A CHUVA
Sentiu a pancada nas costas e, num movimento rápido, voltou-se para ver se identificava quem o agredia. Ninguém. Na rua deserta, o vento brincava com um pedaço de jornal e as notícias dançavam ao som de uma música inaudível. No céu, densas nuvens davam-se as mãos e cobriam o azul numa ciranda diferente. No chão, ao seu lado, um pequeno livro, desses de bolso.
Levou a mão à cabeça. Doeu, mas não chegou a ferir. Mesmo assim, queria pegar seu agressor, dizer-lhe umas boas.
O livro? Renato nem se preocupou em saber o título da arma que o acertara, seu autor, de que tratava... Que diferença faria? Que importância isso teria em sua vida? Sempre viveu sem depender dessas futilidades! Sabia negociar. Comprava, vendia e trocava como ninguém. Nunca havia folheado seriamente uma arma como aquela nem lhe conhecia a inusitada utilidade. Era incapaz de desvendar-lhe os meandros e os macetes, como o fazia com habilidade em seus negócios. E isso, culpa alguma lhe incutia. “Objetos inúteis! Ainda mais neste mundo cão! ”
O saber de que precisava, via-o nos olhos de um cliente ou de um fornecedor, na intenção que um sorriso opaco podia ocultar. “Objetos inúteis! Nada acrescentam!” A não ser que se os utilize para fim tão pouco nobre: “atacar cidadãos de bem!” Vivia sem aquilo desde pequeno e não seria agora que mudaria sua postura, mesmo tendo sido acertado direto na cabeça por um ponto de vista contrário ao seu.
Seguiu caminho.
Ainda desconfiado, olhou para traz, mas não havia realmente ninguém, apenas ele e o livro.
Já absorto noutros pensamentos, dobrava a esquina da rua do alto quando sentiu nova pancada um pouco acima da nuca, dessa vez mais forte que a anterior. Essa outra edição, embora ainda no formato bolso, pareceu-lhe mais robusta, o suficiente para lhe provocar um pequeno inchaço no local. Renato correu a dobrar a esquina de volta em busca do autor, não do livro, mas do ato. Sem resultados. Sentiu certo estranhamento na realidade a sua volta. Aquilo o incomodara. Pensou em fugir, mas não havia necessariamente de quê nem por que, nem para onde. Ocorreu-lhe olhar para cima. Chuva? E essa agora! A pé, sem guarda-chuva, e sendo atacado por algum imbecil desocupado!
Apertou o passo, queria se ver logo livre daquela situação. Quando nota cair-lhe ao lado outro livro. Rápido, corre os olhos por todos os lugares possíveis. Ninguém... Mas, ao longe, próximo a uma venda, parece-lhe haver na calçada um pequeno dicionário e, junto à farmácia, na outra extremidade da rua, parece-lhe cair outro livro. Mais à frente, um deles estilhaça a vidraça de uma loja de roupas. “É o cúmulo! Ninguém faz nada para impedir esse louco!” Mal termina seu pensamento e uma forte pancada, agora no cocuruto, desequilibra-o e o faz virar-se. Era um volume dos grandes. Esse machucou bastante. Contudo, parece-lhe ter vindo de cima, mas não havia edifícios na rua do alto. Reluta em procurar seu agressor em prédios que não existem, mas, mecanicamente, olha para cima. Percebe uma estranha ave cruzar o céu, num vôo rápido e linear, como uma seta. Era o pássaro mais esquisito que já vira.
É capaz de perceber as formas retilíneas da ave e seu adejar ordenadamente desarticulado. Nota-lhe a estranha textura das penas e sente-se esquisito ao constatar que sua percepção do mundo e das coisas mudara, seu olhar se tornara mais aguçado. Como poderia perceber minúcias numa ave de vôo tão rápido?
Para testar sua nova percepção, tenta identificar-lhe o bico, mas ela o não tinha. Nota as pequenas manchas ordenadas horizontalmente ao longo do corpo do pássaro, quando este se choca contra o muro da antiga escola primária de Dona Lourdes! Renato corre para melhor estudar o esdrúxulo ser. Estremece diante do que seus olhos lhe mostram. Não era uma ave, mas uma antiga edição de um livro de que já ouvira muito falar: A Metamorfose.
Relutou em aceitar uma idéia que lhe batia às paredes da cabeça, mas de onde teria vindo aquele livro, então? Não havia prédios! Não havia ninguém! A Metamorfose parecia-lhe ter vindo de muito alto! Do céu mesmo! Ainda que alguém o tivesse atirado, teria de estar numa posição muito elevada. A não ser que... O tivessem jogado de um avião! Mas... Não havia sombra desse avião!
A idéia teimosa alfinetou-lhe novamente o juízo. Era absurdo, sua razão lhe dizia, mas... Só poderia ser aquilo!
Outro livro espatifa-se na calçada ao seu lado. Não havia mais como refutar aquela idéia, por mais absurda que lhe parecesse, era aquilo mesmo: estava... Chovendo! Estava chovendo... Livros!
Renato obedece ao ímpeto instantâneo de correr para a marquise mais próxima, a fim de se abrigar, pois uma chuva de livros poderia machucar bastante as carnes, até de um corpo tão resistente quanto o seu. Enquanto corre para se proteger, seus olhos vislumbram o espetáculo e suas pernas passam a obedecer ao comando deles e a reduzir a marcha.
Os livros acertam-lhe a cabeça, os braços, o peito, a alma. Renato já não sente dor, apenas aquela chuva no corpo inteiro e tenta perceber-lhe os pingos a molhar seu ser.
Era um espetáculo!... Algo inefável e insólito. Livros, livros de todos os tipos, tamanhos, formatos, assuntos, matérias... Livros! Caíam por todas as partes, em todos os lugares. Aqui, ali, acolá... Baudelaire, Joyce, Machado, Drummond... Não só livros, mas revistas, periódicos, jornais, até panfletos, tudo em que se podiam ver letras a dançar, dançava na ciranda daquela chuva inusitada e absurda.
HENRIQUE, Jorge. 4ª ANTOLOGIA DE CONTOS – Autores contemporâneos. Rio de Janeiro: Câmara Brasileira dos Novos Escritores, 2005. p. 35.
Visite:
http://poetajorge.blogspot.com/