DONA NÍCIA E A LUA NOVA...

Aos 84 anos , D.Nícia dava sinais de que viveria muito além dos 100... Sofria de uma doença no coração que, segundo os médicos, lhe levaria embora na adolescência, ou no máximo até o nascimento do primeiro filho. Perdeu dois - no mesmo dia - e estava grávida do terceiro, que nasceu sadio. Depois desse, mais dois... Ao todo, cinco filhos... cinco partos... e ela continuava ali, recebendo da vida afagos e golpes de foice...

Um a um, os filhos foram batendo asas, até que um dia, a morte lhe roubou o marido. Sábiamente rodeou-se ainda mais dos amigos. Era fácil gostar dela... Cozinhava pecaminosamente bem, viajava sempre que o dinheiro dava, vangloriava-se de coisas que garantia ter feito, mesmo que as estórias mudassem cada vez que as contava... Era feita de alegria...

Guardava garrafas vazias de licor - as de boa qualidade - e preparava, ela mesma um licor "parecido" para oferecer aos amigos...-"Esse eu comprei Madrid...", garantia, olhando pra filha com uma expressão "fica quieta, deixa eu me divertir um pouquinho..."

A primeira neta talvez tenha sido sua grande paixão... Embora lúcida, a chamava muitas vezes pelo nome da filha... ato falho facilmente explicável... Seus olhos brilhavam quando alguém garantia ver nas duas extrema semelhança...

Adorava festas e gostava tanto de presentear, que mal um Natal acabava, já começava a comprar novos mimos... Por economia ou mania, guardava papéis de embrulho e laços de fita para usá-los mais tarde... No fundo das gavetas escondia presentes que havia recebido e detestado para "passar a diante"...Muitas vezes, com o passar do tempo, a tal lembrancinha voltava às mãos da mesma pessoa que lhe presenteara...

Vivia com pressa de ver, de viver, de vivenciar tudo... Pedia à Lua Nova que a deixasse ter saúde até o final de seus dias.

Olhava para o céu e dizia:

"Salve, salve, Lua Nova, onde Deus fez a morada... Onde moram o cálice bento e a hóstia consagrada... Saúde prá cá, doença pra lá"... (repetia 3 vezes).

Aquela manhã de novembro havia sido escolhida para a compra de mais algumas lembrancinhas de Natal... afinal, sempre aparecia alguém com um presentinho e ela não gostava de ser pega de surpresa, sem nada para retribuir...

Ao atravessar a rua não viu o táxi, ou simplesmente acreditou que suas pernas não fossem lhe trair... Afinal, gabava-se da forma física, zombava dos médicos com seus diagnósticos sombrios desde menina, rasgava receitas... Assim, Dona Nícia, aos 84 anos, morreu atropelada...em pleno exercício da vida...

A Lua Nova , quem sabe... tenha atendido aos seus pedidos...

Belinda Tiengo
Enviado por Belinda Tiengo em 03/07/2008
Reeditado em 19/08/2008
Código do texto: T1063203
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