito! Maldito!

Espectro (a voz menos acelerada): A barriga mostrava à serviçal – orientada pelo rei para tratar-me como a uma mendiga – que aquela criança teimava em resistir aos maus tratos, e enfrentava, mesmo quieta, a todos os desconfortos e atrocidades. Um, dois, três, quatro, cinco, seis meses... a paciência do pequeno príncipe não era menor que meu sofrimento. Explodiu, como que para vingar a todos, da barriga, e então, morri... um cavaleiro do rei, que me visitava quando podia, naquela noite fria e sem luz, adentrou na torre, e vendo-me morta, e a criança a chorar, embrulhou-a numa manta, e levou-a à choupana de bons camponeses... que a criaram...

Hamlet (espantada): Então, eu tenho um irmão! ele está vivo? Quem será ele? Quem!?

Espectro (a voz calma): A morte não me permitiu criá-lo, porém, concedeu-me o prazer de vê-lo crescer, e então, aí aconteceu a desgraça... (hesita) tornou-se um belo rapaz: educado, culto, fino, ou seja, um belíssimo príncipe criado por bons camponeses... (hesita, novamente)

Hamlet (aturdida): Conte-me! conte-me, tudo! Quem é este príncipe sem honrarias? Quem é meu irmão?

Espectro (a voz acelerada, sabendo que lhe resta pouco tempo): Minha doce Hamlet... (hesita, novamente) a desgraça veio ocupar lugar de destaque no reino... (hesita, novamente) Gertrudes, é teu irmão!

Hamlet (convulsiva): Incesto! Incesto! Incesto! (morcegos em revoada)

Espectro (quase sem voz, sabendo que lhe não lhe resta tempo algum): Aos transeuntes da madrugada não resta mais tempo. Incesto(?), sim! Adeus, minha pobre Hamlet, adeus! (o espectro desaparece)

Hamlet (ainda, convulsiva): Incesto! Incesto! Incesto! Maldição ao rei! Maldição ao reino! Vingança ao rei! Vingança a meu pai! Maldito! Maldito! Maldito! (desmaia)

Marcelo (correndo): O que foi!? A princesa desmaiou!

Horácio (correndo): Gritos! Gritos horríveis e assustadores! O que teria feito o espectro?

Marcelo (com Hamlet nos braços): Nada, miserável! Emoções, apenas emoções...

Horácio (desesperado): Está viva!?

Marcelo (tentando despertar Hamlet): Está viva... apenas viu mistérios, e ouviu muitos segredos. ( o espectro ressurge)

Hamlet (ainda zonza): Sonho!?

Espectro (apressadíssimo): Não! apenas a morte falando aos vivos... vingança, jurai?

Hamlet (ainda zonza): Juro-te! Juro-te! Pela salvação de tua alma, juro-te!

Horácio (desesperado): Jurar, o quê?

Espectro (apressadíssimo): Jura!?

Hamlet (lúcida): Juro-te! Juro-te! (o espectro desaparece)

Marcelo (emocionado): Eu tinha razão! Eu tinha razão! Era a rainha, e queria-vos falar, doce Hamlet...

Hamlet (severa): A rainha, minha mãe, contou-me fatos que convulsionariam até mesmo o paraíso de Deus. Não poderei guardá-los para mim, pois sucumbiria ao primeiro passo. Juram-me que guardarão segredo? Juram-me?

Marcelo: A fidelidade à princesa é o nosso único dever. Juro-vos!

Horácio: Desta boca jamais sairá uma só palavra desta confidência. Juro-vos!

Hamlet: O rei, meu pai, enclausurou minha mãe numa das torres do castelo ao saber que estava grávida, e assim, ela teve um filho, e morreu. Gertrudes... oh! desgraça... é meu irmão... juram-me, que me ajudarão a vingar de meu pai, o rei... juram-me!?

Marcelo: Pela minha honra, juro-vos!

Horácio: O enxofre do inferno será pouco... juro-vos!

Hamlet (sorrindo, e quase cantando): Então, devo voltar ao meu aposento, e como se nada houvesse, retornarei às minhas loucuras. Vin-gan-ça! Vin-gan-ça! Vin-gan-ça! Vin-gan-ça! (a manhã chega, então, todos saem)

Acordei aos gritos de vingança, que certamente não saíram das “gargantas” dos sapos que faziam uma barulheira ao meu redor, mas sim de algum labirinto que teimava em fazer parte dos meus corredores escuros. A voz suave e moribunda de minha mãe não mais me atormentava, afinal, sua morte era real, e não nutria esperança de realmente ouvi-la. A noite não era apenas noite debaixo daquelas árvores, não, era noite também no céu por detrás daquelas folhagens, e eu, ainda zonzo de tantos delírios e sonhos, gritei aos ouvidos que queriam me ouvir: me deixem em paz... e como que escravo das minhas ordens, reinou-se ali um silêncio total – nem mesmo aqueles sapos roncavam mais - . Assumi a postura que costumo assumir quando estou acompanhado, e então, me retirei.

Havia lama na estrada que me conduzia de volta à cidade, e eu, surpreso, pois não senti uma gota sequer de chuva durante o sono – pareceu-me que chovera em todo globo terrestre, menos naquele meu esconderijo - , desviava das poças mais suspeitas. Lembrei-me, então, de um conto de Púchkin, “A Nevasca” – adoro a literatura russa, e principalmente os autores do século XIX - que li havia muito tempo, e pensei: “Porque, como Wladímir, não consigo me atrasar para os encontros importantes?” Nunca haverá uma Maria a me esperar num lugarejo qualquer deste planeta! é isso.

Quando cheguei em casa me espantei com a desordem que percebi logo ao adentrá-la, e sei, ela, a casa, também parecia que me olhava espantada, e até aterrorizada, e não era sem motivo, pois alguém havia invadido-a . Minha casa não é grande, aliás, é pequena, e mais, tem o tamanho e as divisões adequadas para o que necessito, apenas isso. Em pouco tempo vistoriei-a completamente, e então, mais surpreso fiquei do que quando cheguei, pois não havia(m) levado absolutamente nada, nem de valor, nem sem valor. Nada!